Gratuidade no transporte coletivo
ou
Do direito de (apenas) alguns.
Marcos Fontoura de Oliveira*
O privilégio de utilização gratuita do transporte coletivo no Brasil por algumas categorias parece remontar aos tempos do Segundo Reinado, quando o imperador dom Pedro 2º, em 1869, concedeu a exploração de algumas linhas de bonde à iniciativa privada. Dentre os direitos e obrigações daqueles concessionários estava o de dar transporte gratuito aos empregados dos correios e à polícia em seus bondes ainda puxados a burro. A partir de então, as cidades brasileiras passaram a conceder gratuidade no transporte coletivo a categorias bastante diversas. Apesar da legislação brasileira garantir o benefício nacionalmente a algumas categorias, o quadro atual mostra um espectro bastante vasto. Observa-se que o caldeirão de privilegiados abrange de doadores de sangue em Cubatão a índios em Goiânia; de supervisores da Fundação Nacional de Saúde em Salvador a oficiais das Forças Armadas em Porto Velho. Compreender essa diversidade exige investigação. Belo Horizonte, inaugurada em 1897, teve seu primeiro sistema de transporte coletivo inaugurado em 1902 já com parte dos usuários, agrupados em sete categorias, tendo algum privilégio no pagamento da passagem.
Os escolhidos pelo poder público para receber passe livre nominal e numerado foram: o prefeito, o chefe de polícia e os detentores de alguns cargos no serviço estatal de bondes. Foram autorizados a viajar gratuitamente e em pé, em cada carro, um praça de polícia amada, um carteiro do correio, um estafeta do telégrafo e até dois empregados da prefeitura vinculados ao serviço de eletricidade da Capital. Completando o quadro, na forma de meia-passagem foi concedido um desconto de 50% para estudantes e a todos os usuários que comprassem a passagem antecipadamente foi concedido desconto de 20%. O sistema de bondes elétricos transportou 22 mil passageiros em seu primeiro mês de operação, sendo que 463 pagaram com algum desconto. Apesar de não conhecermos os quantitativos de utilização gratuita desse serviço, observa-se que, com relação aos descontos, o percentual de 2% de privilegiados pulou para 19% menos de um ano depois. Passados cem anos da inauguração das primeiras linhas de bonde em Belo Horizonte, o sistema de transporte coletivo por ônibus atende cerca de 40 milhões de passageiros por mês. Dentre seus usuários atuais, excetuando-se os trabalhadores que recebem o vale- transporte de seus empregadores, ninguém mais tem direito a desconto e cerca de 4,5 milhões de viagens são realizadas gratuitamente. Os privilegiados, que pagam menos que a maioria, ou não pagam, estão agrupados em 13 categorias distintas.
Dentre os contemplados com a gratuidade, apenas as pessoas com deficiência e os doentes renais têm sua renda verificada como pré-condição de concessão do benefício. Isso, por si só, já sugere que a política de acessibilidade social (gratuidade e desconto) vem atendendo a interesses diversos. Mas como é que se escolheu quem são os que não precisam pagar a passagem? Essa pergunta, que a análise histórica permite responder, precisa ser substituída por outra: quem é que precisa não pagar passagem ou pagar menos, para ter garantidos o direito à vida e à igualdade de oportunidades? A escolha desse quem deve ter em vista que a gratuidade será sempre uma política redistributiva: estaremos sempre tirando de uns para entregar a outros. Mas essa redistribuição precisa ser ética e, para tanto, será preciso subverter a escolha trágica; talvez assim como Walter Salles fez com o abril despedaçado de Ismail Kadaré**. Estamos conscientes de que, sem a definição de uma política clara de concessão de gratuidade e de desconto, não será possível justiça social. A acessibilidade social precisa ser elevada à categoria de política social, que efetivamente é; precisa ser tratada interdisciplinarmente. Mais ainda, precisa deixar de ser um benefício do setor transporte e passar a ser um benefício do setor público, inter-relacionando diversas políticas. O que vem nos impedindo avançar? O fato de que o transporte coletivo ainda está longe de ser alçado à categoria dos direitos fundamentais, pois permanece vinculado apenas à lógica da produção e do consumo de bens. Com um agravante, como já alertavam Benício Schmidt e Ricardo Farret, há 16 anos: "por ser um direito-meio, ele influencia os demais. Sem que ele seja garantido, os outros direitos básicos da sociedade serão apenas letra morta nos diversos estatutos legais".
Os escolhidos pelo poder público para receber passe livre nominal e numerado foram: o prefeito, o chefe de polícia e os detentores de alguns cargos no serviço estatal de bondes. Foram autorizados a viajar gratuitamente e em pé, em cada carro, um praça de polícia amada, um carteiro do correio, um estafeta do telégrafo e até dois empregados da prefeitura vinculados ao serviço de eletricidade da Capital. Completando o quadro, na forma de meia-passagem foi concedido um desconto de 50% para estudantes e a todos os usuários que comprassem a passagem antecipadamente foi concedido desconto de 20%. O sistema de bondes elétricos transportou 22 mil passageiros em seu primeiro mês de operação, sendo que 463 pagaram com algum desconto. Apesar de não conhecermos os quantitativos de utilização gratuita desse serviço, observa-se que, com relação aos descontos, o percentual de 2% de privilegiados pulou para 19% menos de um ano depois. Passados cem anos da inauguração das primeiras linhas de bonde em Belo Horizonte, o sistema de transporte coletivo por ônibus atende cerca de 40 milhões de passageiros por mês. Dentre seus usuários atuais, excetuando-se os trabalhadores que recebem o vale- transporte de seus empregadores, ninguém mais tem direito a desconto e cerca de 4,5 milhões de viagens são realizadas gratuitamente. Os privilegiados, que pagam menos que a maioria, ou não pagam, estão agrupados em 13 categorias distintas.
Dentre os contemplados com a gratuidade, apenas as pessoas com deficiência e os doentes renais têm sua renda verificada como pré-condição de concessão do benefício. Isso, por si só, já sugere que a política de acessibilidade social (gratuidade e desconto) vem atendendo a interesses diversos. Mas como é que se escolheu quem são os que não precisam pagar a passagem? Essa pergunta, que a análise histórica permite responder, precisa ser substituída por outra: quem é que precisa não pagar passagem ou pagar menos, para ter garantidos o direito à vida e à igualdade de oportunidades? A escolha desse quem deve ter em vista que a gratuidade será sempre uma política redistributiva: estaremos sempre tirando de uns para entregar a outros. Mas essa redistribuição precisa ser ética e, para tanto, será preciso subverter a escolha trágica; talvez assim como Walter Salles fez com o abril despedaçado de Ismail Kadaré**. Estamos conscientes de que, sem a definição de uma política clara de concessão de gratuidade e de desconto, não será possível justiça social. A acessibilidade social precisa ser elevada à categoria de política social, que efetivamente é; precisa ser tratada interdisciplinarmente. Mais ainda, precisa deixar de ser um benefício do setor transporte e passar a ser um benefício do setor público, inter-relacionando diversas políticas. O que vem nos impedindo avançar? O fato de que o transporte coletivo ainda está longe de ser alçado à categoria dos direitos fundamentais, pois permanece vinculado apenas à lógica da produção e do consumo de bens. Com um agravante, como já alertavam Benício Schmidt e Ricardo Farret, há 16 anos: "por ser um direito-meio, ele influencia os demais. Sem que ele seja garantido, os outros direitos básicos da sociedade serão apenas letra morta nos diversos estatutos legais".
Perguntas e respostas.
Sabina Augusta Kauark Leite - engenheira e especialista em transportes.
Como deveria ser tratada a gratuidade no transporte coletivo, tanto em relação às atuais categorias de beneficiários, quanto em relação às políticas públicas adotadas para essas mesmas categorias? Qual seria a forma de se fazer verdadeiramente justiça social?
O que me propõe a diretora da Tecbus - Consultoria e Projetos Ltda. é uma questão central. Quando concluí meu mestrado em Administração Pública, dei à minha dissertação um título que encerrava a seguinte pergunta: a gratuidade é um privilégio ou um instrumento de justiça social? Após a defesa da minha dissertação, junto à banca de doutores selecionada pela Fundação João Pinheiro, dei-me conta que não havia respondido, tacitamente, à minha própria pergunta. Hoje, creio poder afirmar que a gratuidade é sempre um privilégio e será um instrumento de justiça social se, e somente se, estiver bem articulada com as demais políticas públicas. Assim, a gratuidade concedida a carteiros, oficiais de justiça, empregados das empresas, dentre outros, é apenas uma forma de aliviar financeiramente os orçamentos de alguns órgãos públicos e empresas. Esses podem, assim, ter despesas menores às custas de quem está pagando pelo uso do transporte coletivo. No outro extremo, a gratuidade concedida a pessoas com renda insuficiente é uma forma de intervenção do Estado para obter a inclusão social de segmentos marginalizados. Nessa categoria inserem-se, atualmente, apenas as pessoas com deficiência, os doentes renais e as crianças em tratamento em clínicas de atendimento psicopedagógico. Essas categorias foram escolhidas, entre 1985 e 1991, para serem privilegiadas e hoje são responsáveis por cerca de 16% do total de viagens gratuitas. Acredito que é um acerto político tratar desigualmente esses desiguais. Os nossos erros são: permitir que quem não precisa continue usufruindo do benefício, que outros que também precisam não tenham acesso e que apenas os atuais pagantes arquem com todo o custo das gratuidades. Os principais financiadores da gratuidade são os usuários do transporte coletivo e sabemos, todos, que eles não são mais ricos que as pessoas beneficiadas. Por mais justa que possa (vir a) ser a concessão do benefício, a atual forma de custeio não o é.
Darci Teixeira V. Cruz - professora, Coordenação de Política Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED).
Atualmente, o Cartão Metropolitano de Transporte (CMT) possibilita o ir-e-vir do aluno com deficiência, e de seu acompanhante, sem limite de utilização. Considerando que o processo de inclusão social não se restringe à escola, com a implantação da bilhetagem eletrônica haverá algum tipo de restrição na utilização gratuita dos ônibus pelas crianças com deficiência?A gratuidade para as crianças com deficiência, matriculadas em escolas de ensino especial ou em tratamento em clínicas de atendimento psicopedagógico foi implantada em 1985, pela METROBEL, com o objetivo de garantir o acesso à escola e/ou clínica na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Inicialmente, o poder público concedeu uma quantidade mensal de passes para utilização do transporte coletivo, chamado passe livre unitário. O passe era entregue ao cobrador para usufruto da gratuidade, com todos os beneficiários passando pelas roletas. Com o passar do tempo, o mecanismo de controle se mostrou ineficiente pois o comércio dos passes e sua utilização por terceiros passou a ser um problema. Assim, aboliu-se o controle via roleta e as crianças, com seus acompanhantes quando necessário, passaram a embarcar e desembarcar pela porta dianteira dos ônibus, o que gerou uma outra irregularidade: sem controle da quantidade, os beneficiários passaram a utilizar gratuitamente o transporte também para as compras, o lazer etc. Essa falta de controle se aplica a quase todas as categorias, levando à situação – esdrúxula - de não sabermos quantas são, efetivamente, as viagens feitas nos ônibus de Belo Horizonte sem o pagamento de passagem. O controle existente se dá através da emissão de uma credencial, atualmente chamada Cartão Metropolitano de Transporte (CMT). Por força de acordo entre os diversos gerenciadores de transporte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, o CMT é emitido pela BHTRANS para identificar as pessoas com deficiência ou doença renal autorizadas a utilizar gratuitamente o transporte coletivo por ônibus em toda a região. A questão que se coloca, hoje, com a bilhetagem eletrônica, é que podemos controlar o benefício de forma mais conveniente. O cartão BHBUS substituirá o CMT e poderemos, a partir de agora, construir uma política pública mais responsável. Como cada viagem, gratuita ou não, e quer o usuário passe ou não pela roleta, será contada, será possível melhor escolher onde alocaremos os (sempre escassos) recursos públicos. A situação de permitir que determinadas pessoas, identificadas com determinadas carteiras, possam usufruir de um benefício sem que se saiba ao certo qual o custo do benefício, vai acabar. Respondo, então, à pergunta que me formula a professora. As crianças com deficiência, além do acesso à escola, têm, sim, o direito e a necessidade de serem incluídas na sociedade, acessando todos os serviços públicos disponíveis e para isso, se seus pais não tiverem recursos financeiros, o custo do transporte pode inviabilizar o acesso. A pergunta que, acredito, deva ser respondida é: como todas as crianças têm direito de acesso ao lazer, à cultura e ao esporte e, como também é certo que o serviço de transporte não pode suportar o ônus financeiro de atender a todas elas, vamos conceder um privilégio às crianças com deficiência, vamos extingui-lo ou vamos assegurar recursos para estendê-lo a todas as crianças da cidade? Para que não façamos escolhas meramente monetárias, vai aqui um alerta, buscando apoio nas palavras de Bryan Roberts: examinar de forma ampla o impacto de determinadas políticas sobre a cidadania social "nos permite obter um quadro mais completo das implicações de um determinado grupo de políticas sociais, que a simples investigação da sua eficácia em relação aos ganhos econômicos dos beneficiários".
Romilda Araújo - fisioterapeuta, Centro de Reabilitação (CREAB Leste).
Um dos objetivos da gratuidade no sistema de transporte é garantir o acesso da pessoa com deficiência aos serviços públicos, mas a maioria das pessoas com média ou grande incapacidade não conseguem sequer sair de suas casas. As ruas apresentam calçadas irregulares, meios-fios de alturas variadas, semáforos com tempos insuficientes para uma travessia segura, ônibus com degraus e portas estreitas, prédios públicos (inclusive escolas e serviços de saúde) com barreiras intransponíveis para uma pessoa com dificuldade de locomoção. Como se pode avaliar o impacto da gratuidade na inclusão da pessoa com deficiência em Belo Horizonte?
Essa questão pode remeter a uma outra: se a cidade é toda inacessível, que tal então criarmos serviços especiais que buscam as pessoas com deficiência em casa para que sejam transportadas diretamente a seus locais de desejo? Estaremos, então, diante de uma outra questão, mais contundente: se assim procedermos, o poder público estará liberado para deixar que a cidade fique com calçadas esburacadas, meios-fios irregulares e semáforos que parecem armadilhas de pegar pedestres incautos; e com ônibus e prédios públicos inacessíveis para muita gente? Os problemas de (in)acessibilidade devem ser equacionados pelo Estado, garantindo a todos os cidadãos o direito à cidade. Já estamos em processo de encaminhamento de alguns deles, senão vejamos: o Ministério Público de Minas Gerais está firmando termos de ajuste com diversos órgãos estaduais para garantia da acessibilidade às edificações e a BHTRANS está em processo de implantação do Controle Inteligente de Semáforos (CIT) que permitirá uma melhor definição de tempos de semáforo para a travessia dos pedestres em toda a área central de Belo Horizonte. Além disto, Belo Horizonte é a cidade que possui a maior frota de ônibus com piso-baixo de todo o Brasil, apesar deles ainda serem apenas 150 em uma frota de quase 3.000. Portanto, é preciso termos como meta uma cidade com acessibilidade integral, onde os equipamentos de uso público tenham desenho universal. Caso contrário, teremos serviços diferenciados e estigmatizados que não garantem o direito à igualdade, essencial para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme estabelece a Constituição da República. A gratuidade nos transportes deveria ficar, assim, reservada para garantir o acesso de quem não consegue pagar para dele usufruir, sendo ou não uma pessoa com deficiência. Qualquer pessoa deveria ter direito à gratuidade apenas se, necessitando utilizar o transporte coletivo, estivesse impossibilitada de utilizá-lo por falta de capacidade de pagar por ele. Vale lembrar que há dez anos atrás pretendeu-se implantar em São Paulo uma alteração profunda na forma de financiar o serviço de transporte coletivo, que seguiria o seguinte princípio: quem não tem, não paga; quem tem pouco, paga pouco; quem tem mais, paga mais. Apesar de tudo isso, e independente de haver ou não a concessão de benefícios tarifários, acredito que mesmo quando conseguirmos ter uma cidade com calçadas e ônibus acessíveis, haverá pessoas que não conseguirão usar o transporte coletivo por impossibilidade física, sendo pobres ou não. Essas pessoas devem ter direito a serviços especiais, assim como já é feito pela Secretaria Municipal de Saúde, em alguns casos: idosos podem ser vacinados contra a gripe em suas próprias casas e, em determinados casos, pessoas são transportadas de ambulância para fazer sessões de fisioterapia em unidades de saúde.
Elizabeth Dias de Sá - psicóloga e consultora educacional.
A concessão da gratuidade é estendida a todos os segmentos de pessoas com deficiência. Essa concessão responde a uma política compensatória?Pergunta complexa me propõe a presidente do Conselho Municipal da Pessoa Portadora de Deficiência de Belo Horizonte. As políticas compensatórias, por definição, são aquelas que consistem em um conjunto de medidas que objetivam amenizar os desequilíbrios sociais, em suas conseqüências, sem qualquer possibilidade de interferir em sua geração. O exemplo clássico é o seguro-desemprego. Façamos, então, algumas conjecturas A gratuidade para as pessoas surdas amenizam o que? Esse benefício não estará apenas mascarando a obrigação do Estado em oferecer benefícios que possam, efetivamente, melhorar a qualidade de vida dessas pessoas? Os surdos, até onde sabemos, vêm enfrentando problemas de discriminação social e falta de acesso a trabalho e lazer, que não têm a ver, diretamente, com o uso gratuito dos transportes. Talvez isso até mesmo explique por que essa categoria só foi contemplada com a gratuidade em 1989: a última categoria, dentre as deficiências. Tomemos, agora, a gratuidade para os cegos, primeira categoria de deficiência contemplada com o benefício em Belo Horizonte. (Há um registro de sua instituição na Capital mineira que remonta à época dos trólebus, mas o benefício em vigor data de 1984). Seria, nesse caso, um benefício tipicamente compensatório? Recordemo-nos, primeiramente, que uma pessoa cega pode precisar tomar três ônibus para fazer um deslocamento que uma outra pessoa pode fazer através de apenas uma viagem conjugada com duas pequenas caminhadas a pé. Assim, uma boa medida de equiparação de oportunidades seria estabelecer aos cegos o direito a fazer viagens com validação temporal da tarifa, ou seja, uma vez tomado o primeiro ônibus, as viagens feitas nos próximos 60 ou 90 minutos não seriam pagas. Para as pessoas que, além de cegas forem pobres, poder-se- ia conceder gratuidade ou algum desconto na compra de passagens. Na situação atual, em que a quase totalidade das pessoas que não pagam passagem está obrigada a permanecer na parte dianteira dos ônibus, espremidas pelos demais usuários, sem poder passar pela roleta, há um outro lado da gratuidade que precisa ser destacado. O uso do benefício vem estigmatizando pessoas com deficiência e idosos. O que fica subliminar quando andamos de ônibus é que aqueles ali da frente são os indigentes sociais, os cidadãos de segunda classe e que, para os intolerantes, deveriam ser proibidos de andar de ônibus nos horários de pico. Não é por outro motivo que muitos idosos, mesmo tendo direito ao benefício, pagam a passagem e passam pela roleta. O que precisa ser discutido por todos nós, formuladores de políticas sociais, é a necessidade (ou não) de se implantar políticas compensatórias, em detrimento de nossos compromissos políticos com políticas universais. Em uma sociedade tão desigual como a nossa, como garantir padrões mínimos de eqüidade social? O dilema ao qual estamos sendo submetidos é o de que estamos nos vendo forçados a implantar políticas cada vez mais compensatórias, privilegiando os segmentos mais carentes. Em outras palavras, é o Estado discriminando positivamente os mais necessitados. Mas quem é que são os mais necessitados, em um país com níveis de exclusão e miséria tão grandes? Concluindo, o desafio que está posto é abandonar as políticas de curto prazo para podermos construir novas formas de vida em comum baseadas em valores que possam prevalecer na coletividade.
Referências bibliográficas:
BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo pelo Prefeito Francisco Bressane de Azevedo em 16 de setembro de 1903. Belo Horizonte, 1903. 191p. BRASIL.Constituição 1988 . Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado S.A., 1988. 48p.
HABERMAS, Jürgen . A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001. 220p.
OLIVEIRA, Marcos Fontoura de . Gratuidade no sistema público de transporte de passageiros em Belo Horizonte: privilégio ou instrumento de justiça social? 2000. 205f. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte.
ROBERTS, Bryan R. A dimensão social da cidadania. Trad. Vera Pereira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n.33, ano 12, p.5-22, fev.1997.
SCHMIDT, Benício; FARRET, Ricardo . A Questão Urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. Capítulo III: A cidade do autoritarismo, p. 23-68.
* Analista de transporte e trânsito da BHTRANS. É engenheiro civil (UFMG), especialista em Percepção Ambiental e Espaço Urbano (Geografia/UFMG), especialista em Urbanismo (Arquitetura/UFMG) e mestre em Administração Pública (Escola de Governo/Fundação João Pinheiro). É autor de Transporte, privilégio e política: um estudo sobre a gratuidade no transporte coletivo em Belo Horizonte. Belo Horizonte: s.n., 2002.
** Abril despedaçado é o mais recente filme do diretor Walter Salles, inspirado no livro homônimo do albanês Ismail Kadaré. Foi lançado em 2001 no Festival de Veneza, onde concorreu ao Leão de Ouro, e foi recentemente lançado no Brasil. Ao transpor a estória para o sertão brasileiro do início do século 20, o diretor dá uma chance a um dos personagens, permitindo-lhe fugir de um ciclo inelutável, representado pelo movimento circular da bolandeira.
Fonte: Revista PENSAR BH - POLÍTICA SOCIAL Edição Temática nº. 3 (p. 5-9) maio/julho/02 - Secretaria.
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