sábado, 21 de maio de 2011

FUSTEL DE COULANGES – “A CIDADE ANTIGA” (3)

FUSTEL DE COULANGES – “A CIDADE ANTIGA” (3)

Editada pelo Laboratório de Estudos Urbanos reúne artigos, produções artísticas e resenhas de obras que tratem de fenômenos próprios da cidade nos múltiplos espaços do político e do urbano. Número 15 - Junho 2009 - ISSN 1413-2109
RESENHA CRÍTICA – A CIDADE ANTIGA (La cité antique)
Levi Leonel de Souza
(Continuação)


A lei estava nas mãos dos pontífices que eram considerados os únicos jurisconsultos competentes por causa de sua origem religiosa. E como as leis advieram dos deuses, nada mais natural que o direito fosse exercido pelo rei pontífice, que a conhecia de ter sido iniciado por seu pai que, por sua vez ouvira de seu pai, e assim por diante. Também não “bastava habitar a urbe para se estar submetido às suas leis e pelas mesmas protegido; cumpria ser seu cidadão. A lei não existia para o escravo, como também não protegia o estrangeiro” [bem como estes não podiam] “entrar na partilha das coisas sagradas”. Ninguém poderia se naturalizar numa cidade se já pertencesse a outra urbe, sendo esta sua pátria – terra pátria. Segundo o autor a religião fazia de cada urbe um corpo, sem possibilidades de associar-se a nenhum outro. O isolamento era a lei da cidade; sua autonomia política, jurídica, governamental, religiosa e moral em relação às outras era seu bem maior. Esse formidável regime municipal, contudo, sempre esteve ameaçado pela resistência interna de clientes e escravos, bem como pelos ataques de outras cidades. Logo foi necessário uma federação de cidades para que se pudesse admitir as novas reivindicações políticas e jurídicas, bem como aplacamento das discórdias e, no limite, a expansão do poder de certas cidades, como Atenas, Esparta e Roma.

Na última parte de seu livro Fustel se dedica a mostrar o desmonte deste regime municipal por uma série de revoluções que se iniciam pela retirada da autoridade política dos reis, atitude tomada pela aristocracia, constituída de patres – os chefes de família. Em Esparta, Atenas e Roma a realeza foi alvo de constantes ataques da aristocracia – os eupátridas. Em seguida houve alterações na constituição da família, desaparecendo a primogenitura, desagregando as gens, quase sempre nos movimentos que a realeza fez para enfraquecer os iguais – os chefes das gentes. A libertação dos clientes acabou arrancando a terra à religião e entregou-a ao trabalho, já inaugurando o direito à posse, mas não, ainda, o de propriedade. Talvez a revolução mais contundente, pelo menos em extensão, tenha sido a participação da plebe no regime da cidade, colocando no poder os tiranos, chefes que não podiam ser reis, por faltar-lhes os segredos religiosos, inaugurando o poder do homem sobre o homem, com a missão precípua de proteger a plebe contra os ricos. Daí em diante a aristocracia, que não conseguia voltar ao poder, passou a colaborar com as tentativas de se instalar regimes monárquicos, organizando-se em um corpo semelhante a aristocracia e se espalhou por toda a Grécia e Itália (séc. VII ao V a.C.), distinguindo-se em classes apenas pela quantidade de riqueza. Nesse regime cada cidadão podia exercer o sacerdócio por um ano, sem privilégios de nascimento, de religião ou político. Roma foi exceção, onde o patriciado manteve o poder, criando-se o tribunado da plebe – o plebeu tornava-se ele mesmo sagrado para que pudesse legislar sobre a plebe. Esse caráter de sacralidade era transmitido de tribuno a tribuno, tendo sido doado pelos religiosos do patriciado que eram os criadores da sacralidade doravante transmitida.

O direito tornou-se público e conhecido por todos, sendo do povo a emanação do poder de promulgar leis que o legislador possuía, bem como as leis deixam de ser patrimônio das famílias sagradas. Com isso, surge a revolução democrática, onde qualquer cidadão rico poderia ser, por exemplo, magistrado, e em tese todos podiam alcançar os mais alto degraus sociais sem serem eupátridas ou patrícios. Mas também, por causa das guerras que dizimavam as classes superiores, estas foram obrigadas a oferecer armas e títulos às classes inferiores que acabaram por formar parte importante do povo. Por ser uma democracia onde todos, por direito, exerciam as funções da malha de governo, cedo acabou por desaparecer o regime democrático, sufocado pelo excesso de atribuições do cidadão e do quanto caro isso era para ser mantido. 

O regime municipal se esvaiu por motivos bem diversificados: as cidades-Estado se uniram, formando federações; filósofos como Pitágoras e Anaxágoras combateram as leis da cidade; os sofistas começaram a falar de uma nova justiça; Sócrates combate a tradição; as idéias de Platão e Aristóteles são contrárias ao regime municipal. Todos foram responsáveis pelo seu enfraquecimento: desde as tímidas investidas de Platão (que adorava o governo da cidade e as tradições) até as fortes posições políticas de Zenão (concebendo a idéia de Estado como composto por todo o gênero humano). Mas quem deu o toque mais profundo e duradouro nestas transformações foram os estoicistas, emancipando o indivíduo, rejeitando a religião da cidade, desdenhando da servidão do cidadão ao Estado, libertando sua consciência, incitando-o a participar da política e estimulando-o a aperfeiçoar-se intimamente (algo inexistente nos regimes anteriores).
            
 O autor e seus contemporâneos
            
Ao leitor de Fustel parece que este esteve inteirado das idéias do francês Auguste Comte (1798-1857) e sua obra “Curso de Filosofia Positiva”, onde afirma que todos os fenômenos estão sujeitos a leis naturais uniformes; o projeto comtiano era fazer com as ciências sociais o que Galileu, Kepler e Newton fizeram pelas ciências naturais, fundamentando suas teorias nas leis das três etapas: a teológica (onde o homem explica os fenômenos naturais e sociais em termos divinos), a metafísica (onde a explicação está em forças abstratas) e na científica – o positivismo (explicação baseada em leis imutáveis da natureza). Segundo o positivismo, os estudos históricos se atrasaram em relação à física, matemática ou astronomia. É exatamente com essa impressão que ficamos ao ler sua obra. Tanto a de que ele tentou corrigir esse atraso, bem como o de que não foi tão positivista. Assim, o vemos declarar, de modo positivo, a respeito de crença: “Nada de mais poderoso existe sobre a alma. A crença é obra do nosso espírito, mas não encontramos neste liberdade para modificá-la a seu gosto. A crença é de nossa criação, mas a ignoramos. É humana, e a julgamos sobrenatural. É efeito do nosso poder e é mais forte do que nós” (139/140). Mas, antes (p. 2,3), disse: “Tentaremos mostrar por que regras eram regidas estas sociedades e deste modo mais facilmente verificaremos por quais razões essa mesmas regras jamais poderão voltar a reger a humanidade”. Quando pensamos em condições de produção da sociedade, em termos ideológicos, Fustel nos faz deter o pensamento, dizendo que a “causa que as produz deve ter algo de poderoso, devendo residir no próprio homem, [que] algo do próprio homem se transformou. Temos, efetivamente, algo do nosso ser a modificar-se de século em século: a nossa inteligência”. 

Mas, para nosso século, a identidade é um movimento na história (E. Orlandi, 1990); a inteligência, o sujeito são precipitados políticos, algo que escapa a Fustel, tanto por tentar atender ao positivismo, quanto por não ser fiel a ele, ficando no estágio metafísico de produção de conhecimento, afirmando que a cidade dos antigos, sua política, sua urbe, suas instituições jurídicas foram produtos da religião, isto é, da crença destes homens. Com isso, ele não parece ter conhecido as idéias de outro contemporâneo, dessa vez alemão: Karl Marx, teórico social, interessado na economia e história (aqui não há novidade, pois Marx só foi reconhecido já no séc. XX). Se Fustel, brilhantemente, nos mostra a luta de classes em suas entranhas, não parece disposto a dizer, segundo a agenda marxiana, que a história é a história da luta de classes e que seu fundamento é econômico; ou que “cada forma de produção [de riquezas] cria suas próprias relações de direito, formas de governo etc” (1996, p.29), preferindo centrar sua atenção na crença religiosa. Esta é que seria o motor social da família, do genos e depois da cidade-Estado. Ele crê, mais exatamente, que a economia estava a serviço da religião.

 Por um viés, hoje corrente, por exemplo, na teoria do discurso (Pêcheux, 1995; Orlandi, 2001), sabemos que a história deve ter como referência as condições de produção que a implica num “processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção econômica” (Pêcheux, p.190). Termina seu livro dizendo: “Fizemos a história de uma crença. Estabelece-se a crença: constitui-se a sociedade humana. Modifica-se a crença: a sociedade atravessa uma série de revoluções. A crença desaparece: a sociedade muda de aspecto. Esta foi a lei dos tempos antigos” (p.451). Talvez Marx dissesse que o verdadeiro objeto de estudos de Fustel deveria ter sido a luta pelo poder econômico. Quando este passou de uma classe a outra a religião tratou de trazê-lo de volta ou novas religiões se fizeram necessárias para administrar essas passagens.       Diga-se, também, que Fustel nos brinda com um panorama nítido do nascimento do Direito e suas instituições. Algumas das questões de sua época (que sobrevivem ainda hoje) sobre a origem de certas figuras jurídicas são tratadas com cuidado e de modo bastante consequentes. Trata-se, pois, de uma obra que bem pode auxiliar o estudioso das leis antigas.
            
Sua obra nos impressiona vivamente, pela obstinação em determinar seu objeto de estudos. Talvez se possa dizer de sua obra o que se disse de Marx: que é um clássico a quem nunca se adere integralmente. E se a obra marxiana obriga a releituras, a obra de Fustel, por seu turno, e pelo ofício de historiador, é uma releitura, ela mesma, da história da história.  

REFERÊNCIAS:

COMTE, Auguste Curso de filosofia positiva (Os pensadores). São Paulo, SP: Nova Cultural,      1996.
MARX, Karl Para a crítica da economia política (Os pensadores). São Paulo, SP: Nova  Cultural, 1996.
ORLANDI, Eni Puccinelli Análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 3ª ed., 2001.


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A série FUSTEL DE COULANGES – “A CIDADE ANTIGA”  continua segunda-feira próxima, dia 23/maio

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