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Aquele que, de algum modo, tem sua imagem associada com Muammar Kadaffi pode sofrer, nos dias atuais, consistentes perdas no que se refere ao patrimônio simbólico. Esse risco tem natureza descontrolada uma vez que, presentemente, o ditador líbio está sendo alvo de uma espécie de “revisão curricular” reveladora de muitos aspectos comprometedores de sua vida pública e particular. Esta revisão atende à expectativa de construção de um viso coerente com as atrocidades associadas ao ditador, para isso, indiscrições são liberadas à maneira de um conjunto de fábulas que somadas dão consistência à caracterização de um personagem possuído pela maldade em todas as áreas. A toda hora, aparecem micro-histórias reveladoras de facetas negativas de Kadaffi e, para cada papel desempenhado pelo ditador, são integrados personagens compatíveis com o contexto focalizado. E esses personagens, como coadjuvantes, passam a ter as suas imagens prejudicadas, pois associadas ao ator em relação ao qual todos ou quase todos têm, no momento, desapreço profundo. A circunstância coloca para os “envolvidos” nas micro-tramas a necessidade de se desfazerem do vínculo para minorar as perdas simbólicas e recompor as posições desvencilhando-se do jogo das contaminações por imagens. |
As notícias dão conta, por exemplo, de que a família Kadaffi (especialmente os filhos) cultivava o hábito de promover festas e contratar os serviços de artistas famosos para apresentações em tais eventos. A esta característica do clã foram acrescidos nomes de artistas que se exibiram nas referidas festas. Surge assim, o rol dos artistas convidados de Muammar, e os incluídos nesta divulgação têm o seu crédito abalado junto ao público e ao mercado. Este abalo leva ao arrependimento, formulado pela revista Exame como “clube dos arrependidos por shows para Kadafi”.
O arrependimento é uma forma de confissão que pretende convencer o receptor de que o próprio protagonista da ação a deplora depois de tê-la praticado. É uma estratégia que, em vez de buscar uma justificativa em defesa da ação cometida seu autor se inclui na acusação de erro e, neste sentido, não amplia o terreno de discussão sobre a inadequação comportamental. Aderindo ao juízo que o condena ele se equipara ao público que o julga e, em seguida, adota a estratégia de correção anunciada publicamente. O sucesso desta estratégia pode promover uma conversão simbólica, anulando as perdas e, até mesmo, auferindo ganhos superiores ao patamar inicial. Tudo depende da eficácia do efeito-arrependimento.
A estratégia de conversão simbólica mais definida, conforme as informações divulgadas, foi adotada pela cantora Beyonce. A artista informou que teria doado o cachê de um milhão de dólares para as vítimas do terremoto do Haiti, recurso que recebeu por uma apresentação durante a festa de ano novo de 2009 para a família Kadaffi. Seguindo o mesmo princípio, a cantora Nelly Furtado anunciou que planeja doar o seu milhão de dólares amealhado em 45 minutos de show feito para a família Kadaffi em 2007, porém não declarou para onde e quando será versada a quantia prometida. Já o rapper 50 Cent não divulgou o valor recebido por sua apresentação exclusiva na caravana de Mutassim Kadaffi durante um festival de cinema em Veneza, mas informou que fará doações ao UNICEF para atender às necessidades vitais de mulheres e crianças durante a crise na Líbia.
Uma outra forma de “pagar” a “taxa” de limpeza da imagem associada ao ditador líbio foi encontrada pela cantora Mariah Carey, que em 2008 recebeu um milhão de dólares para se apresentar para a família de Kadaffi. Ela se coloca em uma inusitada posição de vítima ao anunciar que não sabia que tinha cantado para Muammar Kadaffi: “Eu fui ingênua e não sabia para quem eu daria um show. Me sinto péssima e envergonhada de ter participado dessa sujeira. Seguir em frente é a lição que todo artista deve aprender. Temos que estar mais cientes e ter mais responsabilidades sobre nossa agenda de shows”.
Já a cantora Jennifer López, diante do temido quadro de perda de capital simbólico vivido pelos seus colegas, tem um recurso oportuno para salientar a sua distinção. Ela teria recusado o cachê de 2 milhões de dólares oferecido pela família Kadaffi para apresentação em uma das suas festas. De acordo com informações da revista Contigo, a artista teria declinado do convite feito há meses porque esta aparição poderia provocar danos à sua imagem.
A questão tratada pode ser alvo de muitas discussões. A mais óbvia, levando-se em conta o contexto político, diz respeito ao volume de capital financeiro despendido pela família Kadaffi para o lazer privado. Estes “milhões arrependidos” têm cheiro de muitas outras cifras destinadas a eventos alegres vividos pelo clã do ditador. São valores que dão sinais de outros valores. Mas a questão que não deve ser descurada diz respeito à associação entre as imagens e seus constrangimentos imprevisíveis. Por este viés, é possível observar os constrangimentos sofridos pelos contratados para a diversão de Kadaffi..
O mal-estar dos arrependidos não deve ser interpretado como sinal de vergonha sofrida intimamente, mas como uma estratégia associada aos negócios dos artistas que prestaram serviços ao ditador. A doação financeira guarda uma semelhança com as multas pagas pelas infrações sem que o infrator se sinta profundamente envergonhado ou convencido de que a sua ação deva ser evitada. A questão que mobiliza astros e estrelas está restrita ao fato de terem sido coladas as suas exibições sobre a atual configuração do ditador. É este o fator de cálculo que torna mais vantajoso o anúncio de devolução dos pagamentos para investimento em causas humanitárias. Não deixa de ser uma forma inusitada de se “lavar dinheiro” que vai se tornando sujo à medida que a figura de Muammar Kadaffi vai se cristalizando como monstruosa indignidade que ameaça a população da Líbia.
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