PECHMAN, Robert Moses. Desconstruindo a cidade: cenários para a nova literatura urbana. Revista Rio de Janeiro, n. 20-21, jan.-dez. 2007 Literatura e Experiência Urbana, pp. 32 – 39.
DESCONSTRUINDO A CIDADE: CENÁRIOS PARA A NOVA LITERATURA URBANA
Robert Moses Pechman
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (IPPUR/UFRJ). Pós-doutor pela EHESC-Paris. E-mail: betuspechman@hotmail.com.
(parte final)
(parte final)
Esses personagens não saem do lugar. Não pensam, divagam. Não contam de si mesmos, desfiam fantasias ou fantasmagorias. Não sentem culpa, não têm remorso, pois só conhecem simulacros de valores. Quase invariavelmente vêm do mundo da classe média, e não têm para onde subir nem para onde descer. Não gostam de si mesmos: tem auto-estima zero...
O sexo é muito difícil, embora falem muito dele... Não se penetram: embora juntem os corpos, copulam em separado. O sexo afinal, para quem o conhece de fato, é aquilo que mais aproxima o humano do divino. Como copular num mundo que renunciou completamente qualquer forma de transcendência? (Aguiar, 2003)
Estamos diante de uma experiência de convivialidade – a cidade – para a qual certas formas de subjetividade teriam se perdido. E a pergunta que interessa não é o impacto que essa experiência traz para a literatura, mas como é possível se suportar na cidade diante de tanta psicologização (simulacros de subjetividade) que impede toda relação, ou seja, que torna impossível qualquer transcendência que remeta os indivíduos para o plano coletivo da esfera pública, na medida em que não há pensar a vida urbana e seu caudal de sociabilidade sem que uma comunhão urbana seja tematizada para além da esfera privada. Nesse sentido, é interessante ver o movimento dessa literatura que se nutre da cidade, não podendo dela abrir mão, sob o risco de estar construindo não mais que cenários, ou contos que não se contam. Assim, nos damos conta que a “desrealização do espaço urbano, com a diluição dos referenciais sensíveis para o indivíduo, levao a sentir-se, mais e mais, como parte de uma sociedade abstrata”. (Figueiredo, 2003)1 Daí esses personagens à beira do abismo e de costas para a cidade. Assim também, a literatura urbana brasileira tem parido monstrengos, policiais, traficantes, marginais, detetives, “pequenas criaturas” (Figueiredo, 2003)¹ cuja aderência à cidade é incontestável, pois que se sentem muito vivamente fazendo parte de uma sociedade e de uma cidade tão concretas que, diante de qualquer vacilo, sofrerão o peso esmagador de sua concretude. Reconhecendo-se, para o bem ou para o mal, da cidade, eles se constroem aderidos a ela.
Que melhor exemplo da densidade urbana pesando sobre o sujeito urbano e sua subjetividade que os personagens do romance policial? Nascido no século XIX, o romance policial é a história da constituição da sociabilidade urbana na cidade das multidões. No labirinto infernal das ruas das grandes metrópoles era preciso reconhecer as pistas dos “homens perigosos” que se escondiam na cidade, ameaçando-a com a desordem, a criminalidade e desmoralização.
O romance policial nasce, então, não só como uma aventura literária, mas também como algo que pudesse mitigar o pavor burguês do seu outro na cidade (o trabalhador, o desempregado, o vadio, a prostituta, o ladrão, o assassino e o desordeiro), impedindo, em cada aventura, que a desordem triunfasse, que o mal se impusesse e que uma certa moral maldita contaminasse o todo social. De que outra coisa não fala, então, a aventura policial, senão de uma urbanidade, ou melhor, dos problemas de convivialidade na cidade, ou seja, de uma ética? Não seria fortuito, então, lotado numa delegacia policial de Copacabana, que um inspetor de polícia se chamasse Espinosa. Ora, a referência ao filósofo do século XVII remete diretamente para sua obra fundamental Ética, na qual ele se debruça sobre os problemas da moral.
Assim, no romance de Luis Alfredo Garcia-Roza O Silêncio da Chuva, para além de uma simples história policial, temos o tema das paixões humanas que aponta para a indagação de como é possível conviver com os outros e seus afetos privados. Mais ainda, o tema do convívio nos traz a questão da urbanidade, ou seja, o quinhão de cidade que cada qual tem dentro e que funciona como controlador de suas paixões pessoais, regulando dessa maneira o estar em coletividade.
Marcado por outra dicção, mas ainda assim enraizado em solo urbano, o romance Inferno de Patrícia Melo, de 2000, nos traz a saga de um menino entrando na adolescência e que de olheiro vai se transformar em chefe do tráfico e em mais um violento da cidade. O que interessa ressaltar deste livro, todo ele estruturado num modo de territorialização, que embora perverso, se apóia em identidades muito claras – a favela e a cidade –, é o estado de alerta em que o personagem se mantém para sobreviver. Em outros termos, embora ainda em Inferno a concretude da cidade se mostre com todo seu peso, este livro aponta para um processo de escasseamento da cidade e de prevalecência da cidadela como lugar murado e vigiado, onde o estado de alerta se banaliza e o outro é sempre uma ameaça.
Se fôssemos percorrer a literatura dos últimos quinze anos, veríamos como se tensiona essa relação entre lugares e não-lugares na narrativa: ora desconstruindo a própria cidade como lugar da identidade e da produção de subjetividades , ora confirmando a impossibilidade de que fora da comunhão urbana o social é impossível e se projeta num estado de natureza que linda com a barbárie.
Novamente reafirmo , não se trata da literatura e tampouco da natureza de seus personagens e como eles lidam com a perda da crônica de suas vidas. Resolutamente, tratase das cidades, que vão deixando de fazer sentido. Ou estariam produzindo outros sentidos? Se assim fosse, ainda seriam cidades?
Referências Bibliográficas
AGUIAR, Flávio. Texto extraído da orelha. In: OLIVEIRA, Nelson de (Org.). Geração 90. São Paulo: Boitempo, 2003.
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto. Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: EdUFMG, 2003.
FONSECA, Rubem. A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In: _____. Romance negro e outras histórias. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
GOMES, Renato Cordeiro. O nômade e a geografia: lugar e não-lugar na narrativa urbana contemporânea. In: Semear, n.10. Rio de Janeiro: PUC, 2004, p.135-151.
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MELO, Patrícia. Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MORICONI, Italo. Os cem melhores contos brasileiros do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
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RIBEIRO, Carlos. Imagens urbanas. In: OLIVEIRA, Nelson de (Org.). Geração 90. São Paulo: Boitempo, 2003.
SANT’ANNA, Sérgio. Conto (não conto). In: MORICONI, Italo (Org.). Os cem melhores contos
brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p.518-521.40 Revista Rio de Janeiro, n. 20-21, jan.-dez. 2007
Literatura e Experiência Urbana _____. Cenários. In: _____. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
_____. Estranhos. In: MORICONI, Italo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
SANTOS, Claudete Daflon dos. A viagem e a escrita: uma reflexão sobre a importância da viagem na formação e produção intelectual de escritores-viajantes brasileiros. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PUC, 2002.
Abstract – This article makes a brief inventory on how literature in Rio de Janeiro has turned the city into one of its themes over the past fifty years. There is a remarkable loss of urban substance, which strongly echoes in the characters’ imaginary on collective living in an urbis like Rio. Tributary of a notion of living in a contemporary globalized metropolis, new forms of sociability have emerged in the city. Thus, the emptying of public life, the impoverishment of urban ties, and the irruption of violence, which feed imaginary configurations of “a dangerous city”, have ultimately facilitated a perception of the city as a citadel, which begins to be experienced as a fortified place, where the stranger, the other is never welcome. Such evidence makes the city lose all of its permeability and become reticent to any sociability other than that of confrontation. Literature turns out to be one of the key places through which new urban experience reverberates.
Keywords Keywords: literature; city; urbanity; Rio de Janeiro.
Resumen – Se hace un breve balance de cómo la literatura en Río de Janeiro há discutido la ciudad en los últimos cincuenta años. Se percibe una pérdida de la sustância urbana que repercute fuertemente en el ideario que los personajes ficcionales formulan sobre el vivir colectivo en un urbe como Río de Janeiro. Nuevas formas de sociabilidad se plasman en la ciudad, sujetas a una visión de lo que sea la vida en una metrópolis contemporánea mundializada. Así, el agotamiento de la vida pública, la decadência de las relaciones de “ciudad peligrosa”, resultaron en la facilitación de la percepción de la ciudad como una nunca haga evasiva ante las formas de sociabilidad que no sean beligerantes. La literatura é uno de los lugares clave en los cuales la nueva experiencia urbana va a reflejarse.
Palabras-clave: literatura; ciudad; urbanidad; Río de Janeiro.
Nota
1
Pequenas criaturas é o título do livro de contos de Rubem Fonseca, de 2002, no qual este procura estabelecer um diálogo irônico com a tragédia grega. Mirando a grandiosidade da tragédia grega e a estatura de seus heróis, Fonseca, com suas pequenas criaturas, desdobra suas pequenas tragédias no cotidiano da grande cidade. Ao eclipse transcendente da cidade como esfera pública, Fonseca, empurra seus personagens a terem que decidir os caminhos de suas vidas numa cidade oca que não é mais referência (como fora a pólis grega) para os comportamentos públicos)
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