DIVERSÃO ... NAS CULTURAS URBANAS (4)
"Devagar se vai ao longe"
(ditado popular brasileiro)
Vicente Deocleciano Moreira
Desde que iniciamos a trajetória da divisão sexual do trabalho, humanos prosseguimos elegendo o jogo (os jogos) como atividade preferida para os momentos de diversão, ou seja, quando realizávamos atividades divertidas e, por isso mesmo, opostas à caça, à pesca, ao cuidados com plantações e criações de animais – vale dizer atividades que produziam riqueza e proviam a existência de sua inescapável base material; acrescentamos a estes afazeres produtivos as táticas, estratégias e práticas de guerra (ataque e defesa).
Divertir-se jogando, competindo, com toda alegria e prazer, era um meio de, por assim dizer, ‘repetir’ o cotidiano produtivo sob o manto de símbolos e signos ... diferentes sim, mas com semelhantes eficácia simbólicas.
Divertir-se jogando, competindo, com toda alegria e prazer, era também um meio de ‘manter-se em forma’, ‘exercitar-se’ – ainda que sem plena consciência disto – para os momentos geradores e promotores de riqueza e de guerra.
Estranho é que a palavra exercício tem origem grega e significa, em português, ascese. Daí, o ácido ascético ... popularmente conhecido como vinagre (vino acre ou vinho azedo). Estamos às vésperas da Semana Santa dos cristãos católicos (apostólicos romanos); e no ritual da Paixão (Pathos) de Jesus Cristo esses religiosos lembrarão que este homem pedira água (para matar a sede) e no lugar deste líquido os soldados colocaram em sua boca vinagre balsâmico. Este foi um dos momentos da ascese de Cristo, de Seu exercício de santidade e superação mística, de Seu sacrifício.
Se para nossos antepassados a diversão era ascese era sacrifício, onde estava pois o prazer e alegria dos momentos de diversão preenchidos pelo jogo, pelo lúdico?
A lembrança de duas considerações podem ajudar a responder esta pergunta: primeiramente, cabe lembrar que a ascese é, primitivamente, um episódio mítico/místico/mágico/religioso. Nas mitologias de criação do mundo em todas as culturas, o fundador ‘se reserva’ o direito ao descanso. A dimensão mística (de mistério) está assentada no não revelado, no misterioso. A face mágico-religiosa olha para um horizonte de complementariedade entre o profano, isto é, a atividade produtiva, o trabalho, e o sagrado, isto é, o descanso, a diversão.
O fato é que ontem e hoje, trabalhar e divertir-se, o profano e o sagrado, não são atividades tão distanciadas uma da outra como enganam as aparências.
Hoje (2011 depois de Cristo), a exemplo dos nossos antepassados, ao ocupar nossos instantes de diversão com jogos nada mais fazemos do que atestar que, nesse mister, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos antepassados da divisão sexual do trabalho. Jogamos, competimos, ficamos até estressados e, ainda assim, acreditamos, dizemos e nos convencemos (e aos outros) que estamos a nos divertir. Não conseguimos, nem mesmo nos momentos de diversão, nos desligar da produção de riqueza, da copetição e das disputas do cotidiano dos dias “úteis”.
Sim, o tipo conceitual e operacional de jogo a que estamos aqui nos referindo nada tem a ver com jogo(s) mediados por dinheiro: roletas, loterias, “jogo de bicho”, baralho e qualquer outro jogo a dinheiro. Nada tem a ver com jogos desportivos protagonizados por profissionais.
Via de regra, como protagonistas ou como observadores, espectadores estamos envolvidos com algum tipo de jogo em nossos momentos de diversão:
Atravessamos noite e madrugada jogando baralho, cartas;
Na areia da praia, jogamos futebol, volley, frescobol;
Sentados nos degraus (ou na arquibancadas) do estádio, refestelados no sofá da sala diante da TV, assistimos o jogo de times de futebol, volley, basquete, rtc.
No bar, entre goles de cerveja, jogamos sinuca, bilhar, ‘pauzinho” ...
“Atletas de fim de semana”, jogamos futebol de várzea (baba);
Crianças e adolescentes costumam jogar gude, baleô, amarelinha (macaco), “castanha”, caxangá, etc.
Meninos empinam pipas (arraias) num jogo, numa disputa de guerra com o objetivo de cortar a linha do adversário e jogar por terra a arraia do ‘adversário’;
Praticamos com a seriedade e o espírito competitivo de um militar ou de um empresário, jogos de caixa como “War”, “Banco Imobiliário”, e congêneres.
Jogamos dominó, dupla contra dupla, e nos divertimos ganhando, reclamando, competindo ... como estivéssemos em situações extremas de vida e morte;
Jogamos dama, xadrez, gamão ...
Jogamos games (computador, celular) em casa e nos shopping centers.
Poucas coisas fazem a felicidade dos filhos como jogar com os pais ... e a alegria comemorada aos pulos e gritos quando ganham deles.
Não poderia encerrar esta postagem sem retomar o sentido de complementariedade entre trabalho e jogo. Por exemplo, alguém corre o risco de ser ADVERTIDO se estiver se DIVERTINDO jogando Paciência (ou qualquer outro jogo de computador) no espaço e na jornada de trabalho.
Outro exemplo: em muitos países ricos, indústrias disponibilizam espaço, logística e material para que seus operários joguem (dominó, futebol ...), enquanto descansam ou folgam, sem que devam se afastar da fábrica. Tal ‘concessão’ traz como contrapartida o aumento da produtividade.
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(continua amanhã)
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