sexta-feira, 13 de maio de 2011

OLIVEIRA - Lendo a metrópole comunicacional (1)

Lendo a metrópole comunicacional: culturas juvenis, estéticas e práticas políticas1 (1)

Profa. Dra. Rita de Cássia Alves Oliveira2
Centro Universitário SENAC – SP – Brasil

Rita de Cássia Alves Oliveira é doutora em Antropologia. Pertence ao corpo docente do Centro Universitário SENAC-SP (Brasil), onde ministra aulas de Antropologia Visual nos cursos de graduação e pós-graduação em Design e Fotografia e realiza pesquisa sobre as relações entre o design, as culturas juvenis e a metrópole. Pertence, ainda, ao Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como colaboradora na pesquisa internacional “Jovens urbanos: consumo cultural, experimentação da violência e concepções de vida e morte”. E-mail: ritacao@uol.com.br

RESUMO: As cidades são espaços de leituras e de escrituras. Durante a segunda metade do século XX, as intervenções urbanas juvenis dessas escrituras, recheadas dos imaginários desses jovens, os grafites, stickers e as pichações que cobrem os muros, os postes e o mobiliário urbano das grandes cidades, apontam técnicas e estéticas emergentes que se concretizam por meio das sociabilidades, pertencimentos e identidades juvenis, assim como seus nomadismos e articulações políticas e ideológicas. Este trabalho propõe uma reflexão sobre estas intervenções urbanas juvenis como produtos culturais, que se inserem na complexa rede de pertencimentos, produções e apropriações simbólicas, disputas e lutas hegemônicas. Produtos de estrutura das organizações juvenis, essas intervenções urbanas apontam a emergência de práticas e ações políticas características dessas metrópoles contemporâneas; podem ser lidas como comunicações subversivas e de resistência, trazem o inconformismo juvenil com relação ao consumismo, à política institucionalizada, às questões ecológicas e à especulação imobiliária; questionam a propriedade privada e os espaços públicos em seus nomadismos juvenis.

  1. Cidade e as imagens: práticas de leituras e escrituras

Na virada do milênio, a vida na metrópole contemporânea está cada vez mais agitada e colorida. Os muros, paredes e postes da cidade enchem nossos olhos com mensagens gráficas dos grafites, pichações e stickers3. Na concorrência com os anúncios publicitários e políticos, com as arquiteturas, organizações urbanísticas e sinalizações de toda espécie, esse tipo de prática ganha as grandes cidades mundiais na medida em que as culturas juvenis vão se destacando na esfera cultural, social, econômica e política.

As imagens estão na base de constituição do Homo sapiens. A sua grafologia encontrou nas sepulturas e nas pinturas milenares um universo estético propício para a constituição do seu imaginário. Para Edgar Morin (1975), a novidade dessa espécie, sua maior e interessante característica, é sua sensibilidade estética concretizada em formas, planos, cores e texturas que marcam a emergência de um pensamento mágico e mitológico, que supera imaginariamente a morte e que “resolve” os conflitos, supera os obstáculo e problemas de sobrevivência relacionados, por exemplo, à alimentação e à fertilidade. Este novo universo estético revela que um poderoso imaginário emerge no Homo sapiens e mobiliza-se para garantir mitologicamente a imortalidade e dar conta dos medos, desejos, frustrações e afetividades que o movimentam. Embalado por esta sensibilidade estética e pelo pensamento mitológico, o sapiens-demens não separa o real e o imaginário; as imagens ganham vida e alimentam o imaginário (Morin, 1975,1989).

Esta grafologia do homem moderno ganha novos ares com os cartazes de rua, homens sanduíches, cartões de visita e o emergente mercado editorial (Hollis, 2000). As ruas metropolitanas transformam-se em labirintos de imagens; as cidades transformam-se, mais do que nunca, em espaços de escritura.

Foi Walter Benjamin (1985, 1989) quem propôs que a legibilidade das imagens da cidade poderia compor um caminho interessante para a realização de radiografias da Modernidade:


[...] a partir da leitura da superfície da metrópole, o crítico procura ver o rosto da modernidade ”de dentro”, investigando os traços da cultura burguesa, a mudança de padrões culturais, o imaginário social e político e a ação dos intelectuais, mediadores culturais e produtores de imagens (Bolle, 2000: 20).



A metrópole pode ser lida. Há um complexo sistema de práticas e um sofisticado universo imaginário inscrito nestas superfícies. Como um fisionomista, Benjamin mostra ser possível ler a mentalidade de uma época por meio das imagens e da superfície da metrópole que compõem a cultura do cotidiano; são imagens de desejo, são “resíduos e materiais aparentemente insignificantes” (Bolle, 2000: 43) que se abrem à leitura e à interpretação do olhar do fisionomista e do flâneur.

Para Michel de Certeau, a cidade é também um espaço de escritura. Está cotidianamente sendo reescrita por seus habitantes nas práticas do espaço. As metrópoles contemporâneas tornam-se labirintos de imagens: existe um vocabulário de imagens; uma paisagem de cartazes organiza nossa realidade. Como nas sepulturas e nas pinturas pré-históricas, essa escritura traz um discurso imaginário em imagens dos sonhos e da repressão de uma sociedade (Certeau, 1995: 45).


Os jovens são responsáveis por boa parte dessa escritura da superfície das cidades. A sensibilidade e o prazer estéticos característicos do Homo sapiens encontram aí solo fértil para seu desenvolvimento.


2. A cidade, os jovens e suas escrituras

Os jovens da virada do milênio são o espelho da vida metropolitana: experimentam a cidade como homens da multidão; convivem com as aglomerações cotidianamente; resistem, como podem, à homogeneização e ao anonimato das grandes cidades; inserem-se no fluxo constante de pessoas, veículos, informações, imagens.

Os jovens têm uma relação particular com as ruas e com a cidade. Nas cidades modernas há muitas maneiras de ser jovem: a metrópole apresenta-se como panorama sumamente variado e móbil, que abarca seus comportamentos, referências identitárias, linguagens e formas de sociabilidade (Margulis e Urresti, 1998: 3). A excursão pelas ruas organiza o ciclo da vida e articula a percepção do espaço urbano e o tempo cotidiano dos jovens (Feixa, 1998). Estão em mobilidade constante: escolhem onde estar e por onde ir; invadem bairros e territórios sempre em busca de novidades, do desconhecido e do desafio.

Nas últimas décadas do século XX, todas as grandes cidades passam a ter regiões inteiras ocupadas por jovens que as transformam em espaços de lazer e de vida noturna. Nesses bairros de ocupação juvenil pode-se desfrutar de certa liberdade; são locais de encontro de amplos grupos de adolescentes e estudantes, que marcam a recuperação festiva da rua como lugar de articulação das relações sociais; são espaços de interação imediata. As esquinas são o espaço “privado” dos grupos juvenis: ali se encontram, apropriam-se do território, constroem sua identidade; deixam suas marcas, explicitam suas idéias, exercitam suas sensibilidades estéticas, ocupam a cidade.

Os grafites, stickers e pichações, tão presentes na imagética metropolitana contemporânea, quase sempre são associados aos grandes centros urbanos e às potencialidades das culturas juvenis. Como frutos da vivência cotidiana, essas intervenções urbanas juvenis apresentam-nos formas, cores, texturas, conteúdos, visões de mundo e universos imaginários que compõem esses discursos. Essas manifestações gráficas juvenis tentam retirar o espectador da posição passiva de mero consumidor; são, antes de tudo, convites ao encontro e ao diálogo (Gitahy, 1999: 16); propõem a discussão e a interferência na arquitetura das metrópoles.

Grafite, pichação e stickers, produzidos incessantemente por jovens de variadas características e espalhados pela cidade, formam múltiplos painéis fragmentados e coloridos, dando à metrópole a fisionomia desses nossos tempos. A cidade transforma-se em suporte.

A pichação advém da escrita e privilegia a palavra e ou a letra. Suas origens são remotas. A cidade de Pompéia, na Itália, nas primeiras décadas da era cristã, já apresentava paredes cobertas de xingamentos, anúncios e poesias; escrevia-se de tudo por lá. A pichação foi usada regularmente por revolucionários de toda espécie para travar suas lutas hegemônicas. A invenção do aerossol, após a Segunda Guerra Mundial, renovou estas práticas com a tinta spray, que facilitou o processo quanto aos movimentos e à velocidade de produção; as manifestações estudantis de Paris, em 1968, e as atuações políticas durante a ditadura militar no Brasil marcaram para sempre no nosso imaginário a prática da pichação como elemento subversivo atrelado às experiências e expressões juvenis. É uma guerra que se intensificou nas últimas décadas nos grandes centros urbanos, acompanhando e emergência juvenil no protagonismo cultural. A pichação “aparece como uma das formas mais suaves de dar vazão ao descontentamento, à falta de expectativas juvenis” (Gitahy, 1999: 24), tanto do ponto de vista pessoal (definição de objetivos de vida, conquistas e perspectivas para o futuro) quanto do ponto de vista civil (cruzadas contra a especulação imobiliária e a publicidade excessiva). Para o grafiteiro Eduardo Saretta:


A sociedade tem de entender que pichação é um índice de desequilíbrio social. Pichar não pode, mas a caçamba de entulho pode, construir prédios que não têm a menor coerência com o espaço também pode, poluição visual gerada por uma publicidade desordenada idem. O vândalo é o moleque que escreve seu nome no meio disso tudo? 4



Escrevendo seus nomes e origens pelos labirintos cotidianos, esses pichadores são sua própria obra. Ao espalhar suas assinaturas pela cidade, se transformam em personagens urbanos e dizem: “eu existo”, “eu circulo pela cidade”, “esta cidade também é minha”. Nessa cruzada, na defesa da própria existência, muitos desses jovens são mortos pela polícia e por seguranças privados, que recebem considerável apoio das camadas mais conservadoras da sociedade nesta função de limpeza urbana.

O grafite - em comum com a pichação - tem a transgressão, mas advém das artes plásticas e
privilegia a imagem. Atrela-se, na sua origem americana, à pichação, à arte pop e ao hip-hop. Nos anos de 1960, temos a emergência da pichação chamada tag, na qual constam o nome e o número da rua do pichador, como Eva e Barbara 62 e Taki 183 e, aos poucos, essas assinaturas ganham cores e formas, até se transformar em frases. Passam, então, a demarcar os limites entre as gangues suburbanas. Em 1980, ganham visibilidade na proximidade com artistas como Andy Warhol e com galerias e bienais de artes. Na origem francesa, os grafites são inspirados na pintura, são figurativos e estão mais próximos das artes plásticas e da pintura.

Proveniente do grafitti, o sticker (ou lambe-lambe, como também é conhecido no Brasil, em referência a seu tradicional formato na cultura popular) invadiu recentemente as ruas das grandes metrópoles. Articulados às artes gráficas, os stickers são papéis adesivos produzidos artesanalmente e em número suficiente para serem espalhados pela cidade, criando percursos, apropriações territoriais e reconhecimentos em áreas distintas. Esses adesivos são considerados vantajosos por sua versatilidade e fácil aplicação. Nas caminhadas pela cidade, basta apenas encontrar o local ideal para colocá-lo. Essas características possibilitam ao sticker ocupar locais inusitados e pouco adequados para o grafite, como placas de sinalização de trânsito, semáforos e caixas de telefonia. Representante de uma nova vertente da filosofia do-it-your-self, não há limite de tamanho e as figuras são feitas com caneta, xerox, serigrafia ou tintas plásticas num forte diálogo com as artes gráficas:


Não se sabe ao certo quem começou com este tipo de expressão, mas é considerado precursor o artista americano Shepard Fairey, um dos primeiros a saturar as cidades com suas criações. Ele ficou tão famoso que hoje em dia dirige um dos mais conceituados estúdios de design gráfico dos Estados Unidos. No Brasil, há aproximadamente cinco anos, grafiteiros experientes foram os vanguardistas na divulgação da arte em papel adesivo, principalmente em São Paulo.5


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(continua amanhã, sábado)


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