quinta-feira, 28 de abril de 2011

Pechman - DESCONSTRUINDO A CIDADE (1)


 Pechman -  DESCONSTRUINDO A CIDADE (1) 

PECHMAN, Robert Moses. Desconstruindo a cidade: cenários para a nova literatura urbana. Revista Rio de Janeiro, n. 20-21, jan.-dez. 2007 Literatura e Experiência Urbana, pp. 32 – 39.

DESCONSTRUINDO A CIDADE: CENÁRIOS PARA A NOVA LITERATURA URBANA

Robert  Moses  Pechman
 Professor  do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de 
Janeiro (IPPUR/UFRJ). Pós-doutor pela EHESC-Paris. E-mail: betuspechman@hotmail.com.

Resumo – Faz-se um breve balanço sobre como a literatura no Rio de Janeiro tematizou  a cidade nos últimos cinqüenta anos. Percebe-se uma perda da substância urbana dacidade que repercute fortemente no imaginário que os personagens criados formulam sobre   o    viver   coletivo   numa   urbe   como   o   Rio .   Novas   formas   de   sociabilidade presentificaram-se na cidade, tributárias de uma visão do que seja viver numa metrópole contemporânea mundializada. Assim, o esvaziamento da vida pública, o empobrecimento dos vínculos urbanos e a irrupção da violência, que produz um imaginário de “cidade perigosa”, acabaram facilitando uma percepção de cidade como uma cidadela, que passa a ser experimentada como lugar fortificado, onde o estranho, o outro, nunca é bem-vindo. Tal evidência faz com que a cidade perca toda sua porosidade e se torne reticente a qualquer sociabilidade que não seja aquela do embate. A literatura é um dos lugares-chave por meio dos quais a nova experiência urbana vai reverberar.

Palavras-chave Palavras-chave: literatura; cidade; urbanidade; Rio de Janeiro.


A constituição de uma literatura nacional, já foi dito, tem por base o território. A literatura brasileira, portanto, aquela que tematizou o país a partir do território, nasce na primeira metade do século XIX, depois de muito procurar a paisagem e o homem  local que jaziam intactos nos   fundos   de   um Brasil   profundo   ainda intocado pela pena do escritor branco. Quanto mais verde e amarelo fosse essa paisagem, mais brasileira ela se configuraria: o Brasil era um lugar  e   a   literatura   brasileira   nasceu   da  descoberta desse lugar e da exploração de sua topografia. Um  “topos”, de que se serviriam os  escritores ,   bem  como   historiadores,  para inventar não só uma literatura, mas também uma história nacional.

Minha questão não é, entretanto, a literatura nacional, mas a nossa literatura urbana. Remexo na literatura com carteira de identidade brasileira porque ela colocou em cena o tema do lugar, do  chão, do território, o “topos” sobre o qual se moldaria a identidade nacional.

Nesse sentido é fácil constatar que a literatura urbana brasileira dos últimos 30 anos, nacontramão da tradição literária nacional, tem desprezado os chãos da cidade que dão suporte (material, cultural, simbólico e imaginário) a seus personagens e os tem substituído por cenários (Gomes, 2004) que não remetem mais ao espaço geográfico que produz essas marcas identitárias localistas. Ou seja, trata-se de entender quais são as novas referências da cidade que sustentam os modos de subjetivação dos personagens da literatura contemporânea e o que isso tem a ver com as transformações atuais das metrópoles e do imaginário sobre a urbanidade dos seus moradores. Começo, portanto, indagando sobre como se constituiu entre nós essa literatura que fez da cidade, e mais do que isso, da experiência urbana e, até mais ainda, da convivialidade na cidade, o palco, o sujeito e o objeto de sua criação. Assim, ainda no século XIX, depois de inventar um Brasil que emanava do campo, depois de lhe dar contornos e palpabilidade, depois de assegurar sua existência material e imaginária, o homem de letras do Império precisou girar sobre seus calcanhares em 180°, dando as costas ao Brasil profundo e mirando o litoral, onde estavam suas principais cidades.
Olhar para as cidades era vislumbrar o mundo, num país que por mais de trezentos anos estivera fechado aos influxos da civilização ocidental.

A cidade era, pois, a promessa de civilização, cuja “carte-de-visite” era a urbanidade. Urbanidade! Urbanidade aí no sentido oposto de ruralidade, onde a casa-grande se voltava sobre si mesma não produzindo o “outro”, senão o “mesmo” da família. Nesse sentido, vigiam costumes e formas de relação que supunham a familiaridade, senão a fraternidade. Sendo assim, o repertório comportamental dessa gente era incapaz de transcender os vínculos de sangue e compadrio e o grupo se torna incapaz de pactuar algo – a urbanidade – que esteja fora dos moldes dessa ruralidade familiar.

No novo país independente, que ainda sobrevivia da exportação dos produtos primários, a que servia a urbanidade?  A urbanidade era a única possibilidade de a cidade vingar, pois a partir de seus pressupostos se equacionava a sobrevivência da cidade à “desordem urbana”. Escravos, vadios, mendigos, trabalhadores que viviam de viração, vagabundos, malandros, prostitutas, criminosos, ladrões, numa sociedade que se urbanizava, mas que não tinha produzido ainda o emprego em escala industrial, incendiavam o imaginário das camadas letradas da população, acenando com a ameaça de desordens de todo tipo, no limite da própria revolta escrava na capital do país. Dois caminhos se impunham ao equacionamento dessas ameaças: a tradicional repressão e a generalização da urbanidade, pelo menos para aqueles brancos que, minimamente, sabiam ler.

Os literatos apostaram na segunda via e acabaram produzindo algo que certamente podemos chamar de literatura urbana. Em suma, produz-se uma literatura que escava o chão da cidade e de lá arranca o próprio sentido do que seja o convívio urbano, como transcendente aos interesses de cada um e operando em prol de uma sociabilidade pública que se rege por regras – a urbanidade – que interditam ou sancionam os comportamentos.

Esse chão urbano, essa base espacial “obedece, portanto, a uma territorialização, que vai fornecer imagens, tipos, costumes, linguagens...” (Gomes, 2004, p.136) para o escritor. Nesse sentido, este trabalho irá procurar contrastar o começo de uma literatura urbana no século XIX, marcada pela constituição de uma identidade territorial urbana, com aquela que se faz na contemporaneidade, onde “há um apagamento das marcas identitárias localistas” (Gomes, 2004, 145), que revela uma diluição da cidade como lugar e a impossibilidade de esta dar suporte às novas formas de subjetivação dos personagens.

Assim, a primeira constatação a ser feita é que os atuais personagens da ficção urbana parecem completamente descompromissados com a cidade e todo o caudal de urbanidade e sociabilidade que ela induz. Não surpreende, então, a  perda da marca da historicidade dos personagens e seu desprezo por qualquer vínculo que faça do social o atributo estrutural da experiência urbana, sem o qual a cidade não passaria de um aglomerado de desejos individuais que se digladiam sem limites.

Vejamos como a literatura revela esse processo. Em conto dos anos 60, “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, podemos constatar que a literatura ainda está profundamente enraizada em solo urbano, no caso, a cidade do Rio de Janeiro, na medida em que a autora trabalha opondo duas áreas da cidade: a Zona Sul praieira, moderna, reformadora e mundana, frente à Zona Suburbana, conservadora, tradicional e familiar. 

Numa mesma família, os irmãos, ao se casarem, se dispersam pela cidade, uns  indo morar no subúrbio e outros na região das praias, a Zona Sul. A marcação geográfico-simbólica feita por Lispector no início do conto vai enquadrá-lo de tal forma que o comportamento de cada personagem, logo, o seu estar na cidade, será pautado pelo pertencimento de cada qual a seu lugar na urbe. Utilizando o espaço como metáfora para conotar o conflito entre diferentes e conflituosos “ethos” urbanos, Lispector nos mostra nesse conto o começo de um  certo desmanchamento do espírito coletivo da cidade, através da fragmentação e do dilaceramento de uma família numa festa de aniversário, como a nos alertar que na cidade moderna prevalecem as estratégias individuais muito mais que o espírito coletivo e a solidariedade familiar. Aquilo que era da ordem dos afetos – o espírito de irmandade e de fraternidade – se transforma em “tolerância”, ou seja, as relações afetivas são substituídas por pactos formais e impessoais, por meio dos quais os aderentes apenas se suportam para evitar que um esgane o outro.

Apesar dos conflitos familiares e da ideologização da espacialidade que toma o Rio dos anos 60, em Lispector, a representação da cidade revela que ela ainda tem potência suficiente para dar suporte e ser referência às novas formas de subjetivação  que se forjam, justamente a partir de um imaginário que se molda na nova zona  urbanomundana da cidade, a Zona Sul. Nos anos 70 a corrosão dos vínculos na cidade parece oxidar cada vez mais os elos da corrente que ligam as pessoas numa certa experiência coletiva, mas ainda assim a cidade está lá.

Ela ainda é personagem; ela ainda é constituidora de personas. O sujeito, antes de tudo, é um ser da cidade ao  mesmo tempo que ele assujeita-se a ela e nesse ato ele se estrutura como cidadão e, fundamentalmente, como indivíduo.

A identidade do indivíduo se dá na mesma medida de sua territorialização na cidade. Há a corrosão dos vínculos, mas a cidade ainda tem algo a dizer a seus filhos. Conto emblemático dessa tensão entre a territorialização na cidade e a corrosão dos vínculos é “Passeio Noturno” (1975), de Rubem Fonseca. A história nos põe diante de um alto empresário que chega em casa estressadíssimo e que para relaxar pega sempre o seu Jaguar para dar uma voltinha. 



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continua amanhã, sexta-feira

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