M.A. de Menezes - BAUDELAIRE: o poeta da cidade moderna (4)
(continuação)
Sua lírica moldou-se às formas da cidade e dos habitantes. Ela liga o poeta ao público pelo lado obscuro e sórdido de suas vidas. Com um insulto deliberado, "Hypocrite letcteur, mon semblable, mon frère! (“Hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão!”), Baudelaire fala a seus contemporâneos. A obscuridade da lírica baudelairiana fascina, mas, ao mesmo tempo, desconcerta. A magia de sua palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a compreensão permaneça desorientada. Sua poesia, antes de ser compreendida, desperta os sentidos e choca. Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade. A tensão dissonante é um objetivo das artes modernas em geral33.
Baudelaire
O próprio Baudelaire escreveu: Existe uma certa glória em não ser compreendido. Com efeito, a lírica produzida pelo poeta é dissonante e gera uma tensão no leitor. Este leitor não é qualquer um; ele foi escolhido. É, antes, o homem moderno, que, a partir do século XIX, passa a respirar a fumaça das chaminés das indústrias e a se acotovelar nas ruas das grandes cidades. A poesia de Baudelaire apresenta grandes afrescos do mundo objetivo das relações sociais vividas na França na metade do século XIX, e, ao mesmo tempo, expressa o clima subjetivo da experiência vivida pelos homens dessa época. Sua obra fala não só do ser social, como também dos acontecimentos, dos fatos e do meio no qual ela se manifesta. A criação literária do poeta francês é depósito transparente do seu pensamento criador; de sua obra brotam as fontes da vida social que nutrem e que ordinariamente se oferecem com toda transparência à nossa vista. A literatura portanto fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se caracterizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.34
Conhecido por sua controvérsia e seus textos obscuros, Baudelaire foi o poeta da civilização moderna, onde suas obras parecem clamar pelo século XXI ao invés de seus contemporâneos. Em sua poesia introspectiva ele se revelou como um lutador a procura de Deus, sem crenças religiosas, procurando em cada manifestação da vida numa árvore ou até mesmo no franzir das sobrancelhas de uma prostituta. Sua recusa em admitir
restrições de escolha de temas em sua poesia o coloca num patamar de desbravador de novos caminhos para os rumos da literatura mundial.
Baudelaire sabia da interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno e rompia com o dualismo entre espírito e matéria. Assim, conferia riqueza e profundidade ao homem – características ausentes em muitos contemporâneos do poeta. Ele não separa “modernismo” de “modernização”; portanto, não diferencia o espírito puro – imperativos artísticos e intelectuais autônomos – do processo material – imperativos políticos, econômicos, sociais. Pensando assim, pode-se incluí-lo na galeria de escritores tais como: Goethe, Hegel e Marx, Dickens e Dostoiévski.
Em Baudelaire o sujeito toma consciência de si mesmo. Ele é o fundador da consciência do sujeito na cultura contemporânea. É o gosto da recusa, da resistência, que cria o sujeito. Na modernidade este sujeito toma consciência de si no movimento de passagem da vida pacata na pequena Vila para a grande Cidade. Na modernidade este sujeito não é mais o sujeito clássico do Iluminismo com sua razão salvadora é antes o homem nu na multidão de iguais. Com Baudelaire nasce uma modernidade que define o eterno no instante, o que se opunha ao idealismo das culturas empenhadas em desprender as idéias eternas das deformações e das
máculas da vida prática e dos sentidos. "A modernidade" escreveu Baudelaire em seu artigo O pintor da vida moderna (publicado em 1863) é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o efêmero. O espírito da modernidade estética, com seu novo sentido de tempo como um presente prenhe de um futuro heróico, nasceu na época de Baudelaire. Hoje esta modernidade se encontra prisioneira do instante e arrastada na eliminação cada vez mais complexa do sentido. Modernidade preza a suas proezas técnicas rapidamente ultrapassadas.
Os primeiros modernos não procuravam o novo num presente voltado para o futuro e que
carregava consigo a lei de seu próprio desaparecimento, mas no presente, enquanto presente. Essa distinção é capital. Eles não acreditavam, como disse, no dogma do progresso, do desenvolvimento e da superação. Não depositavam sua confiança no tempo nem na do presente, não do futuro, pois a utopia e o messianismo lhes eram desconhecidos.35 Courbet e Manet, Flaubert e Baudelaire quiseram ser de seu tempo. Se fizeram escândalo, nunca julgaram que deveriam isso ao avanço que teriam sobre seus contemporâneos. Estavam em conflito com o conformismo. Eles não aceitaram a realidade dada como sendo a que deveria ser vivida e pregaram um outro comportamento que passava primordialmente pelo gosto estético.
Pregaram que o presente de cada época e sua modernidade estariam intimamente vinculados a um tempo e a um espaço, ao conjunto de gostos de uma dada época e de um dado lugar, variável segundo a mudança dessas coordenadas.
Pode-se dizer, assim, que no nascimento do conceito contemporâneo de moderno, quando
aparece o termo, temos uma clara ressurreição da utopia presenticista dos quiliastas, onde a fruição do aqui e agora não se apresenta mais como uma realização orgiástica do paraíso, mas sim como uma transposição do prazer carnal para o prazer do consumo de bens dotados de uma beleza, imagem da circunstancialidade e da efemeridade, atados a um conjunto de gostos.
A lei do efêmero da multidão e das aparências mutantes da modernidade metaforiza-se
exemplarmente na figura da multidão, a massa humana das ruas das grandes cidades
industriais que apresenta contraditoriamente a uniformidade do movimento coletivo e a
singularidade das feições, a aparente integração no conjunto e a sensação de isolamento dos indivíduos.36
Como um ocioso que circula em Paris — capital do século XIX — como a terra prometida, o poeta transmudado no flâneur tenta levar uma vida paradoxal: estar na multidão sem se envolver nela e, junto com ela, ir ao mercado contemplar as mercadorias.
O flâneur ainda não está condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão. Seu contato com a massa urbana é aquele do olhar, ele vê a cidade, e este método o faz criar em torno de si um escudo. Não sendo um autômato, ele é o ocioso que mapeai a urbe, fazendo referência ao labirinto emocional despertado pela modernidade.
Porém, na segunda metade do século XIX, na Europa industrial, o poeta já não mais podia viver à parte do mundo que, a cada dia, aceitava o mercado como regente. Baudelaire é o primeiro moderno, o primeiro a aceitar a posição desclassificada, desestabelecida do poeta – que não é mais o celebrador da cultura a que pertence; é o primeiro a aceitar a miséria e a sordidez do novo espaço urbano. Baudelaire identificou-se com todos os marginais da sociedade: as prostitutas, os bêbados etc.
Não é comum para um rebelde de sua classe igualar-se à parte “suja” da sociedade. Baudelaire interpretou a sociedade em que viveu o processo opressivo de sua banalização. A sociedade inteira estava comprometida com um tipo de prostituição gigante: tudo estava à venda e o escritor, entre todos, foi um dos que mais se prostituíram, pois ele prostituiu sua arte. Baudelaire tinha outras opções, podia tornar-se um escritor mercenário, e isso seria pior que vender o corpo. Ele voluntariamente apropriou-se do lugar da prostituta e, mais que aceitar tal identidade sobre si pela necessidade bruta, ele a manteve.
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33 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1999p. 15.
34 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 21.
35 COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996, p. 37.
36 MENEZES, Philadelphos. A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experiência, 1994, p. 59.
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