quarta-feira, 14 de julho de 2010

A ALMA ... (9) – SOLIDÕES URBANAS

A ALMA NOTURNA DA CIDADE (9 ) - SOLIDÕES URBANAS


Chão de Estrelas

Silvio Caldas / Orestes Barbosa

Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de 'doirado'
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Nosso barracão no morro do salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na janela qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão.


Chove Lá Fora

Tito Madi


A noite está tão fria
Chove lá fora
E essa saudade enjoada não vai embora
Quisera compreender porque partiste
Quisera que soubesses como estou triste
E a chuva continua
Mais forte ainda
Só Deus pode entender como é infinda
A dor de não saber
Saber lá fora, onde estás, onde estás
Com quem estás agora, agora
A noite está tão fria
Chove lá fora
E essa saudade enjoada não vai embora
Quisera compreender porque partiste
Quisera que soubesses como estou triste
E a chuva continua
Mais forte ainda
Só Deus pode entender como é infinda
A dor de não saber
Saber lá fora, onde estás, onde estás
Com quem estás agora, agora



Vicente Deocleciano Moreira


Chão de Estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, e Chove Lá Fora de Tito Madi, esses dois monumentos da Música Popular Brasileira abrem esta nona (e penúltima) postagem da série A ALMA NOTURNA DA CIDADE.

O subtítulo SOLIDÕES URBANAS – no plural - tenta abrigar reflexões sobre dois tipos de solidão, presentes nas cidades: a coletiva Chão de Estrelas)e a individual (“Chove Lá Fora”). Ambas as letras têm referências noturnas.

Silvio Caldas e Orestes Barbosa compuseram Chão de Estrelas em 1935/1937, numa época em que os morros do Rio de Janeiro não tinham tantos barracos, tantos moradores e como hoje (2010). Isto significa dizer, também, que na década de 30 (século XX) os serviços públicos de energia elétrica evidentemente não cobriam os morros como hoje. Então, a noite era profundamente escura nos morros e favelas do Rio de Janeiro

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão




Antes, as paredes eram de tábua, papelão ... o teto era feito zinco e esburacado "Mas a lua furando nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão"; metáfora e poesia de uma condição habitacional precária e subhumana - a exemplo do romantismo de "Ave Maria no Morro" (Herivelto Martins):


Barracão
De zinco
Sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe

Felicidade
De arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu

Tem alvorada
Tem passarada
Ao alvorecer
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer

E o morro inteiro
No fim do dia
Reza uma prece
À ave maria
E o morro inteiro
No fim do dia
Reza uma prece
À ave maria

Ave maria
Ave



Hoje, apesar do largo emprego de tijolos, telhas de barros, cimento nas habitações dos morros cariocas, isto não quer significar, porém, que os moradores ficaram infinitamente mais ricos em condições económico-financeiras ou em ofertra de serviços e políticas públicas. De uma forma ou de outra, além da letra de Silvio Caldas e Orestes Barbosa traduzir um sentimento de soldião não apenas do sujeito lírico mas de toda uma coletividade.


O fato é de zinco ou de tijolos, que ontem ou hoje os morros do Rio de Janeiro, principalmente à noite, são de uma profunda solidão.


****

Chove Lá Fora (Tito Madi) é o próprio ‘hino’ da solidão (e da saudade) individual noturna., tendo a chuva por coadjuvante.

A noite está tão fria
Chove lá fora
E essa saudade enjoada não vai embora
Quisera compreender porque partiste
Quisera que soubesses como estou triste .


No entanto, a chuva pode servir de conforto e de consolo para o(a)s solitário(a)s dos grandes centros urbanos; para aqueles que têm o hábito de se autocomiserar (ter pena de sí próprio) em sua solidão, em seu ‘abandono’. Nesses casos, o(a) solitário(a)o sente o conforto e consolo de que, por causa da chuva, as ruas e bares estão vazios, menos populosos. Mesmo que não fosse/ estivesse solitário(a), de qualquer modo dificilmente sairia de casa para enfrentar engarrafamentos, ruas cheias de água … e outros incómodos próprios de uma noite chuvosa nas cidades.


A alma humana e a solidão humana – e não somente a alma noturna e a solidão da cidade – parecem insondáveis.










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