segunda-feira, 30 de maio de 2011

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (1)


[Fonte - NAU LITERÁRIA A Poesia Urbana de Chico Buarque 1 Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007]

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (1)

Vivian C. Alves de Carvalho


Resumo: O presente ensaio trata da visão de Chico Buarque sobre a sociedade urbana brasileira expressa em suas canções. Observa-se uma mudança de ponto de vista ao longo do tempo, acompanhando o crescimentodas cidades e também de seus flagelos. Nos anos 60, temos um artista consciente dos problemas, mas otimista com relação ao futuro. Nos anos 70, temos a expressão da falta de esperança diante do horror da ditadura militar. A partir da década de 90, tempos de democracia, Chico assume seu amor pelo Rio de Janeiro – num primeiro momento, enaltecendo suas belezas, e depois, reconhecendo seus problemas.

Palavras-chave: Chico Buarque; cidade grande;- sociedade brasileira.

Abstract: The present paper focuses on Chico Buarque’s view concerning the urban Brazilian society expressed in his songs. There is a change in his point of view throughout the years following the growth of the big cities and their scourges. In the 60’s, we have an artist who is aware of the problems, but is optimistic about the future. In the 70’s, we have a total hopelessness in face of the military dictatorship horror. From the 90’s on, democracy times, Chico assumes his love for Rio de Janeiro – firstly, praising its beauty, and then recognizing its problems.

Keywords: Chico Buarque; big city; Brazilian society.

1 Primeira parte

Entre os muitos temas abordados por Chico Buarque em sua obra poética destaca-se a cidade, ou seja, o espaço, a vida urbana e todos os seus elementos. Porém, o sentimento expresso não é sempre o mesmo. Há uma variação de tom. Entre Pedro Pedreiro, uma de suas primeiras canções, lançada em 1965, e Subúrbio, do álbum mais recente, lançado em 2006, sabemos que a caminhada foi longa e que sua visão sobre a sociedade brasileira foi se moldando aos poucos, foi amadurecendo a cada novo disco. A visão nostálgica apresentada em A Banda contrasta radicalmente com a acidez de Construção, e há uma diferença de apenas cinco anos entre elas, sendo a primeira de 1966 e a segunda de 1971. Entretanto, apesar dos contrastes, é possível notar uma definição de ponto de vista: malandros, pivetes, guris, entre tantas outras figuras tipicamente urbanas, povoam a obra do autor, evidenciando a preocupação com o destino da sociedade brasileira. Esse Chico Buarque militante das décadas de 70 e 80 chega aos anos 90 aparentemente conformado  com a miséria das cidades grandes em geral e se volta para o Rio de Janeiro, o seu Rio de Janeiro, tão bem desenhado na canção Carioca, que está no álbum intitulado As cidades, de 1998. Em 2006, a já citada  Subúrbio, de Carioca, mostra um retorno do olhar do poeta para os marginalizados, mas de um jeito completamente diferente, com uma leveza que parece não combinar com aquilo que descreve.

É interessante também o fato de que, na década de 90, o poeta dá lugar também ao romancista. Estorvo, de 1991 e Benjamim, de 1995 são narrativas urbanas e desconcertantes que, cada uma à sua maneira, contribuem para o retrato não muito iluminado da sociedade atual pintado por Chico Buarque. Em 2002, o estrondoso sucesso Budapeste confirma a maestria do autor no campo da literatura e mostra mais um ou alguns lados negativos da vida nas cidades grandes.

A proposta deste ensaio é analisar as diversas perspectivas do poeta Chico Buarque em relação à cidade, à vida urbana e seus flagelos. É importante esclarecer que, embora esteja lidando com canções, que a rigor não são poemas, optei por não me deter nos aspectos musicais, como melodia, harmonia, arranjos, para focalizar apenas a temática. Dessa forma, as letras são aqui tratadas em seu aspecto poético, lírico. Não me deterei, também, nos romances. Acredito que poderiam ajudar a montar o quadro da sociedade urbana do Brasil, entretanto, a idéia deste trabalho é estudar apenas a poesia do autor. Além disso, o tamanho de um ensaio não comportaria mais esse estudo, que certamente não seria breve. Contudo, não descarto a possibilidade de estendê-lo futuramente. Por ora, fiquemos com as canções.

2 Segunda parte

O primeiro disco de Chico Buarque abre com A Banda:


Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro
parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e
pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e
dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e
insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor


Trata-se de um episódio, um breve momento em que uma cidade pára para ver e ouvir uma banda cantando coisas de amor. Personagens diversos aparecem, com seus respectivos problemas, que são esquecidos até que chegue ao fim a passagem da tal banda. Por trás dessa aparente simplicidade, encontramos versos que parecem traduzir o sentimento de solidão que é tema de poesia há décadas: E cada qual no seu canto / Em cada canto uma dor. O individualismo é a marca maior da modernidade. Cada um cuida da sua vida, das suas angústias, dos seus problemas. Não há tempo para olhar para o lado, estender a mão a algum necessitado. A Banda nos mostra que nem tudo está perdido. A simples passagem de uma banda de música é capaz de fazer uma cidade inteira parar, esquecer seus problemas e ser feliz, ainda que por um brevíssimo período. Por mais que isso possa parecer muito pessimista, creio que é justamente o contrário. Ao mesmo tempo em que notamos uma nostalgia em relação ao passado, podemos também perceber a esperança de que alguma coisa pode nos salvar. E a banda seria um símbolo disso: de algo que vai nos fazer parar e prestar mais atenção às coisas boas e belas da vida.

Maria Rita Kehl (2006), em matéria publicada na revista Bravo! afirma:


Por obra da ironia que marca o vínculo inconsciente entre a obra de arte e o gosto do público, A Banda estourou na cidade que mais crescia no Brasil ao dar voz à memória interiorana do país recém-urbanizado. A rua onde o poeta estava à toa quando a banda passou “cantando coisas de amor”, espaço de convivência pacífica e plural, já fazia parte da memória recalcada pelo “Brasil Grande” do projeto militar. (KEHL, 2006, p. 75)


Kehl levanta uma questão interessante: A Banda, que à primeira vista não se enquadraria no que estamos chamando de poesia urbana, representa, de certo modo, uma contradição. Na década de 1960 o Brasil está em plena ditadura militar, mas também em pleno desenvolvimento econômico e industrial. Está lutando com todas as forças para assumir um caráter urbano, quando surge um artista cantando a beleza de um passado pacífico e nada urbano. E, apesar da dissonância entre o poema e a realidade, A Banda faz um enorme sucesso e consagra o jovem Chico Buarque como grande compositor. Portanto, podemos afirmar sem medo de errar que não é só aos poetas que a angústia da modernidade aflige. No mesmo disco, cinco faixas adiante,  encontramos Pedro Pedreiro:


Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval
E a sorte grande no bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o
mundo
Maior do que o mar
Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem...


A situação aqui é bastante diferente da anterior. Trata-se de um sujeito que veio do norte para tentar melhorar de vida numa cidade grande, urbanizada. O máximo que consegue é um emprego de pedreiro, mas isso não lhe tira a esperança. A palavra que mais aparece nos versos de Pedro Pedreiro é “esperando”. Pedro espera o trem, espera o aumento, espera o carnaval, espera ganhar na loteria. Sua mulher espera mais um filho, e Pedro, no fundo, sabe que o destino do menino é, também, esperar.

Logo após dar-se conta de que mais um ser humano está vindo ao mundo para ele sustentar, Pedro passa a esperar coisas diferentes: o dia de voltar para a sua terra, a morte. Chega a sonhar com algo maior – Pedro não sabe mas talvez no fundo / Espera alguma coisa mais linda que o mundo / maior do que o mar – porém a realidade não tarda a lhe trazer de volta – Mas pra que sonhar / Se dá um desespero de esperar demais / Pedro pedreiro quer voltar atrás / Quer ser pedreiro pobre e nada mais.

Assim, notamos uma certa confusão quanto ao objeto da esperança do pobre pedreiro, porém, é uma esperança que nunca o abandona. Por mais que às vezes ele deseje a morte, ele sabe que precisa continuar trabalhando. Ainda que cogite voltar para sua terra natal, Pedro sabe que lá definitivamente não há esperança de um futuro melhor. E assim ele vai ficando na cidade, esperando o trem que já vem, que já vem, que já vem...

Alguns anos depois, com Construção, notamos que o trem que Pedro Pedreiro esperava
não chegou:


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um
príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado


É claro que não há nada que confirme explicitamente a ligação entre Pedro Pedreiro e o operário de Construção. Entretanto, pelo menos em termos interpretativos, é perfeitamente lícito considerar esta como uma espécie de continuação daquela. É bastante verossímil imaginar um sujeito que vem do norte para a cidade grande tentar a sorte, se depara com uma dura realidade, arruma um emprego que é o máximo que sua qualificação pode lhe proporcionar e disso não consegue passar. A esperança de Pedro Pedreiro não é suficiente, e acaba sendo substituída por uma angústia profunda, por uma depressão que o leva a cometer um ato extremo, como podemos ler no poema descrito acima.

Tudo acontece gradativamente, vamos nos dando conta do que está por vir aos poucos. O dia corre normalmente, como na sua rotina diária. A diferença é que agora ele se despede da mulher e dos filhos como se não os fosse ver novamente; trabalha, levanta paredes, com lágrimas nos olhos, come seu almoço soluçando, entra num estado de delírio – Dançou e gargalhou como se ouvisse música – e põe fim à própria vida. A marginalização não o abandona nem na hora de sua morte, uma vez que ele morre atrapalhando o tráfego.

A história está contada na primeira estrofe. É uma angústia que vai aumentando a cada verso, até chegar ao trágico fim. As duas estrofes seguintes são constituídas de variações dos versos já colocados na primeira, não deixando dúvidas sobre o infortúnio do pobre homem. A repetição das frases contribui para tornar a situação ainda mais dolorosa e as proparoxítonas que invariavelmente encerram cada um dos versos de alguma forma simbolizam a rigidez da cidade grande.

Os elementos urbanos se misturam aos frutos do momento de aflição, emoção e delírio do operário: os tijolos formando um desenho mágico, que se tornam paredes mágicas depois,os olhos embotados de cimento e lágrima, o pacote flácido flutuando sobre o asfalto. Dessa forma, fica clara a relação entre o suicídio e a dificuldade e a dureza da vida urbana.

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(continua amanhã, terça-feira)

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