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Ciência e Cultura
Print ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.54 no.1 São Paulo June/Sept. 2002
VIOLÊNCIA URBANA E GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
Wânia Pasinato Izumino
Cristina Neme
Nos últimos 20 anos, a problemática da violência tornou-se objeto de interesse e discussão de especialistas, formadores de opinião e da população em geral, ocupando lugar central em suas preocupações, conforme indicam as pesquisas de opinião. Além de indicar o medo crescente com que convivem as populações dos centros urbanos, estas pesquisas também têm apontado para a existência de outro fenômeno: a baixa credibilidade das instituições de segurança e Justiça junto à população. Por um lado, a sociedade brasileira tem acompanhado o aumento da violência e da criminalidade; por outro, observa a ausência de respostas por parte das polícias e da Justiça, que se expressa no despreparo das forças policiais para o enfrentamento do crime e nas altas taxas de impunidade.
O tema da violência é bastante amplo e permite várias abordagens. Este artigo propõe-se a descrever e contextualizar a criminalidade urbana e as graves violações de direitos humanos.
Não há no Brasil uma base nacional de dados a respeito da criminalidade, tais como roubos, estupros ou seqüestros(1). Mesmo no plano estadual existe um grande déficit de informações sobre o movimento de registros policiais que inviabilizam as análises comparativas. Uma exceção neste quadro são os homicídios, que constituem a única base de dados que possibilita comparações entre diferentes regiões do País em relação à segurança pública(2).
De acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, em 1998 as principais causas de mortalidade no Brasil foram as doenças do aparelho circulatório – responsáveis por 27,6% dos óbitos – e as causas externas(3), que corresponderam a 12,6% dos óbitos neste ano(4). Dentre as causas externas, os homicídios dolosos correspondem a 35,7% dos óbitos, enquanto os acidentes de transporte correspondem a 26,4%.
Ao se observar o período de 1980 a 1998, verifica-se que os homicídios vêm apresentando tendência de crescimento entre as causas externas de mortalidade. Em 1980 e 1985, os homicídios correspondiam respectivamente a 19,8% e 23% das causas externas de mortalidade. Em 1990, essa taxa subiu para 31,8% e, em 1995, para 32,3%(5).
Estes números indicam que a violência vem crescendo em ritmo considerável em todo o País. Contudo, as análises a respeito destas taxas de crescimento devem considerar a necessidade de relativizar estas freqüências com base em diferentes variáveis – por exemplo, a região, Estado ou município em que ocorrem e a distribuição na população segundo sexo, faixa etária ou nível socioeconômico –, de modo que se torne possível observar a distribuição desigual destes crimes.
Embora os grandes centros urbanos apareçam como palco de um maior número de crimes, em especial os crimes contra o patrimônio (roubos, furtos, latrocínios), temos acompanhado pela imprensa sua expansão para outras cidades menores, mas que conheceram um considerável desenvolvimento econômico nas últimas décadas. Neste sentido, é importante ressaltar que, embora o senso comum vincule o aumento da criminalidade ao aumento da pobreza, não se pode omitir o fato de que o empobrecimento de largas camadas da população tem sido resultado de um crescimento econômico desordenado e da distribuição desigual da riqueza.
Retomando os números de homicídios e sua distribuição por faixa etária e região, verifica-se que a partir de 1980 estes têm sido a primeira causa de mortes entre jovens do sexo masculino(6). A comparação entre as cinco regiões do País indica que a região Sudeste possui a maior taxa de homicídio na faixa etária de 15 a 24 anos: 74,2 homicídios por 100 mil/hab., ultrapassando significativamente as taxas das outras regiões no mesmo ano(7). Observando-se a distribuição nos Estados, tem-se que as regiões metropolitanas foram as mais afetadas. Na região Sudeste concentram-se três capitais com altas taxas de homicídio entre jovens: São Paulo (134,9), Rio de Janeiro (113,6) e Vitória (187). Porém, também foram observadas taxas elevadas ou superiores em Recife (142,2), Macapá (117), Cuiabá (107,4) e Boa Vista (114). Com exceção de Boa Vista e Macapá, o homicídio é a causa de mais da metade das mortes dos jovens habitantes dessas capitais(8).
VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE EM SÃO PAULO
Embora o crescimento da violência seja sentido pela população toda, estudos têm demonstrado que sua distribuição ocorre de modo desigual pela cidade. Grosso modo, pode-se afirmar que os crimes contra a vida (homicídios) concentram-se mais nas regiões periféricas, enquanto os crimes contra o patrimônio concentram-se nas regiões centrais – onde também se observa maior concentração e circulação de riquezas.
Pesquisa sobre as taxas de mortalidade por homicídio nos 96 distritos municipais da cidade de São Paulo em 1995 demonstra que esta discrepância é expressiva: num extremo, encontram-se os distritos de alto risco, com taxas de homicídio entre 65 e 111 por 100 mil habitantes, em contraste significativo com os distritos mais pacíficos, cujas taxas não ultrapassam 18,96 – sendo 43/100 mil a taxa geral do município(9). Estudo mais recente sobre os padrões de distribuição espacial da violência no município de São Paulo nos anos de 1996 e 1999 aponta para a elevação das taxas de homicídio tanto nos distritos menos violentos como naqueles “tradicionalmente” mais violentos, localizados nas zonas sul e leste da cidade(10). Em 1999, a taxa de homicídio do município eleva-se para 66/100 mil(11).
Mas não são apenas os homicídios que cresceram em São Paulo nas últimas décadas. Estudo a respeito do movimento da criminalidade com base nos registros policiais realizados no município de São Paulo, entre 1988 e 1997, mostrou que os roubos, furtos, tráfico de entorpecentes, latrocínios e extorsões mediante seqüestro apresentaram movimento ascendente no período. De todos os crimes observados na pesquisa, apenas os estupros apresentaram um movimento descendente em relação ao total de registros policiais(12).
Partindo da análise da distribuição dos boletins de ocorrência nos 93 distritos policiais localizados no município de São Paulo, foi possível conhecer suas taxas de crescimento em 10 anos (Tabela 1).
Observando-se as taxas de crescimento, é possível afirmar que o medo da população não é infundado. As mais elevadas correspondem aos roubos consumados e as tentativas de homicídio. Em terceiro lugar aparece o tráfico de entorpecentes.
Este crescimento não ocorreu de forma linear no período investigado, apresentando-se com sucessivos crescimentos e decréscimos. Vários fatores podem ter influenciado este movimento. Por exemplo, sabe-se que quando determinados crimes passam a atingir as classes médias, passam também a ocupar maior espaço na mídia e no debate público, pressionando o governo a formular políticas mais severas para a repressão e contenção da criminalidade. Quando em prática, estas medidas podem reduzir, ainda que temporariamente, a ocorrência de determinados crimes, refletindo-se nas estatísticas oficiais. Um exemplo foi a onda de seqüestros-relâmpagos que alarmou a população paulistana nos últimos anos, desencadeando uma série de medidas para coibir sua prática e aumentar a segurança da população – neste caso, aumento do contingente de policiais nas ruas.
Quanto à distribuição espacial da criminalidade urbana, quando comparadas as distribuições dos crimes de homicídio e roubo, os dados mostram que, apesar da maior representação dos roubos em todas as regiões, estes ocorrem sobretudo nas regiões centrais e oeste, enquanto os homicídios ocorrem com maior freqüência nas regiões sul e leste, regiões periféricas, mais pobres, com piores condições socioeconômicas (Gráfico 1).
AS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
São assim definidos os crimes praticados por agentes do Estado contra a população, seja no exercício legal de suas atividades, seja atuando para além delas. Incluímos sob esta rubrica aqueles crimes que são praticados por cidadãos comuns, que tomam para si a função de aplicar a Justiça, “estimulados” pela ausência do Estado em seu papel de regulador público da violência e pelo mau funcionamento das instituições de segurança e Justiça. No primeiro caso, trata-se da violência policial; no segundo, incluem-se os linchamentos e ações de grupos de extermínio e justiceiros.
As estatísticas oficiais não permitem conhecer a ocorrência destes crimes, pois estas práticas não constituem crimes capitulados no Código Penal. As ações delas decorrentes figuram como homicídios, tentados ou consumados, sem que se possa num primeiro olhar dizer quem foram os agentes envolvidos. Para contornar estas limitações dos dados oficiais, temos trabalhado com casos noticiados pela imprensa desde 1980 até os dias atuais. Todo o material recolhido encontra-se armazenado num banco de dados eletrônico que reúne 6.839 casos de violência policial e 1.072 casos de linchamentos ocorridos em todo o território nacional em 21 anos.
Pela análise dos dados extraídos das notícias tem sido possível observar que, a despeito de todas as mudanças que ocorreram no cenário político brasileiro, as práticas policiais sofreram poucas mudanças. Sua principal característica tem sido o uso excessivo da força, expresso, por um lado, na desproporcionalidade de agentes por caso, em média, e, por outro, nas altas taxas de letalidade em que resultam os confrontos. A despeito dos esforços das polícias militares estaduais de incorporar ao treinamento de seus agentes os conceitos de promoção e respeito aos direitos humanos, o que se tem observado na prática é a atuação violenta destes mesmos agentes, além do abuso de autoridade e de seu envolvimento de práticas delituosas, por exemplo, o envolvimento de policiais com o crime organizado e extorsões. Outra característica destes crimes, através da lente da imprensa escrita, é a impunidade.
Muito pouco se ouve falar a respeito da punição aplicada a agentes envolvidos em confrontos que resultam em mortes, muitos deles caracterizados como execuções. A ausência de respostas do poder público nestes casos somente contribui para agravar o quadro de descrédito destas instituições junto à população.
Um reflexo deste descrédito está representado na permanência de práticas como linchamentos e grupos de extermínio na sociedade brasileira. Mais do que sua permanência, o que chama a atenção nestes crimes é o grau de tolerância da população em relação a eles.
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Wânia Pasinato Izumino é socióloga, mestre e doutoranda em Sociologia pela FFLC/USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência/USP.
Cristina Neme é socióloga, mestre em Ciência Política pela FFLCH/USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência/USP.
Notas e referências
1 Esforço neste sentido vem sendo realizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, que vem tentando organizar um sistema nacional de estatísticas criminais.
2 Kant de Lima, R. “Violência, criminalidade, segurança pública e justiça criminal no Brasil: uma bibliografia”. BIB, Rio de Janeiro, n. 50, 2º semestre de 2000, p. 58. [ Links ] Trata-se das taxas de homicídios dolosos.
3 Causas externas são causas violentas, não-naturais, que podem ser intencionais ou não-intencionais e compreendem acidentes de todos os tipos, suicídios e homicídios. Mello Jorge, M. H. “Adolescentes e jovens como vítimas”. In: Pinheiro, P. S. et al. (org.). São Paulo sem medo: um diagnóstico da violência urbana. Rio de Janeiro, Garamond, 1998, p. 97. [ Links ]
4 Ou seja, ocorreram mais de 41 mil homicídios no País (sendo 929.737 o número total de óbitos registrados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade em 1998).
5 Taxas calculadas a partir dos dados (número de óbitos por causas externas e por homicídios e lesões provocadas intencionalmente) apresentados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (www.datasus.gov.br).
6 Mello Jorge, M. H., op. cit..
7 De 41,3 no Centro-Oeste, 30,7 no Nordeste, 28,8 no Norte e 25,6 no Sul. Entre os anos de 1980, 1989 e 1999, o Sudeste permanece com as taxas mais elevadas e o Sul com as menores taxas, mas houve crescimento expressivo das taxas de homicídio em todas as regiões.
8 Fonte: Prefeitura do Município de São Paulo / Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade no estudo Violência e Emigração Internacional na Juventude. Março de 2002, p. 5-8 (dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade). [ Links ]
9 Mapa de risco da violência: cidade de São Paulo. SP, Cedec, 1996. [ Links ]
10 Rodríguez Yi, J. L. et al. Análise espacial da distribuição e dinâmica da violência na cidade de São Paulo entre os anos de 1996 e 1999. São José dos Campos: INPE, set./2000. [ Links ] O estudo indica a elevação da taxa de homicídio em 79 distritos em relação ao ano de 1996. Note-se, porém, que a discrepância entre os distritos permanece acen-tuada: a taxa de homicídio varia de 4,11 (Moema) para 116,23 (Jardim Ângela) no ano de 1999.
11 Fundação Seade. Sistema de Estatísticas Vitais 2000. [ Links ]
12 Estudo da impunidade penal. São Paulo, município, 1988-1997. Pesquisa em andamento no NEV/USP.
Bibliografia consultada
Adorno, S. “Exclusão socioeconômica e violência urbana”. Paper Ciclo de Conferências Sociedade sin Violencia, PNUD, El Salvador, 2002. [ Links ]
Feiguin, D., Lima, R. “Tempo de violência: medo e insegurança em São Paulo”. São Paulo em Perspectiva, vol. 9, nº 2, abr./jun. 1995. [ Links ]
Kant de Lima, R. “Violência, criminalidade, segurança pública e justiça criminal no Brasil: uma bibliografia”. BIB, Rio de Janeiro, n. 50, 2º semestre de 2000, p. 58. [ Links ]
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Mingardi, G. O Estado e o crime organizado. São Paulo. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 1998. [ Links ]
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