Pechman - DESCONSTRUINDO A CIDADE (2)
PECHMAN, Robert Moses. Desconstruindo a cidade: cenários para a nova literatura urbana. Revista Rio de Janeiro, n. 20-21, jan.-dez. 2007 Literatura e Experiência Urbana, pp. 32 – 39.
DESCONSTRUINDO A CIDADE: CENÁRIOS PARA A NOVA LITERATURA URBANA
Robert Moses Pechman
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (IPPUR/UFRJ). Pós-doutor pela EHESC-Paris. E-mail: betuspechman@hotmail.com.
(Continuação)
Ali, na calada da noite, o executivo utiliza o carro para atropelar inocentes pedestres suburbanos que circulam pacificamente pelas ruas. Depois disso, volta para casa relaxado e dorme tranqüilo para enfrentar no dia seguinte todo estresse que a cidade moderna e civilizada lhe cobra.
Nesse conto o personagem já rompeu completamente com a sociedade, mas continua preso a um modo de ser na cidade que passa por seu modo de territorialização, ou seja, um predador que para se saciar sai de sua toca na Zona Sul e vai caçar nos subúrbios.
No conto “Passeio Noturno. Parte II”, publicado no mesmo livro, temos de novo o executivo com seu Jaguar, desta feita ele é abordado na rua, na Avenida Atlântica, em Copacabana, por uma jovem mulher moradora na Lagoa, Zona Sul do Rio de Janeiro, com a qual ele se encontrará para um jantar no Leblon.
Pontuado de lugares da cidade que remetem para sua área mais nobre, o conto traz uma novidade em relação a “Passeio Noturno. Parte I”. Desta feita, o personagem não se “desterritorializa” para barbarizar. Mais ainda, Fonseca introduz no conto a possibilidade de uma erótica com um corpo não suburbanizado, ou por outra, um corpo dourado pelo sol da Zona Sul. Ainda assim, o predador vem à tona, e recusa o jogo social, mesmo que este seja da ordem do gozo erótico. O gozo para o que preda é o consumo do corpo do outro e não o compartilhamento erótico entre os corpos. Nesse sentido, o gozo do predador só é possível com a eliminação do corpo outro, coisa que se repete como no primeiro conto. O que diferencia, então, os dois contos? Se no primeiro concluímos que o personagem rompeu com a sociedade mas continua preso à cidade, em “Passeio Noturno. Parte II”, percebemos que o predador começa a operar entre os seus. Sendo assim, parece ser que Fonseca anuncia que a temporada de caça está aberta e agora ela é no núcleo da própria urbe. Se a territorialidade, para o escritor, ainda é uma questão, parece ser, entretanto, que a urbanidade não comunga mais com o chão aonde esta floresceu. Tal constatação faz com que a cidade se pareça cada vez mais com uma arena e cada vez menos com um palco onde os cidadãos teatralizam sua percepção da urbanidade. Como existir, então, como cidade diante do escasseamento da urbanidade que não parece ser mais dada pela urbe? O que serão das cidades sem urbanidade, estaria se indagando Rubem Fonseca!
Os anos 80 nos trazem um conto que, sintomaticamente, chama-se “Cenários”, de Sérgio Santa’Anna. Pela primeira vez, talvez, a questão da ruptura com o território da cidade se impõe. Esse conto aponta para um outro tipo de espaço, que se afasta da marca geográfica, para “ficar no espaço material da própria criação, que encena a si própria” (Gomes, 2004, p.137). Sant’Anna terá se deparado com o tema do espaço e da cidade, em seus desdobramentos na sociabilidade, e parece estar procurando uma saída.
Em “Cenários” nos deparamos com um escritor à procura de um cenário adequado para a narrativa que está escrevendo. Vai testando diferentes cenários urbanos para aí situar o argumento do texto em processo de elaboração. Em cada fragmento do texto em que constrói um cenário específico, sempre fundado num lugar específico que dá suporte identitário à cena, chega à conclusão que “não, não é bem isso”.
Num quarto vazio de uma cidade qualquer não nomeada, o escritor procura um cenário – um chão –, uma realidade referencial objetivamente dada. Como essa realidade escapa ao escritor, como ela vai se tornando rarefeita, deslocalizada, anônima, ela se mostra incapaz de articular a relação cidade/ narração (Gomes, 2004, p.139) e o escritor conclui que é impossível se constituírem cenários nessas condições, uma vez que o lugar não é mais o suposto da cena, e, portanto, a possibilidade da existência, o que para o escritor remete diretamente para a possibilidade da escrita.
Ainda nos anos 80 o próprio Sérgio Sant’Anna vai avançar na ruptura com a territorialidade urbana com o curioso conto intitulado emblematicamente de “Conto (não conto)”. Já no título, Sant’Anna pondera se seu conto é um “não conto”, fundamentalmente, porque ele se passa num território vazio, onde não há ninguém, e portanto, onde não há acontecimento, nem história, apenas uma cobra, pedras, pouca vegetação. Ora, como contar algo de um espaço vazio onde há território, mas não há gente, e, portanto, relação e, portanto, cultura e, portanto, cidade?
Trabalhando no vazio, no desértico, Sant’Anna opera pelo avesso da territorialidade urbana, concluindo como é monótono, como é vazia de emoções a vida do que sobrevive (insetos, cobras e pássaros) num lugar vazio. Ao final do conto, o autor nos indaga: “como pode alguém contar essa história?” E conclui: “Mas isso não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece”. (Sant’Anna, 2000, p. 521) Estaria Sant’Anna procurando por um chão urbano, por uma cidade, por uma territorialidade, para dar vida à sua história? Mais ainda, estaria o escritor se perguntando sobre a impossibilidade de novas formas de interação e sociabilidade no vazio relacional das grandes metrópoles?
A resposta a essa questão parece dada num conto do próprio Sant’Anna, dos anos 90, intitulado “Estranhos”. Evidentemente que esse título irá nos remeter para o estranhamento nos encontros entre desconhecidos. Se em “Conto (não conto)” não há acontecimentos, muito menos encontros, e daí a impossibilidade de contar alguma coisa, em “Estranhos”, Sant’Anna nos traz o acontecimento urbano. Embora vá trabalhar com uma cena urbana, o autor põe os dois personagens de “Estranhos” para se encontrarem num apartamento desocupado, posto para alugar. Um homem noivo e uma mulher ressentida por ter sido abandonada pelo amante, ambos procurando apartamento , encontram- se num imóvel vazio e intempestivamente se entregam a um desesperado e conflituoso amor. Depois disso, nunca mais se encontrarão.
Ora, se articularmos a história de “Cenários” com “Conto (não conto)” e mais “Estranhos”, vamos ver que os três contos estão atravessados por uma tentativa de encontrar algum “topos” que dê suporte e, portanto, história e identidade aos personagens. Em “Estranhos”, por um momento, mesmo num apartamento vazio, os seres se encontram e podem experimentar seus afetos, podem sair, momentaneamente, de suas solidões. Se Sant’Anna procura por esse “topos”, Rubem Fonseca, nesses mesmos anos 90, o encontra em “A arte de andar nas ruas do Rio”, onde seu personagem quer escrever um livro, que não seja um guia turístico, sobre a arte de andar nas ruas do Rio. Evocando em várias passagens a pólis grega, com sua filosofia peripatética, isto é, aquilo que ensina enquanto se caminha, filosofando, pela cidade, Fonseca cria o conto da comunhão com esse espaço. Passado no Centro do Rio, a antiga capital do país, o conto nos traz em toda a sua densidade a territorialidade e seu poder de encher de sentido a vida da cidade. Fonseca navega, pois, contra a corrente que tende a transformar a cidade num não-lugar, o que a impossibilitaria de doar sentido à vida de seus moradores.
Com a “A arte de andar...”, Fonseca recobra o sentido da cidade, dando-lhe palpabilidade. No entanto, o chão que começara a tremer sob os pés dos literatos dos anos 80, depois dos 90, começa a apresentar rachaduras irreversíveis e uma certa literatura de não-lugares prolifera. É o caso da obra de João Gilberto Noll, na qual seus personagens parecem nômades que não encontram referência em lugar nenhum e, por isso mesmo, vivem soltos no mundo sem nenhum tipo de vínculo com nada nem ninguém. Em análise dos personagens de Noll, Claudete Daflon defende em sua Tese de Doutorado que: Os personagens viajam pela necessidade do trânsito permanente, mas não têm experiências a registrar, uma vez que é o próprio trânsito que os liberta brevemente da desidentidade que é, ao mesmo tempo, sua e do espaço por que passa. Sua jornada denuncia a dessemantização dos parâmetros identitários, como a cidade natal, sem os quais nenhum espaço pode constituir-se lugar (na acepção dada por Auge). As cidades e os mapas fazem cada vez menos sentido, porque não integram o jogo vivo das semantizações; daí restar ao personagem apenas partir e novamente partir. (Apud Gomes, 2004, p.143)
A partir desse desligamento da cidade e da experiência de identidade e de sentido que ela constitui, esta passa a ser observada de longe, do alto dos prédios, e não mais vivida de dentro. É o caso de “O monstro” de Sérgio Sant’Anna, de 1994. Segundo análise de Vera Follain, Querem ver a cidade de cima (os personagens do livro), contemplar, à distância, suas luzes. Observam o espaço urbano “com um olhar periférico”, que tanto pode partir da janela dos hotéis quanto de dentro de um automóvel com o vidro fechado. Eles estão exaustos de pesquisa, exaustos do que lhes é proposto como realidade. A única viagem que lhes interessa é a viagem no imaginário individual... (Figueiredo, 2003, p.53) Exemplo dessa tendência, é ainda a coletânea Geração 90, manuscritos de computador. Ali temos o conto de Carlos Ribeiro “Imagens urbanas”, onde do alto de um prédio de 15 andares, um observador vê a rua. Medroso de a ela baixar, o observador começa a imaginar a vida que ali corre nas veias, pensando que ele pode ser todas as pessoas que estão lá embaixo. Mas não, o observador teme a cidade, tem medo de pisar em seu chão e em vez de se arriscar a baixar à rua, se permite viver na imaginação, no alto do prédio, para afinal concluir: “o homem anda pelas ruas desertas do seu apartamento, porque não pode mais andar pelas ruas desertas e ele sente ao mesmo tempo uma saudade indefinida de um tempo em que podia andar pelas ruas desertas sem medo de morrer. O homem se sente vazio... a cidade pesa em seu espírito. É hora caro leitor de ajudar esse homem a segurar seu fardo...” (Ribeiro, 2003)
Convidando os leitores a ajudar esse homem urbano a suportar a cidade, o autor invita a todos a reconstituir a cena urbana. Nos exorta a todos, coletivamente, a baixar às ruas, a destruir cenários falsos e a experimentar a cidade com todos os seus riscos, mas, quem sabe, também, com todos os seus gozos.
Em 2003, Nelson de Oliveira, o mesmo organizador da coletânea Geração 90 lançou outra coletânea com o título “Os transgressores” cuja orelha, escrita por Flávio Aguiar, coloca em questão os personagens que vinham pontuando na literatura urbana desde os anos 90: Quem são os personagens? São máscaras e não pessoas. Não têm expressão... São muito jovens, ou acham que são... Viajam muito, mas no fundo não vão a lugar nenhum.
Seriam incapazes de escrever um livro de viagens. Não só porque achariam isso uma coisa do parque jurássico; não têm aquela subjetividade introspectiva que todo bom autor de livro de viagem deve ter. Isso – subjetividade – é coisa que se perdeu...
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(continua amanhã, sábado)
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(continua amanhã, sábado)
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