quinta-feira, 15 de julho de 2010

A ALMA ... (10.1- FINAL) - MORADORES DE RUA

A ALMA NOTURNA DA CIDADE (10.1 - FINAL)- MORADORES DE RUA



Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
Eu nasci pequenininho
Como todo mundo nasceu
Todo mundo mora direito
Quem mora torto sou eu
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
Vivo na beira da praia
Com a sorte que Deus me deu
Maria mora com as outras
Quem paga o quarto sou eu
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia


(Dorival Caymmi - "Eu Não Tenho Onde Morar")



Moradores de rua são"invisíveis" para sociedade

Escritor se passa por morador de rua e relata, em entrevista ao iG, experiência de quem vive essa realidade.

Matheus Pichonelli, iG São Paulo | 03/06/2010 03:35

Durante quase dois anos, o jornalista e escritor Tomás Chiaverini, de 28 anos, percorreu as ruas de São Paulo e conviveu de perto com a situação dos moradores de rua da capital. Fez contatos, acompanhou ações da prefeitura, e se disfarçou de mendigo antes de ser recolhido em albergues e passar a noite com os moradores de rua do centro da cidade.

Os relatos sobre a experiência deram origem, em 2007, ao livro Cama de Cimento. Com a experiência de quem viveu a situção na pele, Chiaverini diz que a sensação é de violência real nas ruas da capital. Segundo ele, durante a noite há sempre a tensão diante da iminência de uma possível agressão.
Após analisar o levantamento feito pela Fipe sobre a população de rua na cidade, ele diz ter ficado surpreso com o aumento de moradores nessa situção nos últimos anos apurado pela pesquisa. Segundo ele, a sensação é de que nada do que está sendo feito resolve definitivamente o problema, já que esse aumento coincide com a pujança vivida pela economia no período.

Leia também: Oito personagens relatam o drama de viver na rua

A seguir, a entrevista:

iG - Chamou atenção o fato de durante esses anos ter crescido o número de moradores de rua em São Paulo?

Tomás Chiaverini - A estimativa que tinha em 2003 era que existiam 10 mil pessoas em situação de rua. Aumentou muito. É estranho aumentar tanto numa época em que a economia melhorou. Acho que isso é uma prova de que a política para essas pessoas não funciona. Parece que nada do que está sendo feito resolve definitivamente o problema. Conversei com pessoas muito sérias, gente que estudou o assunto a vida toda. Vi albergues muito bons, com espaço, programas de reinserção. Tem quem passa por esses lugares mais de três vezes e no fim sempre volta para rua. Mesmo a vanguarda da assistência social ainda se pergunta como fazer. Tem a questão econômica, que é fundamental. Mas se o problema for dinheiro, ele fica na casa de alguém e dá um jeito.

iG - O problema não é só econômico, então?

Tomás Chiaverini - Os motivos que levam as pessoas às ruas são diversos. Tem o catador de lata que não consegue voltar para casa com a carroça e acaba dormindo nela. Ou brigou com a mulher e nunca mais voltou para casa. Ou por causa das drogas, do álcool, pessoas não são mais aceitas dentro de casa. Tem quem perdeu emprego de uma forma traumática, violenta. Ou ex-presidiário que não é mais aceito aonde veio. Sempre tem outra coisa além da questão financeira. Não adianta dar trabalho ou dinheiro. Falta outra coisa. Cada um tem uma falta diferente, e o mais difcil é saber como tratar histórias tão diferentes de forma a não generalizar. Para alguns vai ser preciso tratar do alcoolismo. Já outros precisam de psicólogo.

iG - O que acha dos moradores e comerciantes que se mobilizam para não dar ajuda nem comida a essas pessoas?

Tomás Chiaverini - Não adianta não dar comida. Não é tirando o pouco de conforto que elas têm que elas vão ser ajudadas. Você pode resolver o seu problema, e não o delas. Porque elas vão para outro lugar. Comida e abrigo são questões emergenciais e é preciso impedir que elas morram de frio ou de fome. Essa é a primeira coisa. Depois se pensa em tirá-las da rua. Suspender a comida é como exterminar. É como dizer: 'vamos tornar a vida dessas pessoas insuportável. Vamos passar óleo na frente da loja, água pra em cima de quem dorme'.

iG - Como foi dormir na rua durante sua experiência?

Tomás Chiaverini - Na verdade, não dormi nenhuma noite. É impossível dormir. É muita tensão. Algumas vezes estive junto com técnicos do Capes. Uma vez passei a noite embaixo do [viaduto] Glicério, e outra em um albergue. Dessa vez, me disfarcei e fui recolhido. Me mandaram para um albergue na rua Na Paes de Barros.

iG - A abordagem chegava a ser violenta?

Tomás Chiaverini - Em São Paulo, não muito. Li recentemente uma reportagem da revista Piauí [sobre a Choque de Ordem da prefeitura] e achei que no Rio a situação é mais violenta. Quando fiz o trabalho, entre 2005 e 2006, as pessoas perguntavam quem estava interessado em seguir para o albergue. Quem estava ia, quem não estava, ficava.

iG - Por que muitos não vão para esses albergues?

Tomás Chiaverini - Muitas vezes porque você não pode levar grandes pertences. Mala de mão, sim. Agora, carroça e cachorro não podem levar. E as pessoas não queriam deixar eles de fora. Fizeram, no governo Marta [Suplicy, prefeita entre 2001 e 2004] uma experiência, o Projeto Oficina Boracia, com lugar para deixar carroçaa e animais. Mas depois me parece que mudou o perfil desse albergue.

Outra coisa que muitos me relatavam era que o rompimento dessas pessoas com a sociedade, antes de ir para as ruas, foi tão forte que eles acabam não se adaptando às regras do albergue. Na rua você vive num cotidiano de total liberdade, apesar de privado do conforto da vida moderna. Essa noção de liberdade e ruptura com a vida em sociedade não se encaixa na realidade do albergue, que tem regra para tudo. Tem regra para tomar banho, para jantar, para acender a luz, para sair do quarto. Tem fila pra tudo. É um esquema de quartel.

Outra coisa: muitos querem mesmo ser recolhidos, principalmente em época de frio. Até para evitar que morram. Agora, eles são levados para onde tem vaga. Então, quem vive na região da Praça da Sé pode ser levado para um lugar a 30 km dali. E, no dia seguinte, não tem vaga garantida para esse albergue e ele vai ter que voltar. Muitas vezes sai de lá de ressaca, não sabe onde está, não tem dinheiro pra voltar para aquela sua comunidade com quem mantém relação, seja com o dono da padaria, com o cara que deixa ele dormir no posto, debaixo da marquise ou mesmo com os conhecidos que o protegem.


(AMANHÃ, SEXTA-FEIRA, A ÚLTIMA PARTE DA ENTREVISTA)

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