FCCV / FORUM COMUNITÁRIO DE COMBATE À VIOLÊNCIA
Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 10, nº 23, 26/07/10
Incontinência midiática
Bruno, o ex-goleiro do Flamengo, está algemado no interior de um avião que o conduz, juntamente com seu amigo Macarrão, para Belo Horizonte. Além dos dois, integram o conjunto de passageiros policiais do estado de Minas Gerais que estão investigando o desaparecimento de Elisa Samúdio. O vôo tem como objetivo a transferência dos dois envolvidos no caso para uma unidade prisional mineira. Por tudo isso é possível afirmar que aqueles dois passageiros, naquela circunstância, estão sob a responsabilidade do Estado.
A aeronave, em termos físicos, pode ser descrita como uma cápsula indevassável. Não há como imaginar a ação de “janelas indiscretas” captando as imagens do que ocorre no interior do avião. A mídia necessita da “colaboração” de pelo menos um dos integrantes da embarcação para ter acesso aos relatos da viagem. Em princípio, a cobertura jornalística fica restrita aos tempos anterior e posterior ao translado, ao famoso adeus e ao seja bem-vindo, enquanto o tempo de percurso fica secreto, deixando em aberto a curiosidade: o que acontece naquele avião? E cresce aí aquela vontade de ser uma mosca para caber no cenário daquele transporte aéreo.
E eis que aquela “mosquinha” está embarcada e consegue entrevistar o goleiro Bruno e gravar as imagens. Ele é inocente e se mostra surpreso e decepcionado com o, até então, fiel amigo Macarrão. Descreve o encontro com Elisa como uma situação fortuita e se mostra alheio às circunstâncias relativas ao seu provável assassinato.
A entrevista entra no ar do programa Fantástico do dia 18 de julho de 2010, em uma demonstração de onipresença midiática. Ao lado das “precipitações” de Bruno, que ainda não havia incorporado o tom adequado às declarações próprias à defesa diante da condição de suspeito, atua conforme a sua experiência de fonte portadora de prestígio angariado no âmbito do futebol. Ele opta por falar e, em sua fala, devolve a bola para Macarrão, fechando o seu gol para possíveis ataques. As imagens permitem uma pergunta de fundo. Quem as teria gravado? E depois dessa questão elementar, como que sob a ação de uma tempestade, cai por terra o caráter indevassável do avião. E onde estão os furos naquela missão?
É interessante se observar que a incumbência policial não se contém diante da missão midiática, como se a segunda, em certo sentido, se impusesse à primeira, tornando inviável a discrição diante da possibilidade de sucesso da imagem de personagens envolvidos, inclusive daqueles que ocupam cargos públicos. Provavelmente o excesso de midiaticidade do caso Bruno tenha contaminado o procedimento policial a ponto de a mídia ser incluída como parte do aparato, como instância a ser favorecida com respostas que indiquem desempenho das instituições e de seus peritos.
Este modelo de atenção especial à mídia não se restringe à circunstância aqui focalizada que dá conta de uma entrevista em ambiente aéreo não tripulado por representantes dos meios de comunicação. Atualmente, é possível notar a “coincidência” entre as ações policiais e midiática em torno de um mesmo caso. Em plena madrugada, a polícia e um jornalista participam de uma ação no centro histórico de Salvador na qual são abordados usuários de drogas e um homem em conflito com a mulher. E o jornalista diz em tom irônico dirigido aos seus concorrentes: “Quem ronca não vê bronca!”. Ele integra a ação como parte natural da circunstância, dando à mesma a condição de ser propagandeada e, assim, evidenciar que, enquanto a cidade dorme a polícia age.
No cenário de delegacias, várias vezes aparecem jornalistas de programas de televisão entrevistando suspeitos e imprimindo, para efeito midiático, um alto teor de acusação que é incompatível à condição legal de suspeito. Há que se lembrar que naquele espaço há ritos a serem obedecidos e, ao contrário do que se pode intuir pela incontinência midiática , é um espaço no qual o Estado deve oferecer garantia a todos os que ali se encontram detidos. E um dos direitos daqueles que se acham em tal situação é justamente o de permanecer calado, de se negar a responder a qualquer pergunta. Não tem sido esta a prática dos detidos ao serem, insistente e desrespeitosamente, instados a falar à “autoridade midiática”.
Voltando ao caso Bruno, a situação tornou muito evidente a colaboração da polícia para com a mídia, especialmente para o progra-ma Fantástico, levando, temporariamente, ao desligamento da delegada que presidia o inquérito e que se encontrava no avião. Este efeito sugere a necessidade de se tomar distância mínima entre as ações e objetivos da polícia e da mídia, do contrário a chance de contágio na condução do processo pelos interesses midiáticos pode ter efeitos danosos e irreversíveis.
As instituições públicas devem conter-se diante do fascínio operado pela mídia e tê-la como instrumento extremamente adequado para a divulgação e familiarização dos papeis desempenhados por todos os órgãos públicos e não aceitar os seus scripts sensacionalistas que tornam comercializáveis questões de justiça e de ética pública
segunda-feira, 26 de julho de 2010
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