quinta-feira, 19 de maio de 2011

FUSTEL DE COULANGES – "A CIDADE ANTIGA" (1)

FUSTEL DE COULANGES – "A CIDADE ANTIGA"  (1)


Numa-Denys Fustel de Coulanges (1830-1889)


Nota do Blogue

A partir de hoje, quinta-feira, daremos início a postagens da série FUSTEL DE COULANGES – A CIDADE ANTIGA, sobre este clássico de autoria do historiador francês Numa-Denys Fustel de Coulanges (1830-1889)

Boa leitura,

Vicente


 LEITURA OBRIGAHISTÓRIA 
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Muitos foram os historiadores do século XIX que deixaram sua marca na historiografia com obras que até os nossos dias são referência, mas poucos foram aqueles que conseguiram deixar como legado uma obra tão detalhada e minuciosa quanto A Cidade Antiga, do francês Fustel de Coulanges. Tendo sido estudante da École Normale Supérieure e tendo participado de escavações na Grécia, aonde encontrou muitas de suas principais fontes de uso futuro, publicou sua obra máxima, A Cidade Antiga, em 1864, enquanto dava aula na faculdade de letras de Estrasburgo.

Fustel de Coulanges, embora tenha sido contraditório nesse aspecto, dizia que para o estudo da história era imperativo que fosse deixada de lado qualquer conexão com o presente. Ao ler esta obra aqui resenhada vemos isso de forma nítida – muito embora Coulanges não tenha escapado de uma ou outra conexão em determinadas partes do texto – sem muito esforço.

O livro se inicia retratando tempos muito remotos, aonde o culto aos mortos era de uma importância tamanha que soa até um pouco incompreensível para nós, tendo em vista os ritos, a manutenção do culto, a libação, a prestação de contas com os antepassados. É interessante perceber a conexão de crenças de tão remota época com nossos tempos. A idéia de uma alma que vaga sem rumo, sem direito ao descanso eterno e que atormenta os vivos é mais do que presente em nossa cultura. Podemos dizer que o cinema, seriados, novelas e literatura são responsáveis pelo não-esquecimento dessa idéia.

Mais adiante, talvez o ponto alto do livro, é explicado o culto ao lar, o fogo sagrado e a união da família sob a crença comum. É interessante pensar como a conexão entre consanguíneos de nada valeria se a religião não os conectasse. A idéia hoje tão banal para nós de parentesco nos tempos antigos não se aplicava, já que era a religião (termo este inexistente na época, tendo surgido no século XVIII) que definia de fato a formação da família.

Um dos aspectos mais interessantes, se não intrigantes, é o fato de diversos povos antigos compartilharem de crenças assustadoramente semelhantes. No livro, o foco é voltado para gregos, romanos e hindus – embora saibamos que alguns costumes citados no livro tenham feito parte da cultura de povos mesopotâmicos e escandinavos. É importante salientar que a adesão das famílias antigas á cultos de deuses em comum não foi algo imediato, tampouco simples. No início, havia muitas divindades distintas que usavam o mesmo nome, mas eram adoradas por famílias diferentes. Algo semelhante ao culto do fogo sagrado. Por fim, conforme determinadas famílias prosperavam, as demais viam-se tentadas a buscar as mesmas graças e adorar aos deuses das agraciadas. Assim, o culto a divindades em comum foi difundindo-se. Conforme algumas famílias deixaram de existir, com elas desapareceram algumas divindades. Há de se ressaltar também que em alguns casos, duas cidades distintas adoravam deuses diferentes, mas com o mesmo nome. A Atena que era adorada em Atenas não era a mesma adorada em Esparta; o Júpiter de uma cidade não era o mesmo Júpiter adorado em outra. A unificação desses deuses de mesmo nome como sendo apenas um mesmo deus se deu séculos mais tarde.

Um dos méritos da obra de Fustel de Coulanges é explicar-nos detalhadamente, usando fontes contemporâneas aos acontecimentos, a fundação de algumas cidades de fundamental importância, como Roma. Explica-nos de forma clara o quanto as crenças dos povos antigos foram responsáveis para a reunião de famílias distintas, com crenças próprias e que sempre relutaram socializar-se, tendo em vista as limitações impostas por conta dessas crenças tão esmiuçadas no livro.

Fato também descrito na obra é a admiração dos antigos pelos criadores de suas cidades e pela data de criação das mesmas. Anualmente eram feitas as oferendas a eles, e através de poemas imortalizados, não deixavam com que seus feitos fossem esquecidos pelas gerações seguintes, mesmo que com o passar dos tempos os poemas e ritos deixassem de ser compreendidos tanto pelos que recitavam quanto pelos que ouviam. Estes criadores tornavam-se uma espécie de ancestral em comum.

Mais adiante, a obra começa a abordar as revoluções que aos poucos suprimiram a religião. Durante toda a obra, o autor deixa claro por diversas vezes que praticamente todo o comportamento humano era guiado por ritos sagrados, normas religiosas e velhas crenças imutáveis. Como o passar do tempo essas revoluções – deixando claro que elas não aconteciam do dia pra noite e só tomaram um caráter de revolução anos depois de seu fim, ao serem analisadas friamente – atingiram os interesses dos patrícios, que usavam de sua velha religião como argumento que justificasse sua superioridade. Aos poucos, estes homens se viram na dura situação de mantenedores de um culto julgado ultrapassado por alguns, e não entendido por outros. Temos que levar em consideração que a plebe, por não ter tido o fogo do lar e o culto aos seus antepassados, nunca conseguiria compreender a magnitude desta crença para o patriciado.

O final da obra foca na ascensão do Império Romano, dando algumas pistas dos motivos pelo qual ele conseguiu tornar-se tão poderoso. Alguns dos motivos que o autor aponta estão na maior parte do tempo relacionados à religião. O fato de Roma aceitar povos de diferentes cultos e agregar ao seu panteão divindades de povos conquistados contribuiu muito para seu crescimento. Por fim, ainda entre os motivos do fim dos ritos antigos e do regime municipal, é citado o advento do Cristianismo. Pois se os cultos antigos faziam com que povos distintos não coexistissem amigavelmente, o Cristianismo seguia o caminho inverso, pregando a união entre os povos, mesmo que no início até mesmo seus seguidores tivessem certa resistência contra pregar para os gentios. Se analisarmos friamente, podemos até perceber que a aceitação do Cristianismo por parte de Roma á longo prazo se tornou cômoda, tendo em vista que o mesmo pregava a dissolução entre estado e religião. Levando em consideração os diversos problemas que a interferência dos antigos cultos trazia para as leis, pode-se dizer realmente que o advento do Cristianismo como religião do império – embora algo impensável no início – foi benéfica para os interesses da aristocracia romana.

Porém, há uma crítica que se faz necessária sobre a obra. Fustel de Coulanges dizia em vida, como já mencionado aqui, que o historiador deveria se desvencilhar completamente do presente, focar-se totalmente no passado. Só assim, segundo suas palavras, o historiador conseguiria evitar certos deslizes. No entanto, soa incômodo que várias vezes durante o texto ele se refira ao culto dos antigos como mera mitologia e fala sobre “não conhecerem o Deus verdadeiro”. Claro, devemos levar em conta a época no qual o livro foi escrito. No século XIX ainda havia um grande sentimento religioso nos homens, e me parece normal que o autor fosse cristão. Contudo, além de soar demasiadamente parcial (exigir imparcialidade de um historiador seria demais, mas é possível atenuar esta parcialidade), Fustel de Coulanges acaba dando um exemplo de sua contradição, comparando o culto ao mortos, ao fogo do lar e aos deuses antigos com o culto ao Deus cristão, sendo que o primeiro acaba inevitavelmente sendo visto sob uma visão pejorativa. Isso fica evidente de uma forma drástica na página 377 quando, ao falar sobre o abandono das antigas crenças de culto ao mortos, Fustel de Coulanges escreve: “contudo, desde o quinto século antes de Cristo, os homens pensantes foram se libertando desses erros”. Logo, o autor acabava por contradizer-se, como dito acima, pois acabava associando o culto dos antigos com sua própria religião, sem contar o caráter extremamente pejorativo dado àqueles que por quaisquer motivos não contestavam suas próprias crenças.

Um outro ponto incômodo, mas que ao mesmo tempo pode ser encarado como uma vantagem da obra, é o número de vezes que determinados pontos do livro são repetidos. Claro que temos que levar em consideração que essa era uma característica da escrita do século XIX, mas não deixa de ser cansativo; faz com que o leitor se desinteresse pela leitura, caso seja um leitor ocasional. Esse característica é sentida principalmente no Livro Terceiro, mas se faz presente durante a maior parte da obra.

Embora esses dois pontos negativos acima possam vir a incomodar alguns leitores menos interessados no tema, é impossível para qualquer historiador negar o quão minucioso é este trabalho e o quanto ele foi importante para o entendimento destas duas civilizações que tanto impressionaram o homem e que até hoje despertam a curiosidade de milhares. Mérito do autor que se valeu de fontes indiscutivelmente legítimas, utilizando de documentos escritos por contemporâneos aos eventos citados, como Tucídides, Heródoto, Tito Lívio, Plutarco, Aristóteles, entre tantos outros. A ausência de imagens no livro em momento algum faz com que a compreensão do trabalho seja incompleta.

Não é exagero dizer que qualquer historiador precisa, pelo menos uma vez durante sua vida acadêmica, ter contato com este livro. Leitura obrigatória para todo aquele que anseia compreender o pensamento dos antigos, origem de termos atuais, de crenças e mitos populares até hoje em voga; dificilmente agradaria um leitor ocasional ou quem não se interessa muito por história, já que como dito antes, sua escrita pode soar um tanto repetitiva – mesmo que essa característica o torne efetivamente didático – principalmente para leitores menos assíduos, mas é indispensável, como já salientado, ao historiador que deseja um pleno entendimento da antiguidade ocidental.

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FUSTEL DE COULANGES. A Cidade Antiga. 2ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2001


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(continua amanhã, sexta-feira)

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