terça-feira, 31 de maio de 2011

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE (2)

[Fonte - NAU LITERÁRIA A Poesia Urbana de Chico Buarque 1 Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 03 N. 01 – jan/jun 2007]

CARVALHO - A POESIA URBANA DE CHICO BUARQUE  (2)

Vivian C. Alves de Carvalho

3 Terceira parte

Outra faceta da cidade bastante explorada por Chico é a malandragem. De um lado temos aquele malandro “pratica a astúcia pela astúcia”, usando os termos de Antonio Candido em Dialética da Malandragem, para se safar de confusões cotidianas, como pagar a conta do bar; o clássico malandro carioca tão presente nos sambas de Noel Rosa, por exemplo. De outro lado, o malandro profissional, com gravata e capital, que nunca se dá mal.

Comecemos com a canção que introduz a Ópera do Malandro, peça escrita por Chico Buarque em 1978, O malandro:


O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé
O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português
Vol. 03 N. 01 _ jan/jun 2007
A Poesia Urbana de Chico Buarque 7
O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor
Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis
O usineiro/Nessa luta
Grita (ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arreglo/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom
O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação


O malandro, de acordo com a concepção de Antonio Candido em Dialética da Malandragem, ensaio dedicado ao romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, é aquele sujeito que oscila entre o pólo da ordem e o pólo da desordem. Ou seja, se comporta ora “segundo as normas estabelecidas”, ora “em oposição ou pelo menos em integração duvidosa em relação a elas” (CANDIDO, 2004, p. 32), optando por agir de uma forma ou de outra conforme a conveniência: se lhe convém sair do bar sem pagar a conta, não é porque isso representa uma violação das regras estabelecidas que vai deixar de fazê-lo. Se lhe convier infringir as leis, o fará sem culpa. Mas se não houver motivo para tanto, evitará a desonestidade.

De forma resumida, essa é uma boa definição do típico malandro carioca. Os versos acima   transcritos representam uma espécie de efeito dominó, uma vez que um personagem vai prejudicando o outro em nome dos próprios interesses sucessivamente. Assim, todos acabam entrando no pólo da desordem de forma circular. O malandro dá início à história: bebe um gole de cachaça e sai sem pagar; o garçom se dá conta de que sairá no prejuízo e rouba um dinheiro do caixa do bar; o dono do bar, o português, estranha o rombo nas finanças e dá um calote no distribuidor; este por sua vez passa a perna no usineiro, que passa a dever para o banco; assim, mais impostos são cobrados sobre a cachaça; os ianques, então, proíbem os soldados de beber e a cachaça fica parada no barril. Como estamos falando de um círculo, a situação passa a atingir novamente os personagens iniciais: o usineiro descarrega no distribuidor, que cobra do português, que corta o salário do garçom, que, finalmente, trata de entregar o malandro à justiça.

Portanto, temos aqui um tipo de malandragem que tem suas conseqüências, mas que não chegam a causar um dano irreparável à sociedade como um todo. É uma malandragem que, no fim das contas, tem um efeito mais negativo para o próprio malandro do que para aqueles que ele consegue burlar. De qualquer forma, nota-se que a malandragem está em todos os personagens, nenhum deles hesita em prejudicar o próximo para livrar a própria cara. Sendo assim, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão; não há razão para sentimento de culpa ou arrependimento.

O malandro foi o único que foi parar na justiça porque foi o causador de tudo, não porque representa o maior perigo para a sociedade. Além disso, o malandro não tem a quem recorrer.

Mas Chico Buarque enxerga um outro tipo de malandro que é bem mais perigoso. Oscila entre os pólos da ordem e da desordem de uma maneira diferente: aparentemente é um cidadão de bem, que respeita as regras e luta pelo povo; mas na realidade está apenas cuidando de interesses pessoais. Dizendo de outro modo, na verdade esse malandro não conhece de fato a ordem, pois só está nela nas aparências. Vejamos o seguinte poema:


Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central


O que podemos observar é um poeta ciente de que aquela malandragem quase ingênua de   antigamente, da “astúcia pela astúcia” simplesmente não existe mais. O que temos hoje é o malandro poderoso, que por mais que todos reconheçam seus atos ilícitos, jamais sofre as conseqüências deles. Esta canção é também faz parte da Ópera do Malandro, de 1978. Há quase trinta anos atrás, Chico Buarque parecia prever o que se tornaria o vergonhoso cenário político nacional: Malandro candidato a malandro federal / Malandro com contrato, com gravata e capital / Que nunca se dá mal.

Aquele malandro dos velhos tempos foi obrigado a se render às exigências da dura realidade das grandes cidades: trabalhar muito para sustentar mulher e filho e tralha e tal. Enquanto o novo malandro se ocupa em sair em colunas sociais, ele chacoalha num trem da
Central. Assim, fica constatado: Que aquela tal malandragem / Não existe mais.

4 Quarta parte

Uma grave conseqüência do acelerado avanço da urbanização e do descaso político é a desigualdade social. E essa questão não passou despercebida pelos olhos do poeta Chico Buarque. São inúmeras as canções que abordaram o tem. Eis aqui Brejo da Cruz, que é exemplar:


A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam  luz


As situações descritas nesse poema são facilmente reconhecíveis para qualquer pessoa que viva numa grande cidade brasileira: crianças sem ter o que comer, obrigadas a aceitar o destino que não escolheriam si se tivessem a chance de fazer a opção. Nós, que vivemos uma vida confortável, os vemos todos os dias e sabemos qual é o futuro que os espera, mas não nos damos nem ao trabalho de nos perguntar de onde eles vêm, para onde vão, do que precisam. E isso podemos perceber nesses versos: Mas há milhões desses seres / que se disfarçam tão bem / Que ninguém pergunta / De onde essa gente vem.

É notável a ironia do poeta ao se referir a essas crianças como seres. Ora, um cachorro, um gato, um passarinho são seres. Essas crianças que se alimentam de luz e assumem formas mil são pessoas. O termo impessoal e frio é escolhido justamente para mostrar o quanto a sociedade fecha os olhos diante da situação. Mais irônico ainda é dizer que ninguém pergunta de onde eles vêm porque se disfarçam muito bem. É claro que essa gente não se esconde, pelo contrário. Eles não têm onde se esconder, vivem nas ruas. Mas são tantos, que a situação já nem parece tão chocante para nós.

E o pior é que eles mesmos acabam se conformando com seu infortúnio: Já nem se lembram / Que existe um brejo da Cruz / Que eram crianças / E que comiam luz.

Jardineiros, guardas noturnos, babás, faxineiros, baleiros, etc. Uma imensa lista de atividades que em geral não podem proporcionar uma vida de muito conforto para ninguém, mas já é melhor do que se alimentar de luz. Então, é melhor esquecer a dor do passado e viver a dor de hoje, que ainda é sofrida, mas não tanto. E de qualquer forma, melhor não vai ficar. É uma visão pessimista, mas muito realista.

Outro belo retrato da difícil vida na cidade está em O meu guri:
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri


O poeta dá voz a uma mãe, moradora de alguma favela num morro qualquer, que aparentemente acredita que seu filho é um trabalhador honesto e se deu muito bem na vida, já que volta todos os dias com presentes caros. À primeira vista a notamos um orgulho imenso da mãe pelo sucesso do filho: Olha aí, ai o meu guri, olha aí. Mas quando lemos a lista de dos presentes trazidos – corrente de ouro, uma bolsa já com tudo dentro, chave, uma penca de documentos – nos perguntamos: será possível tanta ingenuidade? Será que uma mãe não percebe que seu filho está recorrendo a meios escusos para sustentar a mãe e a si mesmo? Ou será que ela prefere fingir que não vê?

O mais provável é que essa mãe opte por ignorar a natureza do “trabalho” do filho, já que até o momento nada de mal aconteceu a ele. Notamos que ela se preocupa com a integridade física do filho: Rezo até ele chegar cá no alto. E que ela sabe muito bem o que acontece lá embaixo: Essa onda de assaltos está um horror. E a seguir, um belo momento de ternura entre mãe e filho: Eu consolo ele, ele me consola / Boto ele no colo pra ele me ninar. Ou seja, a mãe cuida do filho e o filho cuida da mãe, cada uma à sua maneira. A mãe encara a atividade do filho como a única saída encontrada para se salvar da miséria. E é por isso que, mesmo quando vê a imagem do filho estampada no jornal, continua achando que o filho chegou lá. Não admite nem para si mesma que seu filho se tornou um bandido porque, para ela, ele só o é da porta de casa para fora.

Assim, encaixamos mais uma peça no quebra-cabeças que é a poesia urbana de Chico Buarque. A desigualdade social e suas conseqüências: crianças abandonadas que não têm o que comer, ignoradas por pessoas que julgam não ter responsabilidade alguma nesse problema; favelas habitadas por gente pobre, por mães cujos filhos decidem entrar para o mundo do crime para tentar sobreviver. São muitos os flagelos da vida urbana e muitos deles estão retratados na obra de Chico Buarque. Mas a cidade não é apenas lugar de malandragem e tristeza. Há também muita beleza, e Chico não a deixa de lado.


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(Amanhã, quarta-feira, a terceira e última parte)









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