quinta-feira, 25 de novembro de 2010

M.A. de Menezes - BAUDELAIRE: o poeta ... (3)

M.A. de Menezes - BAUDELAIRE: o poeta da cidade moderna (3)

Marco Antonio de Menezes



(continuação)

O poeta nega o curso do tempo, o tempo linear. Ele o constrói e encontra o heróico. Ele heroifica o presente. Mas não se trata da sacralização do presente e nem só da sua apreensão como fugidio. Ser moderno, para Baudelaire, é tirar do agora o que ele tem de poético. É antes uma atitude. Mais uma vez ele lembra que a beleza moderna é particular. Ele termina seu Salão de 1846 conclamando seus contemporâneos à percepção do agora, lembra que os heróis do passado são os heróis do passado e que o presente tem seus heróis e eleva Honoré de Balzac à estatura de Publius Vigílio Marco. Afirma ser Balzac o mais heróico, o mais singular, o mais romântico e o mais poético entre todas as personagens que tirastes de vosso peito. 23

Baudelaire quer uma poesia e uma arte que um dia se torne clássica por ter falado de seu presente. Esta heroificação é irônica, o clássico moderno é precário, a modernidade rompe com a tradição. Então, ela será colocada à prova e verificar-se-à se ela pode ser clássica.

Em Baudelaire, a modernidade cheira à morte, à destruição do tempo e a metrópole é o lugar desta morte. É em As Flores do Mal que a cidade grande e a multidão, sem serem um tema explícito, desenham a modernidade. Em todo Quadros Parisienses a cidade é mostrada em sua fragilidade: a cidade moderna como ruína antiga. O poeta já não encontra nas palavras o sentido habitual: a lírica tradicional caduca. São outras as palavras, as imagens usadas pelo poeta lírico moderno. Mas também é outra sua percepção, os seus sentidos, as suas paixões. Se ressurgem as condições de articulação do efêmero com o eterno, como no período barroco, há uma nova função da visão alegórica no século XIX. É pela alegoria que Baudelaire põe a modernidade à distância. O spleen transforma o presente em antigüidade, em realidade frágil da qual, no próximo instante, só subsistem as ruínas. As àguasforte de Méryon, tão admiradas por Baudelaire, mostram Paris simultaneamente em ruínas, em escombros, e em construção. Encarnam o caráter alegórico da modernidade face à experiência da transitoriedade e da morte.

A teoria da arte moderna de Baudelaire culmina, assim, em uma teoria do artista moderno. O artista deve aprender a observar e esquecer o que as escolas lhe ensinaram. Em suma, o artista do moderno é um sofisticado homem do mundo sem ser um cínico despreocupado. O verdadeiro artista é inteiramente treinado pela observação e pela sensibilidade e não simplesmente pela técnica. É por isso que Baudelaire achou Delacroix um grande pintor. Ao opor Delacroix a Hugo, o poeta vê no romantismo de Delacroix só imaginação e nem uma técnica.

Em A Arte Filosófica, Baudelaire, de início, lança a pergunta: O que é a arte pura segundo a concepção moderna? E responde: É criar a magia sugestiva que contenha o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista. 24 Não há aqui confiança exclusiva nem na razão, nem na imaginação. Se lermos as poesias de Baudelaire, especialmente às do ciclo urbano,

Quadros Parisienses, à luz de suas reflexões sobre arte, particularmente sobre pintura, perceberemos o quanto ele incorporou destas reflexões. Em um poema como A Uma Passante é visível a execução prática destas idéias.

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa.
Erguendo e sacudindo a barra do vestido
Pernas de estátua era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia.
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... E a noite após? — Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste
! 25

Ao fazer uma leitura do soneto, Benjamin observa a presença fenomenológica do erotismo na grande cidade: Pode-se dizer que não trata da função da massa na existência do burguês, mas na do ser erótico. 26 Para ele, a cidade grande — aquela que nasce no século XIX — pode proporcionar experiências bizarras, como a de um encontro amoroso em que o que permanece é o trauma por uma promessa não realizada.

O arrebatamento desse habitante da cidade não é tanto um amor à primeira vista quanto à última vista. O nunca da última estrofe é o ápice do encontro, momento em que a paixão aparentemente frustrada, só então, na verdade brota do poeta como uma chama. 27

Para Benjamin, o elemento principal de A Uma Passante, é a multidão, que provoca o surgimento e desaparecimento da misteriosa mulher: Nenhuma expressão, nenhuma palavra, designa a multidão no soneto ‘A uma passante’. No entanto, o seu desenvolvimento repousa inteiramente nela, do mesmo modo como o curso do veleiro depende do vento. 28 Ainda no dizer de Benjamin, o poema é a marca característica do interesse de Baudelaire pela multidão anônima: a mulher que passa pode ser qualquer uma e ninguém.

A multidão está presente em toda a obra baudelairiana, embora não se faça nenhuma menção a ela. Ela deixa pegadas em toda a criação do poeta. Como se convidada a uma dança macabra, a multidão compacta avança com seus esqueletos e espectros que abraçam o transeunte já agora em pleno dia. 29

O que interioriza a multidão na obra e dá sentido ao texto é a forma como o cenário é
apresentado; não a vemos, mas sabemos de sua existência. Assim, na descrição do cenário, o externo se interioriza na obra. A estética acurada desse poeta francês dá conta dos temas que a métrica de um poeta mediano mataria. Baudelaire, mais que trabalhar a matéria bruta, entregava à imaginação criadora elementos já elaborados: gravuras, telas, estátuas. O segundo poema publicado por Baudelaire, Dom Juan nos
Infernos, nasceu de uma litografia de Pierre-Narcisse Guérin e do quadro de Delacroix intitulado Dante e Virgílio. O poeta compôs versos para obras dos amigos Manet, Honoré Daumier e Delacroix. Estes poemas aparecem em As Flores do Mal, na seção Épigraphes.

Os Quadros Parisienses retratam suas caminhadas por Paris e evocam lembranças, muitas delas, de quadros dos pintores amigos, que tinham por tema a cidade. A influência de Paris lhe fez descobrir a necessidade de evasão, de liberdade. Antes mesmo da época apropriada, “pintava” a multidão do bulevar, como Monet e Renoir, os cafés da moda, como Manet e Degas, as prostitutas, como Lautrec.

Admira a eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia tão
providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedras acariciadas pela bruma ou fustigadas pelo sobro do sol.

Admira as belas carruagens, os garbosos cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a
destreza dos criados, o andar das mulheres ondulosas, as belas crianças, felizes por
viverem e estarem bem vestidas; resumindo, a vida universal. 30

Se estas não fossem palavras de Baudelaire sobre o amigo Constantin Guys, poderiam, sem dúvida nenhuma, ser empregadas para falarmos sobre seus poemas reunidos em Quadros Parisienses. Esses poemas são, na verdade, pinturas escritas, ou melhor, palavras coloridas de tinta, onde a pena do poeta vira pincel e seu tinteiro, palheta com tintas de vários matizes que vão do claro ao escuro em um único movimento da mão do artista. Este espírito de revolta estética encontra na Paris tumultuada pela reforma urbanística de Haussmann, uma realidade já em ruínas. Essa cidade-sujeito em mutação materializa a impureza de tudo o que há, em sua vocação para a metamorfose. Este presente, em que se prepara o futuro, encontra-se numa relação indissolúvel com o passado, uma vez que coabita com suas ruínas.

Na crítica sobre o Salão de 1859, Baudelaire faz o seguinte comentário sobre as águas-fortes de Charles Méryon:

Raramente vi representada com mais poesia a solenidade natural de uma cidade imensa. As majestades de pedras edificadas, os campanários indicando o céu, os obeliscos da indústria vomitando para o firmamento seus blocos de fumaça, os prodigiosos andaimes dos monumentos em reparação, revestindo o corpo sólido da arquitetura com sua própria arquitetura vazada de uma beleza tão paradoxal, o céu tumultuoso, carregado de cólera rancor, a profundidade das perspectivas aumentada pelo pensamento de todos os dramas que nela estão contidos; nenhum dos elementos complexos que compõem o doloroso e glorioso cenário da civilização fora esquecido. 31

Suas idéias se assemelham às encontradas no poema Paisagem, que abre a série Quadros Parisienses e que foi publicado pela primeira vez a 15 de abril de 1857 em Le présent. Tal qual na descrição do trabalho de Méryon, que era amigo de Baudelaire, a quem tinha como seu principal crítico, o poema mostra a cidade com suas luzes, seus ruídos, seus edifícios, paradigma da imaginação que voluntariamente se priva de todo e qualquer espetáculo natural.

Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,
E, junto aos campanários, escutar sonhando.
Solenes cânticos que o vento vai levando, só, na água-furtada,
Verei a fábrica em azáfama engolfada;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E o vasto céu que faz sonhar a eternidade.
32

Paisagem. V. 01-08.


É o mesmo céu, a indústria lançando no firmamento sua fumaça, a mesma cidade e a mesma imaginação criadora a serviço da arte. O mesmo sentimento diante de um mundo que está sendo transformado em ruínas, onde o que fica gravado na memória são os traços da pintura que retratam tais acontecimentos ou o risco da pena que descreve tal cenário.

Tal qual um “caleidoscópio carregado de energia”, o poeta desceu às profundezas da cidade para revelar as formas de beleza e as monstruosidades criadas pela modernização.

________________

24 BAUDELAIRE, Charles. A Arte Filosófica. Poesia e prosa. Op. cit, p. 789.
25 BAUDELAIRE, Charles. A Uma Passante. As Flores do Mal. Op. cit. p. 344-345.
“La rue assourdissante autour de moi hurlait/ Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, / Une femme passa, d’une main fastueuse/ Soulevant, balançant le feston et l’ourlet; // Agile et noble, avec sa jambe de statue. / Moi, je buvais, crispé camme um extravagant, / Dans son oeil, ciel livide aù germe l’ouragan,/ La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.// Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté/ Dont le regard m’a fait soudainement renaître,/ Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?// Ailleurs, bien loin d’ici! Trop tard! jamais peut-être!/ Car j’ignore aù tu fuis, tu ne sais aù je vais,/ O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!”
26 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Op. Cit., p. 42.
27 Ibidem, p. 43.
28 Ibidem, 117.
29 JUNQUEIRA, Ivan. A arte de Baudelaire. As Flores do Mal. Op. cit, p. 89.
30 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. A modernidade de Baudelaire. Op. Cit., p. 171.
31 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. A modernidade de Baudelaire. Op. cit. p. 136.
32 BAUDELAIRE, Charles. Paisagem. As Flores do Mal. Op. cit. p. 316-317.
“Je veux, pour composer chastement mês églogues, / Coucher auprès du cil, comme les astrologues, / Et, voisin des clochrs, écouter en rêvant / Leurs hymnes solennels emportés par le vent. / Les deux mains au menton, du haut de ma mansarde, / Je verrai l`atelier Qui chante et Qui bavarde; / Les tuyaux, les clocherrs, ces mâts de la cité, / Et les grands ciels Qui font rêver d`éternité.”

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