EMCONTO COM AS CIDADES -
POSTAGENS DOMINICAIS DE CONTOS
QUE EXIBAM ALGUM DESTAQUE À CIDADE
UMA BOA AÇÃO
Vicente Deocleciano Moreira
Quando um comerciante como eu, que já tem dezenas de janeiros nas costas só aqui na 25 de Março, consegue guardar na memória um rosto em meio a milhares que todos os dias olham a vitrine da loja, é porque esse rosto, além de comparecer do outro lado da vitrine todos os dias e várias horas por dia, tem qualquer coisa de estranho ... alguma doença .. algo de melancólico ... de mãos finas e ossudas de tão acostumadas com a solidão e com a indiferença de outras mãos.
O rosto era de um rapaz já entrando na casa dos trinta anos. Mas o que me fez guardar na memória, com mais força, a fisionomia pálida daquele rapaz foi seu hábito de olhar - sempre e de modo fixo – para uma mesma manequim feminino, cuja roupa eu trocava duas a três vezes por semana e ele não tirava os olhos da boneca; daquela boneca com intensa exclusividade, cega fidelidade. Muito bonita por sinal.
O rapaz nada dizia, nada pedia, nem entrava na loja. Apertava as mãos uma contra a outra e, dava pra notar, com bastante força. Bem, tudo sempre tem uma primeira vez. Começou tímido, depois submisso e, questão de dias, tornou-se irreconhecível na agressividade com a tamanha insistência com que me pedia para lhe vendesse a manequim e com a oferta de dinheiro, cada vez mais dinheiro.
Bem, quem é comerciante haverá de me entender melhor; a verdade é que terminei vendendo a manequim por um preço muito bom, tão bom que me permitiu comprar mais três. Imagina se eu não ia querer ganhar o dinheiro daquele maluco !!!
Imaginei coisas e, por imaginar coisas, fiquei um pouco arrependido de ter vendido a manequim. Até que parei de imaginar coisas sobre as razões que levariam o rapaz a comprar a manequim; parei porque concluí que se continuasse a me preocupar poderia estar pecando contra as leis de Deus, tanto quanto ele.
O moço desapareceu depois da esquisita transação comercial. Não me lembro quanto tempo se passou desde então – só sei que já tinha esquecido de tudo o que aconteceu quando ele reapareceu na loja. Entrou depressa e me deu uma abraço como só um filho pode abraçar um pai. Fiquei confuso, não entendi nada até a reconhecer o rapaz depois de alguma demora. Foi difícil acreditar, mas o rosto do rapaz estava cheio de luz, alegria transbordante, rosto corado e todo sorrisos ... felicidade de um noivo em lua-de-mel.
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