domingo, 4 de julho de 2010

A ALMA NOTURNA DAS CIDADES (2) João do Rio

A ALMA NOTURNA DAS CIDADES(2)- João do Rio

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Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?

A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida – são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem – o Largo de Paço. Foi esse largo o primeiro esplendor da cidade. Por ali passaram, na pompa dos pálios e dos baldaquins d’ouro e púrpura, as procissões do Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao lado da Praia do Peixe, simples vegetação de palhoças, o comércio agitava as suas primeiras elegâncias e as suas ambições mais fortes. O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir cedo. À noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução morre no seu bojo como um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios revérberos parece dormitarem, e as sombras que por ali deslizam são trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem pousada, imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos reflexos. O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito.

E por quê? Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias...

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João do Rio - "A alma encantadora das ruas"

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