sábado, 24 de julho de 2010

CHÃO ... (7) O Bonde em Cena (Rio de Janeiro)

CHÃO DE MEMÓRIAS URBANAS (7) O Bonde em Cena (Rio de Janeiro)


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O Bonde em Cena
• Postado por Teatro de Revista em 2 fevereiro 2010 às 21:00
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Por Henrique Marques Porto

A Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro perdeu em 2009 a oportunidade de festejar duas grandes efemérides: os 150 anos do Teatro de Revista e do início da circulação dos primeiros Bondes Puxados a Burro. Ambos aqui chegaram praticamente juntos, no ano de 1859. Com exceção dos burros, que estes já tínhamos até em demasia, vieram do exterior, de terras estranhas, mas logo foram adaptados aos nossos usos e costumes e à nossa cultura. Não houve no mundo Revista como a brasileira, embora inspirada no teatro que se fazia em Paris e em Lisboa. E os bondes que aqui rodavam não rodavam como lá, mesmo controlados por administradores estrangeiros, principalmente canadenses.

Por mais de um século as Revistas e os Bondes marcariam a vida do Rio de Janeiro, contribuindo para a formação cultural da cidade, moldando a vida social, desenvolvendo hábitos e costumes, criando enfim os fundamentos do espírito carioca. Interferiram na própria paisagem da cidade. Os Bondes serpenteando imponentes e bonachões por trilhos espalhados por todos os bairros da cidade; os teatros abrindo-se ao povo com seus letreiros, convidando-o a entrar e ficar à vontade.

Durante o dia bondes apinhados de gente equilibrando-se nos estribos na correria suada para o trabalho. Entre eles os malabarismos quase circenses dos “condutores” –cobradores que percorriam os vagões pelos estribos tilintando moedas nas mãos-chocalhos. O calote era livre apenas para os que tinham a rara habilidade de pegar um bonde em movimento e saltar dele andando na primeira aproximação do condutor. À noite, vazios e românticos para acolher e conduzir em passeios os casais de namorados. Os teatros de dia fechados, de noite abertos para o riso e a alegria do povo.


Os Bondes e os Teatros eram, cada um a seu modo, locais de convivênvia e de expressão e construção da cultura popular. Eram espaços democráticos. Todo mundo andava de bonde e ia aos teatros, fossem ricos, remediados ou pobres.

A chegada dos bondes ao Rio foi cercada por ares de pioneirismo. Em 1859 apenas a França utilizava Bondes como meio de transporte de massa urbano. No início puxados a burro, logo depois a vapor. Mas sem aposentar os burros, que até nome de logradouro deram à cidade, como o Largo do Tanque em Jacarepaguá, onde havia um grande bebedouro para matar a sede dos animais que vinham puxando vagão desde Cascadura. Mais adiante surgiram os bondes à bateria, até a enorme evolução para os bondes elétricos. Rodavam em todo o Brasil, que chegou a ter a maior frota de bondes abertos do mundo. No final da década de 1930 circulavam 4.200 carros de passageiros em cerca de 2.250 km de linhas. O Rio de Janeiro teve um dos primeiros sistemas elétricos do mundo, e aponta-se a vizinha cidade de Niterói como a primeira do mundo a utilizar bondes movidos a bateria.

Transportando diariamente tanta gente era o ambiente perfeito para a propaganda e a publicidade de toda sorte de produtos. Sem contar os baleiros, os vendedores de bilhetes de loteria e o sem número de mascates e ambulantes. E foi nos bondes que apareceu o reclame mais famoso da história da propaganda brasileira, conhecido até por quem nunca colocou os pés no estribo de um reboque.


"Veja, ilustre passageiro,
O belo tipo fagueiro
Que o senhor tem ao seu lado.
No entanto, acredite.
Quase morreu de bronquite!
Salvou-o o Rhum Creosotado."

O autor é ninguém mais ninguém menos do que o jornalista, escritor e revistógrafo Bastos Tigre. Pioneiro da publicidade brasileira, o pernambucano Tigre escreveu poemas, peças de revista e fundou a primeira agência de publicidade nacional.

A Revista não teve a mesma e imediata receptividade que os bondes. Foi olhada com suspeita, foi rejeitada e até proibida. Mas resistiu e se impôs. O encontro, o flerte entre os dois era diário, com o bonde transportando o público que lotava os teatros e levando-o de volta para casa. O encontro definitivo, o enlace era inevitável e apenas uma questão de tempo. E aconteceu por fim nos teatros da Praça Tiradentes. Nos palcos!


Em 1927, por exemplo, Marques Porto e Ary Pavão o usaram como cenário e chegaram a transformar o Bond em personagem principal de dois impagáveis quadros da burleta A Mulata. O primeiro é intitulado Engenho Novo, linha de bonde do subúrbio carioca, cujo cenário é um bonde com o mesmo nome, que entra em cena conduzindo mais de dez passageiros. Entre eles estão o português Herodes Sampaio e a mulata Salomé, vestidos de noivos, que vão se casar num cartório. Um fiscal de linha faz o bonde parar numa cancela para a passagem de um trem que ainda está a quilômetros e muitas horas de distância. Empaca o casamento do português com a mulata e ali fica por dias, por meses, por anos esperando a liberação da linha.

- Ma ô bandêra, perche no dêxa passá c’o bond? -pergunta o motorneiro italiano.
-Tu não vê que o trem já tá saindo de Petrópolis! É por isso que na Alemanha há tanto desastre!
-responde o bandeira.
- Ma io sono italiano, capisca, figlio dum cane!
- Filho dum cano é você! No Brasil não há pressa!
- Per Dio Santo...
- Você perdeu o santo e eu daqui a pouco perco a ... santa paciência!

E a coisa vai por aí, com rifeiro, baleiro, verdureira (uma portuguesa de “Bizeu”), mata-mosquito, bolina “agoniando” sorrateiro uma mocinha que está acompanhada pela mãe e um português cada vez mais neurastênico com a demora absurda e com a ameaça de ficar sem a mulata com a chegada inesperada de Tico Tico Mão na Roda, mulato e chofer de madame, sobre quem Salomé comenta:
“-Foi na companhia dele que eu perdi meus tempo”.

O quadro fecha com um número musical. Um “Vira” puxado pela verdureira e cantado e dançado por todos. Fecha o pano e entram em cena o Compère e a Comère (condutores do espetáculo). Na cortina comentam a representação. São também os autores trocando dois dedos de prosa com o público:

- O bonde em cena já não é novidade. -diz a Comère.
- É um recurso do autor que não pode fazer a charge política... -responde o Compère.
- Admira-me como os nossos autores conseguem fazer tanta revista por ano...
- Por ano? Fazem-nas por dia, por hora, por minuto!
- Em que fonte irão beber tantas idéias?
- Você não leu a entrevista do Pirandello com um burro?
- Eu não entendo a linguagem dos burros...
- Mas há muito literato que entende...
- E daí?”
- Consultam as últimas novidades da Folies Bergers, Nuevo Mundo, London Comedy, Almanaque de Anedotas e mais a graça de toda gente...
- Irmãs Paula do humorismo nacional. (E saem)

O texto, que tem o estilo de Ary Pavão, aproveita para dar uma alfinetada na intelectualidade patrícia que vivia a fazer pouco caso da revista e não gostava muito de bondes. O duplo sentido pode estar também presente. Quem seriam as “Irmãs Paulas do humorismo nacional”? Os revistógrafos ou os “literatos”?

A cortina reabre para o segundo ato com um número musical, seguido de outro quadro, continuação do que encerrou o anterior. O nome agora é Engenho Velho -outra piada com linha de bonde, esta referindo-se a antigo bairro do Rio, cujo centro era o Largo da Segunda-Feira, na Tijuca. É o mesmo bonde com o nome da linha trocado e os mesmos personagens do quadro anterior. O mato cresceu em volta, o bonde está corroído e gasto, há roupas estendidas em seu teto, a secar, todos estão mais velhos e vestindo roupas puídas. Herodes, o português, montou sua barbearia no local, a verdureira cultiva “coives e nabiças” numa horta, o baleiro cresceu e suas roupas ficaram curtas e até uma criança nasceu ali, no bonde! Produto de investida mais audaciosa do bolina, que a esta altura está foragido.

Depois de tanto tempo, a Light (que controlava os bondes) manda cobrar dos passageiros-moradores o consumo de energia, provocando a revolta de todos. E o quadro termina com protestos, quebradeira e fuga geral.

Ou seja, a idéia dos quadros sugere a vida vivida num Bonde! Com seus personagens típicos, as mazelas dos serviços públicos, as encrencas da vida cotidiana e as situações criadas naqueles vehículos que tiveram enorme importância para os costumes e a vida social do Rio de Janeiro. Importância cuja dimensão só a Revista foi capaz de compreender.

Os Bondes, que não poluíam, foram retirados em nome do que se convencionou chamar de “progresso”, e para abrir caminho à invasão dos carros e ônibus que queimam gasolina e óleo diesel. A Revista, já com pouco público, mal via parar um bonde em frente a um teatro.

A vida do Rio de Janeiro estava mudando, assim como mudavam seus tipos característicos, que logo desapareceriam para sempre. Os bondes foram desmontados e vendidos como sucata nos anos 1960. O derradeiro bonde a circular foi um Alto da Boa Vista, que fez sua última e solitária viagem em 1967, acompanhado por poucos passageiros. Sob as ruas do Rio atual estão enterrados seus restos: os velhos trilhos por onde deslizavam preguiçosos, festivos e barulhentos. Não foi muito diferente a sorte da Revista.

Os Bondes e o Teatro de Revista chegaram juntos ao Rio de Janeio em 1859 e juntos o deixaram pouco mais de cem anos depois. E nunca mais se viu uma cidade como aquela.

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