domingo, 13 de fevereiro de 2011

GEY ESPINHEIRA - SOCIOLOGIA DA DELINQUENCIA (5)


GEY ESPINHEIRA - SOCIOLOGIA DA DELINQUENCIA (5)

 

(Continuação)

 

6. A VIOLÊNCIA DA CIDADE: A URBANIZAÇÃO DA POBREZA

“Amparo da sociedade” e o seu oposto o desamparo a produzir desamparados da sociedade. Em grande medida se está falando precisamente de lugares da cidade onde está concentrado um grande número de desafortunados. E essa concentração não é casual, mas uma determinação da sociedade de classe que estratifica as pessoas segundo seu capital financeiro, econômico, social e cultural, determinando seus lugares na sociedade e no espaço urbano.
A estratificação urbana é nítida e as palavras “periferia” e “popular”, estão a indicar descentralização, afastamento e isso que dizer: urbanização precária (serviços e infra-estrutura deficientes ou inexistentes), moradia exígua e desconfortável e muitas vezes insegura; feiúra, insalubridade e outras deficiências que atormentam os moradores. Uma cidade é múltipla em sua configuração, como vimos na análise da cidade do Salvador (ESPINHEIRA, 2002):

A complexidade social do espaço urbano está precisamente no fato de que a cidade e seus espaços são lugares e não-lugares: de pertença, ou de estar; de passagem, transitórios; muitas vezes esses lugares traduzem conforto, segurança e são propiciadores de realizações, de sensações que dão significado à existência; em outro pólo, podem ser lugares do desconforto, da insegurança, inibidores de realizações e, por isso, frustrantes. A busca de adaptação ao meio constrói um modo específico de vida nesses lugares e na cidade como um todo.

  No mesmo estudo sobre o Subúrbio Ferroviário traçamos, em linhas gerais, uma descrição da área pesquisada, sobretudo as suas formas de convivência:
No Subúrbio a convivência com o feio, com o sujo, com a deterioração ambiental e com a violência gera uma autodesvalorização e, conseqüentemente, uma baixa solidariedade social, como se ali estivessem todos a cumprir um destino inexorável de sobrevivência competitiva nas mínimas coisas, sobretudo na ocupação de terrenos exíguos em lugares impróprios para a moradia, como se não houvesse nenhuma outra alternativa a não ser lutar por esse mínimo, pelo imediato, disputando palmo a palmo encostas, mangues e até mesmo a superfície do mar.

Não são opções dos indivíduos essa forma de morar e de viver. Não são eles os construtores do modo de vida que têm, mas a sociedade que os constrange, limita e impõe obstáculos que não podem transpor. O reconhecimento dessa forma de ser na trama urbana, leva à compreensão da complexidade do ser humano e da vida social, foca a sociedade em seu conjunto como uma força que pode brutalizar e “desumanizar” pessoas, levando-as a conflitos intensos e contínuos que constroem a violência como um recurso ao processo adaptativo para a sobrevivência.
Violência e crime, como visto, não decorrem de desvios pessoais, mas são construções sociais quando a própria sociedade não oferta meios para que as pessoas possam sobreviver e existir dignamente. Por sobrevivência se está falando aqui do básico: alimentação, moradia, vestuário, acesso à saúde e à educação; por existência: moradia, saúde, segurança, lazer, educação, fruição do conforto, da higiene, da beleza e, sobretudo, da realização do que denominamos animações da vida, tudo isso aliado a uma capacidade razoável de consumo e de devaneio, que liberta de todas as “prisões da vida real”[1].
São, portanto, as carências sociais da existência que produzem a violência como recurso e a consolidam como um modo de vida, como uma “cultura”. Quando se reconhece que “a gente vale alguma coisa quando tem alguma coisa; quando não se tem nada, a gente não vale nada”. É um pensamento corrente da sabedoria popular. Os “consumidores falhos” são nada na vida social, mas eles não aceitam essa redução, reagem, querem pertencer ao mundo e lutam ferozmente para isso, de tal modo que para eles os fins justificam os meios.
Voltamos, novamente, ao estudo acima referido para melhor compreender o sentido da construção social da violência ao proporcionar as condições de desigualdade social com a imposição de carências e da exclusão:
A seleção de lugares e sua qualificação geram expectativas diferenciadas no que se refere à ordem/desordem, lugares “normais” e lugares “desviantes”. A pobreza contemporânea já não traduz qualquer dimensão moral da velha pobreza, que em certo sentido tornava-se sinônimo de ingenuidade, de pureza e de virtude, na acepção de “pobreza franciscana”. A pobreza urbana periférica é necessariamente constrangedora, excluída e, por isso mesmo, jamais aceita passivamente a exclusão e reage com todos os meios para se articular com o centro, ainda que seja na esfera da criminalidade e da transgressão. Há, assim, uma violência necessária que emerge como reação e que assume diversas formas, tanto nas relações interpessoais, como nas transgressões frente ao normativo, ao legal; e a organização do crime numa rede, ainda que esgarçada, que engloba indivíduos e grupos. A urbanização da pobreza não é, paradoxalmente, uma construção da pobreza, mas sim da riqueza; assim como a periferia é um produto do centro.

Salvador, em seu conjunto, é uma cidade das desigualdades. Há uma Salvador rica e bonita, que vê o mar; há uma outra, feia e desumana, ora escondida do mar, fora da visão da cidade bonita; ora sobre o mar, sem terra firme para erguer moradias, em palafitas. Nos morros íngremes, nas encostas e nas cumeadas barracos e casas de alvenaria descarnadas revelando a pobreza de seus moradores.
O mapa da violência em Salvador faz coincidir na cidade feia os maiores índices de criminalidade, sobretudo assassinatos. “Impossível fugir a essa dura realidade” – como disse o poeta Vinicius de Moraes diante do inexorável sábado[2] – pobreza urbana constrói a violência e a consolida como modo cotidiano de ser. Casas gradeadas, estabelecimentos gradeados, bairros inteiros com grades de ferro. Medo de sair de casa e ter os bens roubados, do botijão de gás a eletrodomésticos; em alguns lugares medo de retornar e encontrar a moradia ocupada por outros que dela se apossaram; medo de ficar em casa; medo de viver; medo da espera de alguém que saiu e não sabe se volta.
Enfocando o medo pressentido em Bate-Coração, (Espinheira, 1990), no capítulo denominado “Os medos”, o sentimento é assim descrito:
Não dormir como dormem as crianças. Não descansar nunca. Saber-se espreitada e possível vítima de um assalto, estupro. Medo de ter os filhos tocados poro gente ruim. Medo dos outros, da escuridão, da noite, dos lugares ermos. Medo da chuva, do corrimento de terra que desaba e sufoca. Medo da morte, da dor, da solidão, da fome, da doença, do futuro. Medo dos mais fortes. Medo do ladrão, do criminoso, da polícia. Medo pelos filhos, de que sejam tragados pelo lado ruim do mundo. Medo de si mesmo, da ruindade e da brutalidade involuntárias. Medo do companheiro, da bebida do companheiro, de sua esquisitice, de sua fala e de seu silêncio. Medo da companheira, de sua generosidade aparentemente excessiva, ou da secura, do que anda aprontando. Medo do pai, da mãe, dos irmãos, dos mais velhos, da turma. Medo do amor e do ódio. Medo do vizinho, da piada, do falar sério, da cachaça que desce errada, da exigência da mulher. Medo do patrão, da falta de patrão. Medo de notícia ruim, de chegar em casa, de sair de casa. Medo da vida, do consolo da morte.

Sentimentos extremos e generalizados de desamparo. Naquele passado, como agora, a condição de vida de muitos milhares de pessoas é dramática. Vida de consumição, de desassossego, condição que pode se bem entendida nos versos do poeta José Régio, em seu poema “Fértil desespero”:
Vida!, vida sarcasta,
Brutal, terrível madrasta
Dos filhos que mais te querem!:
Que fizeste daquele pobre herói
Que sonhava os reptos de Hércules,
E sorria com olhos de veludo?
Que fizeste daquele pobre herói?
- Fi-lo herói a valer... : tirei-lhe tudo.

E foi assim que a realidade de jovens, muitos jovens, “madrastamente” levou tudo o que poderia ser vontade de realização, de desejo, de possibilidade de uma vida diferente. O último verso é simplesmente terrível:  “Fi-lo herói a valer... : tirei-lhe tudo”.  E, por acaso, não foi isso que a sociedade fez com todos e todos que sorriam e tinham olhares de veludo? Crianças e adolescentes para suas mães, transformados em bandidos pela polícia?   



[1] Cf. BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Donesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
[2] Referência ao poema de Vinícius de Moraes: O dia da criação.



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(Amanhã, segunda-feira, 6ª e última postagem)

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