domingo, 24 de abril de 2011

VALDOMIRO SANTANA - 1º EM CONTO COM A CIDADE

VALDOMIRO SANTANA - 1º EM CONTO COM A CIDADE 


MADAME VUILLEMIN

 Un mot  circule dans l’ombre
et gonfle les draperies.
 LOUIS ÉMIÉ. Le nom du feu.

Valdomiro Santana

 — Marlyyyyyse! Marlyyyyyse!
Uma vez ou outra, como agora, e subitamente, madame Vuillemin se lembra da esganiçada voz da mãe gritando seu nome. Era menina e morava numa grande casa de pedra, onde nascera, na aldeia de  Eaux-Puiseaux, em Bar-sur-Aube, na Champagne.  
Tanto tempo rolando dentro e fora dela mesma, com o y agudo se prolongando naqueles gritos da mãe...
A essa lembrança dolorosa sucede sempre a do córrego murmurando atrás do pomar da casa.
Por que esse murmúrio nunca vinha só?
A mãe depois dos gritos: olhos fuzilando, lábios finos apertados. Marlyse, porém, não chorava, por mais que a mãe lhe batesse.  
Não sabe como os cascudos não lhe racharam a cabeça. Os nós dos dedos rijos feito ferro.
E tapas e pescoções. E açoites com uma correia de couro.
   
Marlyse Aveline Vuillemin. Agora, no meio da manhã deste 23 de dezembro, em vez de uma das Ninfeias de Monet, reprodução em linóleo fosco que comprara de um bouquiniste na Rive Gauche, a imagem vívida que vê é a do regato sem nome de sua infância. Imagem com a qual nenhuma associação lhe ocorrera ao comprar a reprodução quando se mudara,  faz muitos anos, para este pequeno apartamento no último andar deste prédio da Rue Gassendi.

Havia saído cedo, como todos os dias, para caminhar — e estava, está bem. Fizera o roteiro de sempre: da Gassendi andara até a Avenue du Maine, seguira pela Rue de la Gaité, beirando o cemitério de Montparnasse, depois Rue Delambre, Boulevard Edgar Quinet, Boulevard Raspail, um estirão até a Place Denfert-Rochereau, volta pela Avenue Général Leclerc, Rue Daguerre.
Setenta e quatro anos. E tão bem disposta, que, à tarde, pensa em palmilhar os Champs Elysées para contar as árvores da avenida. Quer verificar, saber se são mesmo 445, como dizem.
Que bobagem! E daí? Marlyse não tem nada na cabeça.

— Marlyyyyyse! Marlyyyyyse!

Iria de metrô até a Étoile, o Arco do Triunfo no centro, de onde andaria até a Place de la Concorde. E, no caminho, vitrines as mais luxuosas de Paris.  
Aguentaria caminhar tanto? Que pergunta! Não é este seu único e belo Natal, o presente que quer se dar? Por que não?         
Claro que está enxergando bem! Mas, por que agora, só agora, vê este rio humilde, sem ninfeia nenhuma, raso, de águas limpas, correndo, chorando, sobre seixos? Vê também, logo adiante, a relva se estendendo até os limites da propriedade, a sebe de abetos, madressilvas enroscando-se nos troncos; e  tufos de ervas perfumadas: jacintos, mirtos, açafrões, anêmonas, ciclames, violetas.  
A materialidade do que visualiza na parede é imutável: o suporte de linóleo fosco, o passe-partout verde-pálido, o tom de vinho da moldura de madeira. Dentro desse conjunto, porém, a imagem que vê fulgurar é a do regato com a transparência luminosa de suas águas, a claridade de suas cores, o plein-air.
Sussurra-lhe o pensamento a lembrança de um verso, lido numa seleta do liceu, lá em                              Bar-sur-Aube:

Dans le ruisseau il y a une chanson qui coule.

De quem? René Char? Pierre Reverdy? Louis Émié? Maurice de Guérin...? Pensa alto:
— Tenho quase certeza que é de Reverdy.

Menos de seis meses depois que ela e Robert, o marido, se mudaram para Paris, havia 53 anos, ele a deixara com dois filhos. Tivera de trabalhar duro para se manter e sustentar e criar Gustave e Jeannine. Que, já faz muito tempo, só telefonam.
— Bem. Estou bem. Não precisa se preocupar.
Um neto: Alain. Fotografias. Quatro gravuras.  Biscuits. Vasos de plantas na sacada. Poucos livros e discos. Televisão. Os dias de aposentada, as horas, à noite, no escuro: iguais como as contas de um colar, o recorte dos telhados contra o céu.    
Como são solitárias as velhinhas de Paris! Mais do que em qualquer outro lugar. Ao invés de esconder, muitas estampam seu quinhão de melancolia e amargura.  E se matam.
Conheceu algumas, que lhe contaram a vida, desabafaram:
— Se não me confiar, chegarei à náusea e ao desespero.
— As rugas do rosto são feias; as do coração, mais ainda.
Madame Semprúm. Espanhola. Viúva, sem filhos e sem mais nenhuma referência familiar, uma das tantas zeladoras que já haviam trabalhado no prédio, dissera-lhe um dia:
Hay una suerte en la desgracia.
Simpática, madame Semprúm. Quando morreu, as velhinhas que moravam na rua foram ao enterro, levaram flores.

O córrego. As vitrines. As árvores nuas cujos galhos já estão polvilhados de neve e com luzes que se acenderão feéricas daqui a pouco. O vento que não é cortante. 
Madame Vuillemin arruma-se. Está bem agasalhada.  Luvas novas de malha cinza. Chapéu. Bebe um cálice de calvados. Retoca a maquiagem.
Quatrocentas e quarenta e cinco árvores. Quantos abetos e castanheiros?
Quando abre a porta do apartamento para sair, olha mais uma vez o quadro na parede. E agora, só agora, não mais precedido de gritos, ouve o murmúrio do córrego. Dura uns cinco segundos. Tão intensa é essa fusão de imagem e som, que madame Vuillemin sente-a atravessando-lhe os ossos.
Tranca a porta, desce e rapidamente se encaminha para a estação do metrô da Avenue du Maine.         

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