(Continuação)
2. GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA EM BAIRROS POPULARES
A violência não é algo em si mesma, isto é, alguma coisa, ou que tem forma. É um fenômeno social que só pode ser capturado em suas conseqüências. Essa natureza fugidia de algo que não é concreto, mas que se realiza como ação em um dado momento e se realiza, isto é, se concretiza, mas que também tem continuidade – não em si mesma – mas em representações sociais que constituem um campo cultural que pode ser concebido como comportamento ou habitus violento, qual seja a internação de disposições para agir contra o outro, no ato contínuo, preventivamente ou a posteriori, como vingança, toda vez que este outro venha a se constituir em obstáculo, ou desafiar um ou vários códigos de preservação de arranjos de convivência e de identidades em jogo.
Estes códigos estão ligados à construção de uma imagem necessária à sobrevivência em um determinado meio social, a exemplo de liderança ou comando, o que implica em desafio à honra, à coragem etc., além de exigir atos heróicos (ou anti-heróicos) em busca de reconhecimento, da fama que alimenta o imaginário de poder e liderança.
A cultura da violência está associada a um estado constante de anomia em relação à sociedade envolvente, mas no conjunto anômico novas regras se impõem e dão coerência a um modo especial de ser, e esta situação leva ao estabelecimento de uma ambigüidade do viver em dois mundos que se imbricam ao mesmo tempo em que se chocam.
Diante das dificuldades de inserção no mundo formal e abrangente da sociedade envolvente, as pessoas moradoras em bairros pobres criam, recriam, inventam formas de obtenção de renda em uma ampla variedade de jogos e negócios. São “jogos-de-cintura”, “agenciamento da malandragem” (Lemos-Nelson, 2002), tráfico de drogas, roubo, assalto, seqüestro, furto e assassinato, por um lado, quando as saídas são encontradas no campo da transgressão.
Uma parcela da população, ainda que diminuta em termos proporcionais orienta-se para a transgressão das leis para a realização de suas possibilidades de ganho, muitas vezes como dedicação exclusiva; ou em uma combinação de trabalho formal com operações criminosas. No imaginário social – e com comprovação empírica – a sociedade é vista como corrompida e corruptora, e a corrupção como uma expectativa a envolver altos escalões da administração pública e conivência com empresários.
O crime compensa, e a prova disso é o fato de que menos de dez por cento dos registros de crimes se transformam em processo legal. E esta proporção, entre zero e dez por cento é variável no tempo e representa a instituição da impunidade como um referencial estimulante para a preservação das práticas criminosas e para novos contingentes que chegam para renovar e aumentar o exército dos que se dedicam a atividades criminosas nas mais diversas modalidades.
3. HERDEIROS E REPRODUTORES DA VIOLÊNCIA
Criminosos autônomos ou associados (gangues, quadrilhas, galeras) sentem-se seguros em bairros em que o tecido social está dilacerado e, portanto, sem coesão para resistir à presença de pessoas que agem criminosamente e que se impõem pela intimidação dos outros através do recurso à violência: ameaça de iminente agressão, agressão preventiva e eliminação de todo aquele que esboçar reação ou ameaça ao domínio estabelecido, e nisso inclui a testemunha que se obriga a obedecer e se calar.
O domínio pelo medo exige a prática de ações que mantenham a razão do medo sempre atualizada. O medo, para ser constante e não apenas um surto, exige a realização de rituais de renovação do sentimento. Assim, com uma freqüência cada vez mais assídua, exemplos são dados de reafirmação do domínio criminoso sobre a sociedade normal, que deve se acumpliciar pela passividade, no que se convencionou chamar de “lei do silêncio”.
Esse estado de espírito e essa convivência entre criminosos e não criminosos constituem a subcultura marginal ou submundo do crime, onde nem todos são criminosos, assim como nem todos são não-criminosos, mas que os não-criminosos podem se tornar criminosos passivos. Essa condição de vida favorece a opção pela transgressão e pelo crime porque há obstáculos que se interpõem entre os indivíduos e o modo formalizado de obtenção de renda, ou seja, o trabalho, enquanto que, por outro lado, o crime torna-se compensador e sedutor em uma sociedade de impunidade.
Comportamento violento é também uma forma de afirmação social de muitos indivíduos que se recusam à diluição de sua personalidade no conjunto social desvalorizado de consumidores falhos (BAUMAN, 1998). Há coisas que só se conseguem “na raça”, e aquele que não tem “raça” sucumbe no cotidiano altamente competitivo. Sucumbe em dimensões múltiplas: da experiência erótica e afetual à realização de projetos pessoais de afirmação social pela obtenção dos bens materiais de existência.
Não se pode entender as motivações para a violência sem entender que a violência é um recurso social de sobrevivência, ou de um modo de viver possível, entre outros, mas que se constitui para alguns como a orientação a ser seguida como a mais vantajosa. O transcurso da vida cotidiana é mediado pelo cálculo em relação às possibilidades, um jogo de “perde-ganha”, ou na linguagem contábil, de cálculo de custo/benefício. Nesse jogo de racionalização está também o não racional, sobretudo quando se leva em conta o uso de drogas que provoca a alteração do estado de consciência e produz comportamentos imprevisíveis, tanto para quem age, como para os que sofrem a ação do indivíduo sob o efeito de substâncias psicoativas.
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(Continua amanhã, sexta-feira)
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