terça-feira, 31 de maio de 2011

2 DE JUNHO COMEÇA O MÊS MILTON SANTOS NESTE BLOGUE

 QUINTA PRÓXIMA, 2 DE JUNHO, COMEÇA O MÊS MILTON SANTOS NESTE BLOGUE



DEZ  ANOS  SEM  MILTON  SANTOS
3/5/1926, Brotas de Macaúbas (Bahia - Brasil ) -  24/6/2001, São Paulo (Brasil)


CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (2)

[Fonte - NAU LITERÁRIA A Poesia Urbana de Chico Buarque 1 Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007]

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE  (2)

Vivian C. Alves de Carvalho

3 Terceira parte

Outra faceta da cidade bastante explorada por Chico é a malandragem. De um lado temos aquele malandro “pratica a astúcia pela astúcia”, usando os termos de Antonio Candido em Dialética da Malandragem, para se safar de confusões cotidianas, como pagar a conta do bar; o clássico malandro carioca tão presente nos sambas de Noel Rosa, por exemplo. De outro lado, o malandro profissional, com gravata e capital, que nunca se dá mal.

Comecemos com a canção que introduz a Ópera do Malandro, peça escrita por Chico Buarque em 1978, O malandro:


O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé
O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português
Vol. 03 N. 01 _ jan/jun 2007
A Poesia Urbana de Chico Buarque 7
O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor
Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis
O usineiro/Nessa luta
Grita (ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arreglo/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom
O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação


O malandro, de acordo com a concepção de Antonio Candido em Dialética da Malandragem, ensaio dedicado ao romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, é aquele sujeito que oscila entre o pólo da ordem e o pólo da desordem. Ou seja, se comporta ora “segundo as normas estabelecidas”, ora “em oposição ou pelo menos em integração duvidosa em relação a elas” (CANDIDO, 2004, p. 32), optando por agir de uma forma ou de outra conforme a conveniência: se lhe convém sair do bar sem pagar a conta, não é porque isso representa uma violação das regras estabelecidas que vai deixar de fazê-lo. Se lhe convier infringir as leis, o fará sem culpa. Mas se não houver motivo para tanto, evitará a desonestidade.

De forma resumida, essa é uma boa definição do típico malandro carioca. Os versos acima   transcritos representam uma espécie de efeito dominó, uma vez que um personagem vai prejudicando o outro em nome dos próprios interesses sucessivamente. Assim, todos acabam entrando no pólo da desordem de forma circular. O malandro dá início à história: bebe um gole de cachaça e sai sem pagar; o garçom se dá conta de que sairá no prejuízo e rouba um dinheiro do caixa do bar; o dono do bar, o português, estranha o rombo nas finanças e dá um calote no distribuidor; este por sua vez passa a perna no usineiro, que passa a dever para o banco; assim, mais impostos são cobrados sobre a cachaça; os ianques, então, proíbem os soldados de beber e a cachaça fica parada no barril. Como estamos falando de um círculo, a situação passa a atingir novamente os personagens iniciais: o usineiro descarrega no distribuidor, que cobra do português, que corta o salário do garçom, que, finalmente, trata de entregar o malandro à justiça.

Portanto, temos aqui um tipo de malandragem que tem suas conseqüências, mas que não chegam a causar um dano irreparável à sociedade como um todo. É uma malandragem que, no fim das contas, tem um efeito mais negativo para o próprio malandro do que para aqueles que ele consegue burlar. De qualquer forma, nota-se que a malandragem está em todos os personagens, nenhum deles hesita em prejudicar o próximo para livrar a própria cara. Sendo assim, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão; não há razão para sentimento de culpa ou arrependimento.

O malandro foi o único que foi parar na justiça porque foi o causador de tudo, não porque representa o maior perigo para a sociedade. Além disso, o malandro não tem a quem recorrer.

Mas Chico Buarque enxerga um outro tipo de malandro que é bem mais perigoso. Oscila entre os pólos da ordem e da desordem de uma maneira diferente: aparentemente é um cidadão de bem, que respeita as regras e luta pelo povo; mas na realidade está apenas cuidando de interesses pessoais. Dizendo de outro modo, na verdade esse malandro não conhece de fato a ordem, pois só está nela nas aparências. Vejamos o seguinte poema:


Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central


O que podemos observar é um poeta ciente de que aquela malandragem quase ingênua de   antigamente, da “astúcia pela astúcia” simplesmente não existe mais. O que temos hoje é o malandro poderoso, que por mais que todos reconheçam seus atos ilícitos, jamais sofre as conseqüências deles. Esta canção é também faz parte da Ópera do Malandro, de 1978. Há quase trinta anos atrás, Chico Buarque parecia prever o que se tornaria o vergonhoso cenário político nacional: Malandro candidato a malandro federal / Malandro com contrato, com gravata e capital / Que nunca se dá mal.

Aquele malandro dos velhos tempos foi obrigado a se render às exigências da dura realidade das grandes cidades: trabalhar muito para sustentar mulher e filho e tralha e tal. Enquanto o novo malandro se ocupa em sair em colunas sociais, ele chacoalha num trem da
Central. Assim, fica constatado: Que aquela tal malandragem / Não existe mais.

4 Quarta parte

Uma grave conseqüência do acelerado avanço da urbanização e do descaso político é a desigualdade social. E essa questão não passou despercebida pelos olhos do poeta Chico Buarque. São inúmeras as canções que abordaram o tem. Eis aqui Brejo da Cruz, que é exemplar:


A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam  luz


As situações descritas nesse poema são facilmente reconhecíveis para qualquer pessoa que viva numa grande cidade brasileira: crianças sem ter o que comer, obrigadas a aceitar o destino que não escolheriam si se tivessem a chance de fazer a opção. Nós, que vivemos uma vida confortável, os vemos todos os dias e sabemos qual é o futuro que os espera, mas não nos damos nem ao trabalho de nos perguntar de onde eles vêm, para onde vão, do que precisam. E isso podemos perceber nesses versos: Mas há milhões desses seres / que se disfarçam tão bem / Que ninguém pergunta / De onde essa gente vem.

É notável a ironia do poeta ao se referir a essas crianças como seres. Ora, um cachorro, um gato, um passarinho são seres. Essas crianças que se alimentam de luz e assumem formas mil são pessoas. O termo impessoal e frio é escolhido justamente para mostrar o quanto a sociedade fecha os olhos diante da situação. Mais irônico ainda é dizer que ninguém pergunta de onde eles vêm porque se disfarçam muito bem. É claro que essa gente não se esconde, pelo contrário. Eles não têm onde se esconder, vivem nas ruas. Mas são tantos, que a situação já nem parece tão chocante para nós.

E o pior é que eles mesmos acabam se conformando com seu infortúnio: Já nem se lembram / Que existe um brejo da Cruz / Que eram crianças / E que comiam luz.

Jardineiros, guardas noturnos, babás, faxineiros, baleiros, etc. Uma imensa lista de atividades que em geral não podem proporcionar uma vida de muito conforto para ninguém, mas já é melhor do que se alimentar de luz. Então, é melhor esquecer a dor do passado e viver a dor de hoje, que ainda é sofrida, mas não tanto. E de qualquer forma, melhor não vai ficar. É uma visão pessimista, mas muito realista.

Outro belo retrato da difícil vida na cidade está em O meu guri:
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri


O poeta dá voz a uma mãe, moradora de alguma favela num morro qualquer, que aparentemente acredita que seu filho é um trabalhador honesto e se deu muito bem na vida, já que volta todos os dias com presentes caros. À primeira vista a notamos um orgulho imenso da mãe pelo sucesso do filho: Olha aí, ai o meu guri, olha aí. Mas quando lemos a lista de dos presentes trazidos – corrente de ouro, uma bolsa já com tudo dentro, chave, uma penca de documentos – nos perguntamos: será possível tanta ingenuidade? Será que uma mãe não percebe que seu filho está recorrendo a meios escusos para sustentar a mãe e a si mesmo? Ou será que ela prefere fingir que não vê?

O mais provável é que essa mãe opte por ignorar a natureza do “trabalho” do filho, já que até o momento nada de mal aconteceu a ele. Notamos que ela se preocupa com a integridade física do filho: Rezo até ele chegar cá no alto. E que ela sabe muito bem o que acontece lá embaixo: Essa onda de assaltos está um horror. E a seguir, um belo momento de ternura entre mãe e filho: Eu consolo ele, ele me consola / Boto ele no colo pra ele me ninar. Ou seja, a mãe cuida do filho e o filho cuida da mãe, cada uma à sua maneira. A mãe encara a atividade do filho como a única saída encontrada para se salvar da miséria. E é por isso que, mesmo quando vê a imagem do filho estampada no jornal, continua achando que o filho chegou lá. Não admite nem para si mesma que seu filho se tornou um bandido porque, para ela, ele só o é da porta de casa para fora.

Assim, encaixamos mais uma peça no quebra-cabeças que é a poesia urbana de Chico Buarque. A desigualdade social e suas conseqüências: crianças abandonadas que não têm o que comer, ignoradas por pessoas que julgam não ter responsabilidade alguma nesse problema; favelas habitadas por gente pobre, por mães cujos filhos decidem entrar para o mundo do crime para tentar sobreviver. São muitos os flagelos da vida urbana e muitos deles estão retratados na obra de Chico Buarque. Mas a cidade não é apenas lugar de malandragem e tristeza. Há também muita beleza, e Chico não a deixa de lado.


_________
(Amanhã, quarta-feira, a terceira e última parte)









segunda-feira, 30 de maio de 2011

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (1)


[Fonte - NAU LITERÁRIA A Poesia Urbana de Chico Buarque 1 Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007]

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (1)

Vivian C. Alves de Carvalho


Resumo: O presente ensaio trata da visão de Chico Buarque sobre a sociedade urbana brasileira expressa em suas canções. Observa-se uma mudança de ponto de vista ao longo do tempo, acompanhando o crescimentodas cidades e também de seus flagelos. Nos anos 60, temos um artista consciente dos problemas, mas otimista com relação ao futuro. Nos anos 70, temos a expressão da falta de esperança diante do horror da ditadura militar. A partir da década de 90, tempos de democracia, Chico assume seu amor pelo Rio de Janeiro – num primeiro momento, enaltecendo suas belezas, e depois, reconhecendo seus problemas.

Palavras-chave: Chico Buarque; cidade grande;- sociedade brasileira.

Abstract: The present paper focuses on Chico Buarque’s view concerning the urban Brazilian society expressed in his songs. There is a change in his point of view throughout the years following the growth of the big cities and their scourges. In the 60’s, we have an artist who is aware of the problems, but is optimistic about the future. In the 70’s, we have a total hopelessness in face of the military dictatorship horror. From the 90’s on, democracy times, Chico assumes his love for Rio de Janeiro – firstly, praising its beauty, and then recognizing its problems.

Keywords: Chico Buarque; big city; Brazilian society.

1 Primeira parte

Entre os muitos temas abordados por Chico Buarque em sua obra poética destaca-se a cidade, ou seja, o espaço, a vida urbana e todos os seus elementos. Porém, o sentimento expresso não é sempre o mesmo. Há uma variação de tom. Entre Pedro Pedreiro, uma de suas primeiras canções, lançada em 1965, e Subúrbio, do álbum mais recente, lançado em 2006, sabemos que a caminhada foi longa e que sua visão sobre a sociedade brasileira foi se moldando aos poucos, foi amadurecendo a cada novo disco. A visão nostálgica apresentada em A Banda contrasta radicalmente com a acidez de Construção, e há uma diferença de apenas cinco anos entre elas, sendo a primeira de 1966 e a segunda de 1971. Entretanto, apesar dos contrastes, é possível notar uma definição de ponto de vista: malandros, pivetes, guris, entre tantas outras figuras tipicamente urbanas, povoam a obra do autor, evidenciando a preocupação com o destino da sociedade brasileira. Esse Chico Buarque militante das décadas de 70 e 80 chega aos anos 90 aparentemente conformado  com a miséria das cidades grandes em geral e se volta para o Rio de Janeiro, o seu Rio de Janeiro, tão bem desenhado na canção Carioca, que está no álbum intitulado As cidades, de 1998. Em 2006, a já citada  Subúrbio, de Carioca, mostra um retorno do olhar do poeta para os marginalizados, mas de um jeito completamente diferente, com uma leveza que parece não combinar com aquilo que descreve.

É interessante também o fato de que, na década de 90, o poeta dá lugar também ao romancista. Estorvo, de 1991 e Benjamim, de 1995 são narrativas urbanas e desconcertantes que, cada uma à sua maneira, contribuem para o retrato não muito iluminado da sociedade atual pintado por Chico Buarque. Em 2002, o estrondoso sucesso Budapeste confirma a maestria do autor no campo da literatura e mostra mais um ou alguns lados negativos da vida nas cidades grandes.

A proposta deste ensaio é analisar as diversas perspectivas do poeta Chico Buarque em relação à cidade, à vida urbana e seus flagelos. É importante esclarecer que, embora esteja lidando com canções, que a rigor não são poemas, optei por não me deter nos aspectos musicais, como melodia, harmonia, arranjos, para focalizar apenas a temática. Dessa forma, as letras são aqui tratadas em seu aspecto poético, lírico. Não me deterei, também, nos romances. Acredito que poderiam ajudar a montar o quadro da sociedade urbana do Brasil, entretanto, a idéia deste trabalho é estudar apenas a poesia do autor. Além disso, o tamanho de um ensaio não comportaria mais esse estudo, que certamente não seria breve. Contudo, não descarto a possibilidade de estendê-lo futuramente. Por ora, fiquemos com as canções.

2 Segunda parte

O primeiro disco de Chico Buarque abre com A Banda:


Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro
parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e
pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e
dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e
insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor


Trata-se de um episódio, um breve momento em que uma cidade pára para ver e ouvir uma banda cantando coisas de amor. Personagens diversos aparecem, com seus respectivos problemas, que são esquecidos até que chegue ao fim a passagem da tal banda. Por trás dessa aparente simplicidade, encontramos versos que parecem traduzir o sentimento de solidão que é tema de poesia há décadas: E cada qual no seu canto / Em cada canto uma dor. O individualismo é a marca maior da modernidade. Cada um cuida da sua vida, das suas angústias, dos seus problemas. Não há tempo para olhar para o lado, estender a mão a algum necessitado. A Banda nos mostra que nem tudo está perdido. A simples passagem de uma banda de música é capaz de fazer uma cidade inteira parar, esquecer seus problemas e ser feliz, ainda que por um brevíssimo período. Por mais que isso possa parecer muito pessimista, creio que é justamente o contrário. Ao mesmo tempo em que notamos uma nostalgia em relação ao passado, podemos também perceber a esperança de que alguma coisa pode nos salvar. E a banda seria um símbolo disso: de algo que vai nos fazer parar e prestar mais atenção às coisas boas e belas da vida.

Maria Rita Kehl (2006), em matéria publicada na revista Bravo! afirma:


Por obra da ironia que marca o vínculo inconsciente entre a obra de arte e o gosto do público, A Banda estourou na cidade que mais crescia no Brasil ao dar voz à memória interiorana do país recém-urbanizado. A rua onde o poeta estava à toa quando a banda passou “cantando coisas de amor”, espaço de convivência pacífica e plural, já fazia parte da memória recalcada pelo “Brasil Grande” do projeto militar. (KEHL, 2006, p. 75)


Kehl levanta uma questão interessante: A Banda, que à primeira vista não se enquadraria no que estamos chamando de poesia urbana, representa, de certo modo, uma contradição. Na década de 1960 o Brasil está em plena ditadura militar, mas também em pleno desenvolvimento econômico e industrial. Está lutando com todas as forças para assumir um caráter urbano, quando surge um artista cantando a beleza de um passado pacífico e nada urbano. E, apesar da dissonância entre o poema e a realidade, A Banda faz um enorme sucesso e consagra o jovem Chico Buarque como grande compositor. Portanto, podemos afirmar sem medo de errar que não é só aos poetas que a angústia da modernidade aflige. No mesmo disco, cinco faixas adiante,  encontramos Pedro Pedreiro:


Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande no bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o
mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem...


A situação aqui é bastante diferente da anterior. Trata-se de um sujeito que veio do norte para tentar melhorar de vida numa cidade grande, urbanizada. O máximo que consegue é um emprego de pedreiro, mas isso não lhe tira a esperança. A palavra que mais aparece nos versos de Pedro Pedreiro é “esperando”. Pedro espera o trem, espera o aumento, espera o carnaval, espera ganhar na loteria. Sua mulher espera mais um filho, e Pedro, no fundo, sabe que o destino do menino é, também, esperar.

Logo após dar-se conta de que mais um ser humano está vindo ao mundo para ele sustentar, Pedro passa a esperar coisas diferentes: o dia de voltar para a sua terra, a morte. Chega a sonhar com algo maior – Pedro não sabe mas talvez no fundo / Espera alguma coisa mais linda que o mundo / maior do que o mar – porém a realidade não tarda a lhe trazer de volta – Mas pra que sonhar / Se dá um desespero de esperar demais / Pedro pedreiro quer voltar atrás / Quer ser pedreiro pobre e nada mais.

Assim, notamos uma certa confusão quanto ao objeto da esperança do pobre pedreiro, porém, é uma esperança que nunca o abandona. Por mais que às vezes ele deseje a morte, ele sabe que precisa continuar trabalhando. Ainda que cogite voltar para sua terra natal, Pedro sabe que lá definitivamente não há esperança de um futuro melhor. E assim ele vai ficando na cidade, esperando o trem que já vem, que já vem, que já vem...

Alguns anos depois, com Construção, notamos que o trem que Pedro Pedreiro esperava
não chegou:


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um
príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado


É claro que não há nada que confirme explicitamente a ligação entre Pedro Pedreiro e o operário de Construção. Entretanto, pelo menos em termos interpretativos, é perfeitamente lícito considerar esta como uma espécie de continuação daquela. É bastante verossímil imaginar um sujeito que vem do norte para a cidade grande tentar a sorte, se depara com uma dura realidade, arruma um emprego que é o máximo que sua qualificação pode lhe proporcionar e disso não consegue passar. A esperança de Pedro Pedreiro não é suficiente, e acaba sendo substituída por uma angústia profunda, por uma depressão que o leva a cometer um ato extremo, como podemos ler no poema descrito acima.

Tudo acontece gradativamente, vamos nos dando conta do que está por vir aos poucos. O dia corre normalmente, como na sua rotina diária. A diferença é que agora ele se despede da mulher e dos filhos como se não os fosse ver novamente; trabalha, levanta paredes, com lágrimas nos olhos, come seu almoço soluçando, entra num estado de delírio – Dançou e gargalhou como se ouvisse música – e põe fim à própria vida. A marginalização não o abandona nem na hora de sua morte, uma vez que ele morre atrapalhando o tráfego.

A história está contada na primeira estrofe. É uma angústia que vai aumentando a cada verso, até chegar ao trágico fim. As duas estrofes seguintes são constituídas de variações dos versos já colocados na primeira, não deixando dúvidas sobre o infortúnio do pobre homem. A repetição das frases contribui para tornar a situação ainda mais dolorosa e as proparoxítonas que invariavelmente encerram cada um dos versos de alguma forma simbolizam a rigidez da cidade grande.

Os elementos urbanos se misturam aos frutos do momento de aflição, emoção e delírio do operário: os tijolos formando um desenho mágico, que se tornam paredes mágicas depois,os olhos embotados de cimento e lágrima, o pacote flácido flutuando sobre o asfalto. Dessa forma, fica clara a relação entre o suicídio e a dificuldade e a dureza da vida urbana.

_________
(continua amanhã, terça-feira)