sábado, 12 de fevereiro de 2011

GEY ESPINHEIRA - SOCIOLOGIA DA DELINQUENCIA (4)

GEY ESPINHEIRA - SOCIOLOGIA DA DELINQUENCIA (4)

 

(Continuação)

 

5. AGENTES E ATORES DA VIOLÊNCIA: UMA CONVIVÊNCIA CONFLITUOSA

Como a violência só pode ser captada como conseqüência, precisamente por não ter uma essência, a percepção da violência se associa a formas de conduta e a ações que configuram um modo de ser ou de agir – constante, ou efêmero e eventual – de modo que quando se fala em cultura da violência ou da delinqüência, ou mesmo de lugar marginal, deve-se levar em conta que essa imagem se preserva enquanto se reproduzem os fatores que a fazem pulsar, mas que se desfaz quando esses fatores são alterados. Essa “cultura”, portanto, não é algo duradouro, mas uma resposta à verdadeira cultura de exclusão que o modelo econômico, político, social e cultural produz, vácuo da ação política.
As pessoas não são – como muitos supõem – joguetes manipulados por forças poderosas e externas; elas têm a capacidade de reagir e de criar um mundo alternativo que permita alcançar estados de legitimidade adequados – e na medida do possível – às suas personalidades e às expectativas que criam como desejos desejados de realização de projetos que as animam. Goffman (1974) observou que os indivíduos, mesmo quando submetido a instituições totais, a exemplo de prisões, manicômios e conventos, são capazes de subverter a ordem da organização não apenas no sentido de desobedecê-la, mas de criar um modelo paralelo e independente de regras, normas e significados que dão sentido a vida, preservando o caráter e a personalidade desses indivíduos em um quadro apropriado de satisfação de desejos e vontades.
No Brasil, nos últimos anos, o crime organizado entrincheirou-se nos presídios e os transformaram em matrizes de suas organizações. O “lá fora”, a família e os amigos, movem a liderança a manter uma ligação efetiva entre os dois mundos, disseminando a força daqueles condenados sobre todos os demais que devem lealdade, fazendo do mundo do crime uma organização ampla e responsável pelos livres, assim como estes pelos aprisionados. Operar o sistema atinge, nesses casos, o clímax, com a ajuda, sobretudo, do celular e com ele a simulação de seqüestros e o comando de ações articuladas em todo o país. 
Estar de acordo, dissimular ou ir frontalmente contra a ordem depende dos jogos das circunstâncias e dos objetivos postos em questão propostos pelos indivíduos. Em outras palavras, o recurso à transgressão e à criminalidade depende do cálculo de custo/benefício, mas também do capital de valores sociais dos indivíduos. Assim, a sedução da formalidade legal quando se associa à capilaridade econômica de mobilidade social oferece recompensa aos que cumprem a ordem; em situação inversa, estimula a transgressão e o crime, na medida em que a sociedade põe ênfase no êxito do consumo sem peso equivalente nos meios para alcançar a condição de consumidor válido. Ou nas palavras de Merton (1970 p. 207) “Uma sociedade em que há ênfase excepcionalmente forte sobre objetivos específicos, sem uma correspondente ênfase sobre os procedimentos institucionais”.
A racionalidade da vida cotidiana é acompanhada de uma não-racionalidade da fruição da vida. Há um padrão de reprodução da vida social que é o da família. A expectativa é a de que os filhos, à medida que cheguem à vida adulta, façam o mesmo percurso que fizeram os pais: trabalhem, casem e vão constituir família morando em um imóvel em algum lugar. Emprego, moradia e família. Esse percurso, entretanto, é tumultuado por uma série de fatores que se relacionam com pré-requisitos, a exemplo de: capital educacional, capacitação profissional e articulação social. Baixo capital educacional e baixa capacitação e falta de articulação limitam em muito as possibilidades de realização de projetos. Há, para as pessoas que se ressentem desses pré-requisitos, dificuldades em ter uma vida normal, e isso inclui em sair da adolescência e tornar-se um adulto reprodutor da vida social familial. Cada vez mais um número maior de jovens não consegue inserir-se no mundo adulto familial e reproduzir o modelo social, provocando um desvio pela incapacidade de auto-sustentação.
O fenômeno da gravidez na adolescência e de famílias cujos lares são regidos por mulheres sem a presença masculina de cônjuge, denota uma mudança no padrão social decorrente da impossibilidade de assegurar a continuidade do modelo social tradicional. As jovens mães geralmente abandonam os estudos, interrompem o processo de socialização moderno, se distanciam mais ainda das possibilidades de trabalho e da cidadania. O tecido social está se dilacerando a ponto de apresentar no pano de fundo da sociedade empobrecida amplas esgarçaduras.
São essas carências sociais que contribuem para a construção da violência como uma forma de ser na sociedade. As falhas institucionais repercutem diretamente nas condutas individuais. São as instituições que orientam os indivíduos, de tal forma que a vida social impõe, necessariamente, a lógica do social sobre o individual, mas quando as instituições não são capazes de orientar, acolher e condicionar a vida social, os indivíduos se sentem mais aptos a escolher entre seguir as normas e as leis ou menosprezá-las e mesmo transgredi-las. Em outros termos, quando o indivíduo não é marcado por um papel social definido – porque todo papel social prescreve normas de conduta e objetivos a realizar – ou seja, quando não se sabe quem é e o que faz, ou ainda, não é reconhecido socialmente como um agente social válido, esse “ninguém” é desvalorizado e sua visibilidade social é de vagabundo: aquele que leva uma vida errante, vadio, mundeiro, leviano, entre outras acepções.
O não reconhecimento implica em desconstruir o outro, desvalorizá-lo. O ser desvalorizado, por sua vez, desvaloriza os outros, desqualifica-os e os vê com o sentimento da frustração e da humilhação e vinga-se sempre que a oportunidade se apresenta. A identidade é socialmente construída, socialmente representada, socialmente sustentada e transformada socialmente. O indivíduo está subordinado ao social e age sempre socialmente. Para Berger (1972 p. 113) a “identidade não é preexistente; é atribuída em atos de reconhecimento social. Somos aquilo que os outros crêem que sejamos”. De modo mais enfático, o mesmo autor concluiu: “Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade”. (p. 114).

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(Continua amanhã, domingo)

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