sábado, 23 de abril de 2011

GAETA - AS CIDADES DE BAUDELAIRE E HUGO ... (2)

GAETA - AS CIDADES DE BAUDELAIRE E HUGO ... (2)


Mas em Baudelaire __ e Benjamin acompanhará este aspecto __ é possível encontrar na modernidade a interioridade. No âmago da modernidade, na própria cidade moderna, da multidão, dos contrastes, do efêmero, a interioridade, a sensibilidade, a “alma” ainda está presente. Esta questão é crucial para Benjamin e aí sua afinidade com Baudelaire: modernidade e romantismo confluem.

Em Baudelaire, a ausência de totalidade é percebida, problematizada, e une-se à sensação de vazio, de esvaziamento, de percepção de dissolução da individualidade. Mas Baudelaire procura, e consegue encontrar, a beleza na modernidade. A partir deste corte radical, ele encontra a beleza na modernidade: no contingente (e não no eterno); longe da natureza (pois esta não é moderna); na sociedade; como qualidade social. O belo restaura a individualidade que se dissolve pela ação exterior. O belo deve ser buscado no que há de melhor na sociedade, no que está acima da média, da vulgaridade e da moral comum. O belo é sempre singular. 

“O belo pode-se distinguir em tudo o que sai do acostumado, do normal e do mediano. Inclusive o feio e o cômico, levados ao limite, são belos ... o artista tem o dever de ser uma exceção, de sentir mais que os demais e de maneira distinta; só marginalizando-se da sociedade pode estar em condições de analisar, interpretar e, dentro dos limites de suas possibilidades, orientar e dirigir a sociedade”. (ARGAN, p.78)

Embora algumas questões fiquem pendentes para Benjamin na sua procura de conciliação entre universalidade e essência (projetos França e Alemanha – futuro e passado), decorre disto algo essencial que é a importância ao desprezado, ao descartado, ao detalhe. A cidade será vista por esse ângulo: daí a contraposição à posição (não teórica, mas prática) de Haussmann, que a vê como um plano único, de único olhar, que se impõe à massa. 

O reconhecimento por Baudelaire da importância ao desprezado e ao detalhe, conectada a sua defesa da individualidade, representa também a constatação da inserção de uma nova sociedade que, avassaladora, destrói não somente a totalidade do passado ainda existente, como evita toda remontagem na medida em que impõe destruição permanente e renovação. Nessa perspectiva, a realidade é vista em Baudelaire como um amontoado e é a partir desta constatação que se constrói a beleza, o sentido e a unidade:

É esta mesma constatação que é utilizada na apreciação da cidade. Benjamin também encontra afinidade nesta sensibilidade baudelairiana. Em Benjamin a realidade é vista como esfacelada, o sujeito ameaçado na sua essência. Ainda assim, partindo de um alicerce em Baudelaire, Benjamin encontra a possibilidade de interpretar a sociedade e a cidade modernas a partir de construções e reconstruções diversas com os fragmentos que a compõem.

É possível observar a importância dada a cada fragmento, a cada qualidade, a cada ser, na medida em que ele contém toda a universalidade, na seguinte observação de Baudelaire sobre Delacroix:

“Quem, entre as pessoas clarividentes, não compreende que o primeiro quadro do mestre continha todos os outros em germe?”. (BAUDELAIRE, 1988, p. 65)

As considerações de Baudelaire para com o rejeitado são importantes na elaboração da abordagem benjaminiana, a qual destaca o valor metodológico do rejeitado (em seu duplo sentido). Em “A Modernidade”, de A Paris do Segundo Império em Charles Baudelaire, Benjamin traz, não por acaso, uma descrição em prosa de Charles Baudelaire escrita um ano antes de O Vinho dos Trapeiros:

“Aqui temos um homem __ ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis”. (BENJAMIN, 1991a, p. 78)

Essa descrição de Baudelaire é introduzida com a seguinte observação de Benjamin: “Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico”. 

Embora na sua análise, Benjamin retrate o sentimento de Baudelaire, do poeta e do artista, sem dúvida ele mantém afinidade com ele. A sua afirmação de que “trapeiro ou poeta __ a escória diz respeito a ambos; solitários ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam ao sono ...” (1991a, p. 78) aproxima o rejeitado economicamente e o culturalmente distinto frente ao mundo da ditadura do econômico. O trapeiro, como o artista, encontra, faz, recria. Além disso, “ [embora] o trapeiro não [possa] ser incluído na boêmia ... desde o literato até o conspirador profissional, cada um que pertencesse à boêmia podia reencontrar no trapeiro um pedaço de si mesmo. Cada um deles se encontrava, num protesto mais ou menos surdo contra a sociedade, diante de um amanhã mais ou menos precário” (1991a, p. 17).

Os “pedaços” e o “precário” ganham valor metodológico completando o “rejeitado”. O “caminho tortuoso”, enviesado, o olhar estrangeiro ganha destaque em Baudelaire e esses também são aspectos destacados por Benjamin. E é deste modo que é apresentada e entendida a cidade. Acompanhemos Benjamin na sua análise de Baudelaire:


“... Baudelaire gostava de apresentar como artísticos os traços marciais. Quando descreve Constantin Guys, a quem era muito apegado, visita-o numa hora em que os outros dormem: ‘Ei-lo curvado sobre a mesa, fitando a folha de papel com a mesma acuidade com que, durante o dia, espreita as coisas a sua volta; esgrimindo com seu lápis, sua pena, seu pincel; deixando a água do seu copo respingar o teto, enxugando a pena em sua camisa; perseguindo o trabalho rápido e impetuoso, como se temesse que as imagens lhe fugissem. E assim ele luta, mesmo sozinho, e apara seus próprios golpes’. Envolvido nessa ‘estranha esgrima’ Baudelaire se retratou na estrofe inicial de O Sol, talvez a única passagem de As Flores do Mal que o mostra no trabalho poético. O duelo em que todo o artista se envolve e no qual ‘antes de ser vencido, solta um grito de terror’ está compreendido na moldura de um idílio; sua violência passa a segundo plano, e permite a seu charme aparecer. Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros/ Persianas acobertam beijos sorrateiros,/ Quando o impiedoso Sol arroja seus punhais/ Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,/ Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/ Buscando em cada canto os acasos da rima,/ Tropeçando em palavras como nas calçadas,/ Topando imagens desde há muito já sonhadas.” (1991a, p. 68)

O caminho cambaleante, o tropeçar, chama a atenção de Benjamin. Este rumo destacado por Baudelaire é apresentado nas escolhas de Benjamin dentro da obra baudelairiana. Não somente na análise, destacada acima, como também na seleção de poemas: O sol; O vinho dos trapeiros; As velhinhas; Os sete velhos. Nestes poemas define-se um olhar, uma afinidade, que encontra no caminho irregular, no ritmo irregular, a crítica e a revelação da época moderna, dentro de um espírito filosófico e romântico. 

* * *

Além de Baudelaire, há uma outra presença vigorosa. Victor Hugo é esse outro grande relevo, o qual surge, até mesmo, para explicar o olhar particular, a leitura de Benjamin para com cidade moderna e a modernidade. Quanto a Victor Hugo, a consideração de Benjamin recai sobre Os Miseráveis e poemas selecionados, ainda que o principal retrato parisiense (da cidade concreta) de Hugo tenha sido feito em Notre Dame de Paris.

É mesmo curioso indagar porque Benjamin não adotou a perspectiva de Victor Hugo, na medida em que nesta __ mais que em Baudelaire __ há a denúncia clássica de esquerda da desigualdade e da injustiça social. Afinal, é reconhecida em Benjamin a forte presença da crítica social, do inconformismo, a partir da formulação marxista.

As menções a Victor Hugo nos textos básicos sobre a grande cidade moderna estão concentradas em A Paris do Segundo Império em Charles Baudelaire. Em A Boêmia as referências são a Os Miseráveis. Em O Flâneur são citados os poemas A inclinação do devaneio, Os castigos, além de Os Miseráveis. Em A Modernidade são citados alguns poemas e novamente Os Miseráveis.

O pensamento sobre a cidade em Hugo aparece, de modo mais evidente, em Notre-Dame de Paris, publicada em 1831. Hugo era obcecado pelo tema da cidade, de Paris, e apaixonado pela arquitetura, “esta arte – rainha”. Empenhou-se decisivamente na defesa dos monumentos antigos e encontrava na unidade da cidade medieval o ideal sedutor da “organicidade”. A propósito escreve sobre a Paris medieval:

“Então não era só uma bela cidade; era uma cidade homogênea, um produto arquitetônico e histórico da Idade Média, uma crônica de pedra”. (1998: p. 170)

A “crônica de pedra” é a cidade medieval: história e expressão dadas pela arquitetura. A cidade é monumento, escrito e linguagem. Ao mesmo tempo, seu apego apaixonado à cidade medieval é a afirmação da idéia do declínio trágico da grande arte. Hugo, com tristeza, testemunha seu desaparecimento no século XIX, não apenas pela ação do Estado __ a qual, na metade do século, seria simbolizada fortemente pela ação de Haussmann __ mas, e fundamentalmente, pela lógica inerente à modernidade.

O elemento fundamental de sua crítica à cidade moderna e a transformação urbana é a saudade. Deste modo, a cidade, entendida como produto artístico passa a ser apenas recordação. A cidade concreta, a cidade enquanto estrutura física revela, portanto, não somente a história como também a arte.

O seu negativismo está situado frente ao presente. A sua crítica dirige-se à modernidade e aos novos agentes sociais que conduzem o mundo, incluindo-se a burguesia e as classes revolucionárias. Ou seja, não se trata apenas de condenar a lógica econômica que nada vê a não ser o lucro. Deve-se observar que as suas críticas também eram dirigidas aos “dessacralizadores”, àqueles que, em nome da Revolução e da Razão, destruíam igrejas, catedrais e monumentos da nobreza:

Em Victor Hugo, a cidade é associada e reconhecida pelo monumental. Em contraste com a Paris de Baudelaire __ que é trivial, efêmera, da rua __ essencialmente moderna e na qual o poeta reconhece a capacidade dos objetos desprezados e pequenos dizerem “além de si mesmos”, a cidade de Hugo é monumental. A Paris de Victor Hugo é cidade monumento, porém já perdida.. 

Essa sensação de perda irreparável, por sua vez, é também moderna. Insere o autor como intérprete destacado da modernidade. O seu tema urbano mais importante é passado: Notre-Dame de Paris. Não há na cidade moderna, na sua construção, expressividade, arte, riqueza subjetiva objetivada, complexidade. 

Deste modo, o autor caminha para a abstração da cidade moderna. Antes era a “bíblia de pedra”. Mas, a lei do progresso, representada pela impressa, a substitui pela “bíblia de papel”. Somente a palavra pode dizer na modernidade.


(CONTINUA SEGUNDA  FEIRA, DIA 25 DE ABRIL/2011, COM A TERCEIRA E ÚLTIMA POSTAGEM)

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