sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

GEY ESPINHEIRA - SOCIOLOGIA DA DELINQUÊNCIA (3)

GEY ESPINHEIRA - SOCIOLOGIA  DA  DELINQUÊNCIA (3)

(Continuação)

 

 4. SOCIEDADE DO PRAZER E DO SOFRIMENTO: A PULSÃO DO PRAZER

O jogo societal – para usar a terminologia tanto ao gosto de Maffesoli (1985) – tem sempre múltiplas dimensões e uma das mais importantes é a erótica, a fruição do prazer ligado ao erotismo; esta dimensão exige compartilhamento, associação e a “necessidade de expressar sentimentos por meio de atos exteriores” (1985, p. 28). A circulação do afeto submete a circulação econômica ao mesmo tempo em que esta realiza aquela. No circuito afetivo-econômico de representação da identidade e da realização das animações da vida dos indivíduos, a violência torna-se um dos meios de viabilização da existência nessa configuração social descontínua para os seus membros, mas continua como condição para todos em conjunto.
A sociedade de consumo impõe a identidade de consumidor e o reconhecimento dela de acordo com a capacidade aquisitiva de cada indivíduo. Um conjunto de consumidores falhos reunidos em determinados lugares da cidade constitui bairros pobres e pobreza; estruturas frágeis em que habitam pessoas socialmente fracas, incapazes de resistência política eficaz e de quase nenhuma iniciativa, também eficaz.
Não se pode viver – viver e existir – em uma cidade sem dinheiro. A desvalorização de uma pessoa como consumidor falho a faz desvalorizar outra nas mesmas condições e em condições superiores, ou seja, de consumidor válido. Há, para usar a expressão de Sennett (2001), uma “corrosão do caráter” que justifica o desprezo e a ação contra o outro. Essa corrosão advém da deterioração social da pessoa e do conjunto social em que ela se insere; o reconhecimento da falência social e a construção do ódio como alimento da alma dilacerada.
O meio ambiente humano não é apenas o que o contém, a forma que recebe o conteúdo, mas também o conteúdo mais sutil, o estado de espírito, que se transforma em meio ambiente no qual os indivíduos experimentam sentimentos e os manifestam em atos exteriores. Ódio, medo, desconfiança, desespero, consumição, inveja, vingança, humilhação, frustração são exemplos de sentimentos negativos que emergem nas pessoas que vivem em meio ambiente socialmente deteriorado, deixando de ser estado psicológico individual para ser uma forma social de sentir e existir, em suma, modo de estar-no-mundo.
Todo este quadro descrito explica, de certo modo, a freqüência da violência nos bairros populares, sobretudo em suas expressões mais radicais: as agressões físicas e os assassinatos. Assim, a associação entre pobreza e violência pode ser estabelecida.
A recordação de uma frase ouvida na rua, e que foi utilizada como epígrafe do livro Divergência e prostituição (ESPINHEIRA, 1984) sintetizava o ethos dos moradores de uma comunidade marginal: “Quem vive no Maciel tem que tratar ladrão e maconheiro como irmão”, leva à reflexão sobre a existência compartilhada com diferentes valores e práticas de conduta social. O significado desta sentença é o do imperativo da convivência com o que não se aceita sem se incomodar, isto é, quando se é obrigado a partilhar um mesmo espaço, uma vizinhança heterogênea, e de valores discordantes sem agir contra o que, ou de quem, se discorda. Eis o verdadeiro sentido do viver na ambigüidade de dois mundos e o estado anômico que essa vivência acarreta, quando não se pode conjugar as identidades em um e no outro mundo, na medida em que o indivíduo não se bifurca em formal e informal, mas mantém uma só identidade, e isso o obriga a submeter-se, em silêncio, à ordem dominante da proximidade.
Viver nas comunidades populares significa ser tolerante, não como consentimento, mas como estratégia. Os bairros populares – leia-se, pobres – são os micro universos de uma sociedade (cidade) hierárquica. Os seus problemas são, ao mesmo tempo, seus e da sociedade como um todo.  Elias e Scotson (2000, p. 16) observaram que:
Os problemas em pequena escala do desenvolvimento de uma comunidade e os problemas em larga escala do desenvolvimento de um país são inseparáveis. Não faz muito sentido estudar fenômenos comunitários como se eles ocorressem num vazio sociológico.

O mosaico urbano da área do Subúrbio é produto do modelo de desenvolvimento do país; uma das conseqüências da concentração da renda que se reflete na forma de urbanização das grandes cidades. Assim, as condições para a emergência e reprodução da cultura de violência são efeitos do modelo econômico, social e cultural que enfatiza a exclusão social e, por isso, colhe como resposta a rejeição da exclusão pela via do uso da violência como recurso social de inserção na sociedade.
É importante afirmar que as condições macro-econômicas são responsáveis pelas configurações micro-sociais, mas seria um grande equívoco entender estas como meras conseqüências daquelas, como se neste micro-universo não houvesse a geração própria de situações e condições que dão à sua configuração um caráter particular. Vale a pena recorrer a Octavio Paz (1992 p. 68):
Nossa atitude vital – que é um fator que jamais conheceremos totalmente, pois mudanças e indeterminação são as únicas constantes de seu ser – também é história. Quer dizer, os fatos históricos não são simplesmente fatos, mas estão embebidos de humanidade, isto é, de problematicidade. Tampouco são o simples resultado de outros fatos que os tenham causado, mas de uma vontade singular, capaz de reger sua fatalidade dentro de certos limites . A história não é um mecanismo e as influências entre os diversos componentes de um fato histórico são recíprocas, como tantas vezes já foi dito. O que distingue um fato histórico não é o produto dos chamados fatores da história, mas uma realidade indissolúvel. As circunstâncias históricas explicam o nosso caráter na medida em que nosso caráter também as explica. Ambos são o mesmo. Por isso toda explicação puramente histórica é insuficiente, o que vale a dizer que seja falsa.
Aqui a história é sinônima das condições macro-econômicas, ou seja, os condicionantes externos, estruturantes, das realidades próximas das comunidades, dos bairros no conjunto de uma cidade, por exemplo. O fazer da vida cotidiana e o modo pelo qual ela se faz, se reproduz, tem a ver com as forças e as estratégias com as quais o micro-social responde às pressões que lhes são externas, envolventes. A vida social jamais se processa a revelia dos indivíduos; são as relações que produzem as realidades e a realidade como configuração de um lugar, de uma sociedade ou mesmo de uma época. Assim se pode, na relação entre pobreza e violência, compreender , nas palavras de Octávio Paz “o emprego da violência como recurso dialético, os abusos de autoridade dos poderosos”.
Os que reagem, os que rompem a crosta da intimidação, precisam usar meios adequados à ruptura da crosta que os envolve. A violência “urbana” não é revolucionária ou política, mas responde à violência política que se exprime na conformação da urbanização da cidade, na organização da economia, na afirmação política do poder. A transgressão e o crime são formas alternativas de obtenção de algum poder, do mesmo poder que oprime a quem transgride, uma luta por igualdade de possibilidades dentro de um mesmo modelo social de diferenciação social. Eis o vazio político da violência, mas também a sua reciprocidade em relação à sociedade que a produz.
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(Continua amanhã, sábado)


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