JOSÉ SARAMAGO ELE MESMO (1922 - 2010) (9)
A cidade (as cidades) é um dos sujeitos focais da obra de Saramago. Mas não foi apenas por este motivo que fizemos oito postagens (nove com esta) e amanhã, 2 de julho, faremos a décima e última.
O outro motivo é a estatura própria do escritor, sobre a qual nossas palavras certamente se tornariam paupérrimas diante da fortuna crítica (ou seja, ensaios, comentários, elogios, críticas ...) presente no conteúdo de cada postagem que este Blog teve a honra de realizar.
Para fazer jus ao subtítulo ELE MESMO que distingue esta nona postagem (e para dar voz ao escritor) apresento, ao deleite dos leitores, a transcrição dos parágrafos iniciais de "Ensaio sobre a Cegueira" :
"O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, sd a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças necessárias das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamento, se quisermos usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca dacaixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha no circuito elétrico, se é que não lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se lhe dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atreás dele buzinavam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abriri uma porta, Estou cego.
Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, apenas de relance, os olhos do homeme parecem sãos, a iris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso qualquer o pode verificar, é que se descompôs pela angústia. Num movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego, repetia com desespero enquanto o ajudava, a sair do carro, e as lágrimas, rompendo, tornaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos. Isso passa, vai ver que isso passa, às vezes são nervos, disse uma mulher. O semáforo já tinha mudado de cor, alguns transeuntes aproximavam-se do grupo, e os condutores lá de trás, que não sabiam o que estava a acontecer, protestavam contra o que julgavam ser um acidente de trânsito vulgar, farol partido, guarda-lamas amolgado, nada que justificasse a confusão, Chamem a polícia, gritavam, tirem daí essa lata. O cego implorava. Por favor, alguém me leve a casa. A mulher que falara de nervos foi da opinião de que se devia chmamar uma ambulância, transportar o pobrezinho ao hospital, mas o cegodisse que isso não, não queria tanto, só pedia que o encaminhassem até a porta do prédio onde morava. Fica aqui muito perto, seria um favor que me faziam. E o carro, perguntou uma voz. Outra respondeu, A chave está no sítio, põe-se em cima do passeio.
(...)"
SARAMAGO< José (1922) - Ensaio sobre a cegueira: romance. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p 11-12.
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