segunda-feira, 23 de maio de 2011

FCCV - Forum Comunitário de Combate à Violência

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Salvador - Bahia - Brasil

                  

Leitura de fatos

violentos publicados na mídia

Ano 11, nº 18, 23/05/11 




POSSO FICAR EUFÓRICA?


POSSO FICAR EUFÓRICA?

Quem pergunta é a promotora Deborah Guerner, dirigindo-se ao psiquiatra Luis Altenferlder Filho. E ele responde que sim, durante uma sessão de introdução de Guerner ao mundo da bipolaridade. O instrutor sugere a morte do pai da promotora como ocorrência desencadeadora do transtorno psiquiátrico. E com este mote se estruturam as orientações para que a “aluna” assuma comportamentos pertinentes à opção clínica proposta pelo perito.



Não é comum, nem mesmo entre os hipocondríacos, o desejo de ter um problema de saúde de tipo psiquiátrico. Esta é uma das áreas que envolvem preconceitos e estigmas muito fortes e, por isso mesmo, os indivíduos que padecem destes males costumam manter seus diagnósticos preservados da curiosidade alheia. É pelos comportamentos e não pelas declarações relativas ao problema que as outras pessoas deduzem haver alguma dificuldade referente à saúde mental. Em alguns casos, os comprometimentos não permitem atuação no campo de trabalho e, muitas vezes, os doentes sofrem restrições no que tange ao convívio social.
           
             É, no mínimo, inusitado que alguém queira encarnar e se fazer passar como portadora de transtorno mental com o fito de se proteger. Como “ganhar pontos” ao declarar, por exemplo, que “brigo com as empregadas, não para empregada em casa”? Pois bem, essa é uma das sugestões de fala dada pelo psiquiatra à promotora. A essa proposta a “aluna” pergunta: “Explodo com qualquer coisa, pode falar?” E o mestre consente e acrescenta: “Explodo com qualquer coisa, é... me torno agressiva”.

            Além do expediente da fala, a preparação confere aos planos do vestuário e gestual relevante cuidado. A aluna deve se portar elegante e escandalosa: “Entendeu?”. O estilo subministrado é o popular “cheguei” que na sugestão do perito ganha uma ênfase: “bem cheguei!”. Também pede a atenção sobre o uso das cores: “Aí você põe um batom vermelho”.

            Se a discente atuar conforme o script será considerada “bipolar”. O orientador dá garantia de êxito ao ver a performance da aluna na aula: “Você não está forçada... você tá num natural bem legal! É só ir vestida desse jeito e falar com essa naturalidade, que os caras vão falar: Pô, ela não se enxerga!” E assim, satisfeito com a sua obra, o psiquiatra conclui: “Isso é diagnóstico fechado... pra transtorno bipolar múltiplo”.


            A questão de fundo que dá sustentação à trama aqui mencionada é a seguinte: Como é que eu faço para ser oficialmente inimputável? O que devo parecer ser para não ter de responder pelos meus atos ilícitos? Quem poderia fazer tudo o que fiz e não ser condenado? É provável que as opções de resposta no contexto tenham sido mais variadas que a saída pela interpretação de um personagem com patologia psiquiátrica. Nas táticas de bastidor devem ter outros registros visando o escape de uma promotora denunciada por corrupção em Brasília, mas foram as cenas de construção da personagem bipolar que mais impressionaram o País. O próprio desempenho ambulatório da servidora do Ministério Público Federal, juntamente às agressividades por ela executadas quando das entrevistas recentes sobre o caso deram margem à associação com as “aulas” dadas pelo psiquiatra.

            Das revelações contidas no caso surgem muitas imagens, entre as quais aquela atinente ao desamparo, afinal, uma das áreas buscadas para o esclarecimento das situações que se mostram confusas é justamente o campo dos saberes profissionais. Dentro desse universo, o domínio médico é um dos que possui grande crédito, constituindo-se fonte de superação de ambigüidades e de insegurança. E, ao que parece, é por esta reconhecida legitimidade que a promotora buscou ser amparada por razões médicas. 

            Surge, então, um duplo desamparo em tempo de insegurança generalizada. Uma promotora de justiça usa o seu cargo para receber vultosas somas em troca de sua proteção a atores que conduzem de modo ilícito a relação com os recursos públicos. Quando denunciada, ela se vale de uma orientação de um profissional de saúde e o contrata para a prestação do serviço que visa dotá-la de comportamentos típicos de um portador de problemas psiquiátricos, capaz de fazer resvalar a sua culpa.

O ponto mais grave do caso pode ser ocultado pela visão do patético quadro de Deborah Guerner fingindo desmaio para não receber representante da justiça em sua casa, e, mais ainda, caminhando pela rua com um tecido verde envolvendo a face e dando respostas (eufóricas?) aos jornalistas. O risível destas situações, o seu caráter espetaculoso pode contribuir para nos distrairmos quanto à dessacralização dos espaços institucionais que se converteram em cenários poliprováveis, de onde se deve esperar tudo e até muito mais que o inverso de seus papéis de origem.
           
Assim, é de se perguntar, tragicamente: “Quando poderemos ficar eufóricos, doutor?”.    

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