segunda-feira, 2 de maio de 2011

O MASSACRE EM SEU TEMPO DE SATÉLITES EFÊMEROS

FORUM COMUNITÁRIO DE COMBATE À VIOLÊNCIA  (FCCV)

Salvador - Bahia - Brasil

 

O MASSACRE EM SEU TEMPO DE SATÉLITES EFÊMEROS


Leitura de fatos violentos publicados na mídia

Ano 11, nº 15, 02/05/11 


Incorporado, midiaticamente, sob o rótulo de massacre, o dramático acontecimento de Realengo desencadeou um conjunto de ocorrências-satélites, entre as quais aquelas marcadas pelas homenagens. Elas foram tantas e de tipos tão diversos que suscitam reflexão. Sem pretender esgotar o assunto, essa leitura toma alguns exemplos do gênero para análise.

Fazendo-se uma apuração singela é possível identificar três tipos de ocorrências-satélite. A primeira pode ser considerada de base e se refere às cenas dos moradores da vizinhança que agiram imediatamente à tragédia. Preenchida por pessoas que estavam no local do acontecimento, se distingue pela exposição de vozes que se alternaram entre a descrição dos atos bárbaros no interior da escola e a disposição imediata de solidariedade combinada com o desespero. Nestas circunstâncias foram exibidas imagens relativas aos apoios emergenciais, improvisados e espontâneos. Este gênero perdurou por dias, tendo como cenário principal as imediações da escola e ações de caráter comunitário. Este satélite pode ser confundido como parte do núcleo do acontecimento. Ao lado das imagens das câmaras instaladas no corredor da escola e daquelas dos celulares, as falas, semblantes e toda a gestualidade deste contingente insere seus componentes em posição de pertencimento ao drama.  Simbolicamente fazem parte do corpo social ferido, pois, qualquer um de seus membros poderia estar ali. Deste conjunto de imagens, é construída a primeira base para a obra de merecimento de atenção pública e da sociedade em geral. 
           
À medida que a mídia tem acesso e dá acesso às primeiras informações sobre o caso se verificam sinais de prioridade ao mesmo – traço evidente na programação televisiva através dos constantes boletins extraordinários. Esta tomada de posição contribui para o reconhecimento da ocorrência como algo digno de atenção pública. Imediatamente foi transmitida a idéia de que se trata de caso excepcional em nosso País e, diante desta rara raridade no que tange a episódios violentos, os meios de comunicação se instalaram como parte do cenário, em seu papel de tradutor do desconhecido para o público carente de explicação. Tem-se, assim, um cenário propício à visibilidade e à conseqüente extrapolação do caso para além de seus domínios de referência.
             
Incluída na trama como coletora e difusora de imagens, a mídia passa a captar as cenas “internas”, relativas ao espaço físico e social do acontecimento, e as externas que devem ser percebidas como imagens satélites que comportam distâncias físicas e simbólicas de grande monta. Na sua representação midiática, a ocorrência adquire, então, o formato de vários espaços, deixando ao seu território nuclear a função de campo-testemunha (nosso primeiro satélite).  Com esta disposição espacial associada à ampla aceitação pública, o caso assume a condição de produto midiático em escala nacional e com repercussões internacionais.
           
É com este grau de visibilidade que algumas ocorrências-satélites foram construídas, entre as quais aquela relativa às condecorações dos três policiais que atuaram no caso, os quais foram promovidos por bravura em celebração que contou com as presenças do governador e vice-governador do Rio de Janeiro e, também, do presidente em exercício, Michel Temer. As homenagens aos policiais exaltam um deles de modo especial em razão de ser aquele que teria impedido a continuidade da matança, através de um tiro certeiro contra o abdome do atirador insano. Este capítulo permitiu uma apreciação positiva do satélite institucional, representado pela segurança pública, e conferiu ao policial o conceito de herói aclamado pelo povo, atingindo, desse modo, um efeito raro quando se trata de tramas violentas noticiadas cotidianamente. A circunstância fez brilhar aquele satélite institucional e dar ao seu sargento um lugar de exemplo relativo ao corpo da instituição.  Neste sentido, a dor de Realengo promove um feito simbólico regenerador da imagem da instituição policial e, repercute positivamente por todo o corpo do Estado.   
           
Ao mesmo tempo em que a má notícia dá margem a uma alvissareira novidade no que tange à atuação dos policiais, são revelados, pela mídia, perfis das vítimas sobreviventes enquanto as mesmas se encontravam em hospitais. E, entre as descobertas, está gosto pelo futebol, conferindo aos feridos a identidade de apaixonados torcedores.    Essas revelações deram margem para a constituição desse esporte enquanto satélite da ocorrência, expressado sob forma coletiva e individual. Em nível coletivo, basta lembrar a determinação de um minuto de silêncio em todos os estádios do País onde se realizavam jogos dos campeonatos estaduais, fazendo-se notar uma “opção” feita pelas entidades organizadoras das competições.

Em âmbito individual, com registro midiático, foram prestadas homenagens, especialmente por meio de visitas a determinadas vítimas. Esses eventos foram marcados pela singularidade do visitante e do visitado, a exemplo da presidente do Flamengo, Patrícia Amorim, que visitou o garoto que mesmo ferido, buscou o apoio policial, considerado fundamental para a interrupção da matança. O mesmo gesto foi repetido pelo jogador Ronaldinho a outra vítima.
           
Cabe recordar um outro satélite que realçou elementos atinentes ao merecimento de atenção e diz respeito à presença, na celebração religiosa de sétimo dia da tragédia, de pais de vítimas de violência cujas histórias se notabilizaram através do tratamento midiático conferido aos seus dramas. Este satélite foi encabeçado pela mãe de Isabella Nardoni, Ana Carolina de Oliveira, seguida de João Roberto que é pai do garoto Paulo Roberto Soares e, também, de Cristiane Marcenal, mãe da menina Joanna. Estes genitores são vítimas indiretas que tiveram esta condição reconhecida de tal modo que passaram a ter as suas identidades redefinidas, incorporando-se aos seus perfis traços indefectíveis de vítimas consagradas e, desta forma, foram identificados pelos órgãos de mídia que os registraram na celebração em Realengo que contou com mais de dois mil participan.

As diferentes formas indicadas nesta leitura permitem observar potencialidades da ocorrência-matriz no que concerne à produção de micro-ocorrências a ela associadas. Esta multiplicação, por sua vez, indica um valor atribuído ao evento, capaz de torná-lo lastro para outros acontecimentos. Esta circunstância ratifica uma hierarquia na apreciação dos feitos violentos. Há aqueles que nem atingem o status de acontecimento midiático e ficam restritos à própria contingência de fato bruto de onde nada se extrai para lapidar, enquanto na outra extremidade outros eventos suscitam homenagens, deferências, reverências de tal modo que a sua essência exala por todos os lados, ganhando em sua forma lapidar o status de acontecimento de todos e, portanto, todos podem dele se ocupar.

Contudo, os superacontecimentos tendem a perder força com o tempo e muitos de seus signatários-satélites desistem, silenciosamente, ante àquela reclassificação desclassificante. Isto porque, é na vigência da superioridade hierárquica, que o tema adquire prestígio o bastante para fascinar e suscitar adesões apaixonadas. Com o declínio do evento na hierarquia, o assunto é morto, é passado, é fosso e dele restam as dores do primeiro satélite, machucado, esquecido e ofendido pelas outras violências que sobre ele se impõem como se fossem seus satélites naturais.    

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