segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ÁGUA (4)... DESASTRES NATURAIS E DESASTRES SOCIAIS

ÁGUA, TERRA, FOGO,  AR  (4)





         [jornal “Folha de São Paulo”. São Paulo, 3 de fevereiro de 2011, p. A3]


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Estudos nos mostram que os desastres "naturais" são moldados significativamente pelas mesmas desigualdades sociais que afetam o dia a dia




Desastres "naturais", como o que se abateu recentemente sobre o Rio de Janeiro, produzem reações psicológicas intrigantes.

Esse tipo de evento aguça nossa capacidade de empatizar com os outros e nos move a agir com generosidade ampliada, que outras situações com igual ou maior impacto em termos de sofrimento humano e número de vítimas não fazem.

 
Doações após o tsunami na Ásia são o exemplo mais claro e emblemático dos últimos anos. Em poucos dias, governos de todo o mundo haviam prometido doar quase US$ 5 bilhões para uma tragédia que, segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde, causou 32 mil mortes e afetou de alguma forma outras 500 mil pessoas.

Já o Fundo Global para o Combate à Aids, Tuberculose e Malária vai gastar esse ano cerca de US$ 20 bilhões (apenas quatro vezes mais), com medidas que beneficiarão 174 milhões de pessoas.

Mas essa reação psicológica diferenciada em face de desastres "naturais" se funda numa premissa enganosa (daí a utilização das aspas).

Embora os gatilhos dos desastres sejam eventos naturais (geralmente condições geológicas e atmosféricas), a magnitude de seus danos varia fortemente com as condições econômicas, sociais e políticas da região afetada.

Um recente estudo da ONU sobre desastres ocorridos no mundo de 1975 a 2007 conclui taxativamente: populações sujeitas a riscos similares em gravidade sofrem danos significativamente mais graves e extensos se morarem em países pobres e com governos corruptos e ineficientes. Japão e Filipinas são bons exemplos.

A probabilidade de mortes decorrentes de tufões nas Filipinas é 17 vezes maior do que no Japão, embora o número de pessoas sujeitas a esse evento natural seja similar!
(conforme "Risk and Poverty in a Changing Climate", 2009).

Como bem apontou a socióloga americana Kathleen Tierney ao analisar o evento do furacão Katrina em Nova Orleans, os desastres "naturais", ao contrário de outras mazelas sociais do dia a dia, geram "crises de consenso" (em oposição às "crises de conflitos"), de onde emergem "comunidades terapêuticas" que dão suporte às vítimas e ampliam o grau de coesão da comunidade ("Social Inequality, Hazards and Disasters", 2006).

Há várias explicações para esse comportamento incoerente. Fazemos distinção moral rígida entre os danos
causados por forças naturais e os causados pela ação humana.

Nos primeiros, não temos dúvida de que as vítimas são inocentes e nossa capacidade de empatia é automática. Nos outros, nosso julgamento é ofuscado por dúvidas sobre causalidade e responsabilidade que nos paralisam na ação.

 
Outro fator explicativo é a frequência com que esses eventos ocorrem. Se desastres "naturais" ocorressem com muita frequência, provavelmente nossa capacidade de empatia com as vítimas diminuiria, em decorrência do fenômeno da "anestesia moral".

 
Precisamos refinar nossos julgamentos morais à luz dos estudos acima citados, que mostram que os desastres "naturais" são moldados significativamente pelos mesmos fatores de estratificação e desigualdades sociais que influenciam a vida das pessoas no dia a dia.

 
Se conseguirmos, com isso, responder aos desastres sociais da mesma forma como respondemos aos desastres "naturais", estaremos no caminho certo para a minimização de ambos.


OCTAVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 39, mestre em direito pela USP, doutor em direito pela Universidade de Londres, professor da Escola de Direito da Universidade de Warwick, Reino Unido.

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