REPRESENTAÇÃO DA CIDADE NOS CONTOS DE RUBEM
FONSECA (2)
Fernanda Machado BRENER (UEL)
ISBN: 978-85-99680-05-6
REFERÊNCIA:
BRENER, Fernanda Machado. A representação da
cidade nos contos de Rubem Fonseca. In: CELLI –
COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E
LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá,
2009, p. 364-371.
(continuação)
2. A DEGRADAÇÃO
A degradação aparece nos contos de Rubem Fonseca com muita freqüência. A degradação está presente tanto nos habitantes quanto nas coisas da cidade, nas paredes repletas de grafites ilegíveis, nas ruas esburacadas e nos edifícios abandonados. Nos modernos e luxuosos cinemas que outrora eram freqüentados por personalidades públicas e que agora exibem filmes pornográficos. Na poluição e na sujeira que comprometem a percepção do belo. Mesmo ao observar a natureza, Augusto, personagem de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, tem seus sentidos contaminados pela degeneração do lugar:
“As águas do mar fedem. A maré sobe e baixa de encontro ao paredão do cais, causando um som que parece um suspiro, um gemido. É domingo, o dia surge cinzento; aos domingos a maioria dos restaurantes do centro não abre;como todo domingo, será um dia ruim para os miseráveis que vivem dos restos de comida jogados fora.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, p.627).
O mar fétido e o gemido das ondas são resultados das ações do homem, são frutos da cidade. O céu acinzentado da capital carioca no dia mais importante da semana é espelho da condição degradada daqueles seres humanos. A representação da natureza dilacerada pela ação humana torna-se uma característica particularmente interessante considerando-se que quase a totalidade dos contos de Rubem Fonseca tem o Rio de Janeiro como cenário. Famosa mundialmente por ostentar uma beleza exuberante, a “cidade maravilhosa”, cartão postal do Brasil, é observada bem de perto por aquele que vive e caminha por suas ruas.
A visão pormenorizada impossibilita a construção de um panorama geral que salientasse os encantos da metrópole. A certa distância não se vê os defeitos nem os dejetos produzidos. Novamente o lixo, a putrefação, o mau cheiro são representantes da degradação causada pelo homem. Nessa passagem de A coleira do cão, o personagem Vilela e mais dois outros policiais vão “interrogar” um suspeito em um depósito de lixo. Naquele lugar fétido convivem urubus e homens, cada qual garimpando seu sustento, os
primeiros em clara vantagem de número e com a opção de ficar ou procurar melhores pastos.
“Uma luz cinzenta começava a clarear o ambiente. Os monturos de
lixo adquiriam nitidez. Via-se uma cabana baixa, quase escondida por
uma alta pilha de lixo. Havia dezenas de urubus” (A coleira do cão,
1994, p.233).
Este ângulo de observação tão aproximado é ressaltado no conto A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro através da presença dos ratos que habitam os subterrâneos da cidade. Eles personificam os serem que rastejam escondidos por entre as vielas e becos da cidade, “transmitindo doenças horríveis” sem contudo serem vistos.
Alimentam-se dos restos da civilização de maneira seletiva e espalham-se como uma
praga que não consegue jamais ser contida.
A visão pormenorizada resultante do caminhar, contudo tem particularidades que o cidadão urbano comum, devido o ritmo acelerado do dia-a-dia, ignora. A rua , para ser compreendida não deve ser mero lugar de passagem e sim local de convívio e estabelecimento de relações humanas. Este é o objetivo primordial do personagem de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro que procura redimensionar as ruas do centro
a capital carioca ao percorrê-las a pé. Augusto é o observador da cidade, o flâneur, que ransita entre os grupos distintos sem no entanto pertencer a nenhum deles.“Se a cidade é a paisagem do flâneur, a rua é sua moradia.” (ABREU, 2004, p.2). Como sugere o título do conto, caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro não é uma ação comandada simplesmente por um par de pernas, constitui uma “arte” e como tal, pode ser aprendida
através da observação atenta e detalhada das coisas e pessoas.
“Em suas andanças pelo centro da cidade, (...) Augusto olha com
atenção tudo o que pode ser visto, fachadas, telhados, portas, janelas,
cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não,
buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa,
passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente
pessoas.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, p.594)
Do mesmo modo trabalha o personagem Delegado Vilela de A coleira do Cão, que “no processo de desvendamento do crime que o desafia (...) promove ao mesmo tempo um desvendamento da própria textura da cidade”.(ABREU, F, 2004, p.28). Os dois personagens procuram recompor a ordem perdida pela cidade caótica através da observação detalhada de suas ruas, casas e habitantes. O que eles conseguem é o retrato
da cidade esfacelada e decaída.
“Flores artificiais sujas dentro de uma jarra de falso cristal. Móveis
velhos estragados. Nem um livro sequer à vista. Roupas desbotadas.
Um Sagrado Coração de Jesus na parede, também desbotado. O
menino descalço. Houve um momento em que a tristeza das coisas foi
maior do que a dor das pessoas.” (A coleira do cão, p.234)
3. A SEGREGAÇÃO
A cidade pós-moderna retratada por Rubem Fonseca traz em si a antítese da comunhão. Seus habitantes não cooperam entre si pela sobrevivência, ao contrário, disputam freneticamente cada palmo de chão e o direito de permanência no lugar escolhido. A solidariedade humana é somente uma utopia e a forma de diálogo mais praticada é o da violência. A modernização e o progresso das cidades não contiveram o avanço da violência e a desumanização da sociedade. (DIMENSTAIN, 1996 apud GINZBURG, 2000, p.278). Diferentemente do homem medieval, cujas altas muralhas das cidades os separavam dos inimigos, o homem contemporâneo vive a angústia de não ser capaz de reconhecê-los.Além disso há a questão das diferenciações sociais já enraizadas e dos variados graus de segregação social como tratado por Maiolino e Mancebo (2005). A presença de indivíduos socialmente heterogêneos altera a percepção da ameaça. O inimigo passa a ser percebido como algo que está inserido na cidade, e não mais um fator externo, o desconhecido e o incerto estão por todos os lados.
Em A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, os diversos representantes do vários grupos de habitantes do centro se excluem e agridem mutuamente. Essa atitude acaba por sugerir a nostálgica lembrança de uma cidade do passado, onde os moradores vivessem em comunhão. Kelly,a prostituta protegida de Augusto, estabelece as diferenças sociais claras entre meretrizes e mendigos.
“Não me pega não, aqueles mendigos devem estar com sarna, você
Vai ter que tomar um banho antes de se encostar em mim. (...). As putas
não gostam de mendigos, Augusto sabe.” (A Arte de andar nas ruas
do Rio de Janeiro, p.615)
Ainda há classes diferentes de “desabrigados”, o clã do Benevides, que recolhe papel na Rua Cândido Mendes, o português Mané da Boina que recolhe vidro, e o clã do Zé Galinha que se preocupa em defender seu direito de permanência no centro. Nenhum dos grupos reconhece o outro como seu igual. A multidão torna-se ainda mais heterogênea e estratificada se a ela juntarmos os trabalhadores, os ambulantes, os ladrões, os policiais, os seguranças, os pastores de igreja e seus rebanhos, as velhinhas que alimentam os pombos, os executivos, banqueiros e bancários que também povoam o centro da cidade. O centro sozinho abriga representantes de quase todas as classes
sociais cujo contato parece inevitável.
Sem dúvida, o sentimento maior de segregação se dá entre as classes dominantes, representantes do poder, e aqueles a quem ela escolhe ignorar. Devem ser apagados, destituídos de características humanas, como ratos no porão. O contato entre os dois grupos é sempre causador de violência ou repudio.
“Quando chove desce tudo (os excrementos) pelas valas, misturada
com urina, restos de comida, porcaria dos animais, lama e vem parar
no asfalto. Uma parte entra pelos ralos, outra vira poeira fininha que
vai parar no pára-lama dos automóveis e nos apartamentos grã-finos
das madames, que não fazem a menor idéia que estão tirando merda
em pó de cima dos móveis. Iam todas ter um chilique se soubessem
disso.” (A coleira do cão, p.221)
A invisibilidade dos membros da classe “subalterna” é mais patente no conto O outro, de 1996. Nele um executivo se vê assediado por uma pessoa que precisa de dinheiro. Durante todo o conto, narrado pelo executivo, percebemos como a imagem do pedinte é construída em sua mente e que essa imagem não representa necessariamente a realidade. Assoberbado pelas funções que exerce na empresa onde trabalha, o executivo recebe a recomendação médica de caminhar, “pelo menos duas vezes por dia” (p.38). A caminhada o expõe ao “outro”, primeiramente um “sujeito” qualquer. Em um segundo momento, inquietado pela impossibilidade de avaliar com precisão seu potencial de ameaça, este sujeito adquire feições mais claras, “Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos.” (p.38) O fato de ser ‘um homem branco e forte’ se opõe
a fraqueza sentida pelo narrador. Contudo, apesar de estar doente e fraco, ainda ocupa
uma posição superior à do pedinte já que detêm o dinheiro. Com o passar do tempo, o
narrador começa a se sentir acuado pelo rapaz e interpreta olhar do pedinte como cheio
de rancor e ódio.
“...ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem
como era eu rosto, cínico e vingativo.” ( O outro, p.40)
(continua amanhã, quinta-feira)
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