sexta-feira, 20 de maio de 2011

FUSTEL DE COULANGE - "A CIDADE ANTIGA" (2)

FUSTEL DE COULANGES – “A CIDADE ANTIGA” (2)
Editada pelo Laboratório de Estudos Urbanos reúne artigos, produções artísticas e resenhas de obras que tratem de fenômenos próprios da cidade nos múltiplos espaços do político e do urbano. Número 15 - Junho 2009 - ISSN 1413-2109

Resenha crítica - A cidade antiga (La cité antique)
Levi Leonel de SOUZA
            Fustel de Coulanges (1830-1889) foi um dos mais célebres historiadores franceses. La cité antique tornou-se um clássico da investigação histórica, abordando o tema do nascimento da cidades-Estado por meio de extensa documentação que leva o estudioso das leis, o historiador, o linguista, ou o leigo, com competência e segurança, pelo labirinto das instituições jurídicas, familiares e políticas dos dez ou doze séculos em que vigoraram o regime municipal e a religião dos antigos. A meta é ambiciosa, pois pretende colocar-se dentro da cidade antiga sem dar atenção às opiniões e fatos contemporâneos a ele. Produto de um pensamento positivista, em que se crê estar distante do objeto e podendo analisá-lo sem se misturar com ele, o autor se entrega a sua pesquisa crendo-se desapaixonado e livre. Com o correr da obra o vemos tomar o partido da cultura do último terço do séc. XIX, particularmente no último capítulo, quando fala do cristianismo, mas isso não anuvia o céu de suas pesquisas; competente, trabalhador incansável e meticuloso, nos fornece até hoje um dos mais vívidos panoramas do funcionamento das cidades gregas e romanas à época das gens, tribos e cidades-Estado.
            Fustel inicia sua obra nos informando dos costumes e pensamentos a respeito da alma, da morte e a importância de se sepultar o corpo segundo extensos rituais e fórmulas pronunciadas para garantir a felicidade eterna ao falecido. As necessidades do morto são escrupulosamente satisfeitas para que este não venha a se tornar alma errante, sofrendo, assombrando e enviando doenças e má sorte à família; a morte os transformava em seres sobrenaturais e os ritos os transformavam em deuses subterrâneos. “Às almas humanas divinizadas pela morte, diz Fustel, chamavam os gregos por demônios, ou heróis. Os latinos, por sua vez, as apelidavam lares, manes, gênios”.
           O autor acredita que o sentimento religioso da humanidade grega e romana começou com este culto e, além disso, a própria cidade antiga deveria ser entendida como um dos resultados de seu aperfeiçoamento nos séculos que viriam, pois o fogo sagrado dedicado aos antepassados, morando no centro da casa, passou a localizar-se no centro da cidade. O deus lar era mantido e mantinha a família; se o fogo se extinguia a família toda estava extinta. Assim, seus ritos diários visavam manter ardendo essa chama que era a manifestação dos deuses familiares, seus antepassados, delineando a relação entre os mortos da família e o lar doméstico, a própria expressão do culto aos mortos. Essa religião doméstica tratava de oferecer os ritos aos antepassados de linhagem masculina de uma mesma família, excetuando todas as outras.
            Depois o autor nos conduz para o seio da família, onde a religião a constitui e é seu principal esteio. Havendo uma necessária relação entre seus deuses e o solo, assentavam no chão o símbolo da vida sedentária, o lar, tomando posse de uma parte de terra que já se constitui, por esse ato, em sua propriedade. Em cada casa havia um altar e ao redor dele, toda manhã, ali se reuniam para dirigir ao lar suas orações, hinos, libações, bebidas e alimentos. O casamento foi a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica, contudo não comunicava uma família com outra, ou os rituais de duas famílias, porque o direito de realizar os ritos era transmitido de varão para varão. A mulher, ao casar, passava a adorar os antepassados do esposo; a cerimônia de casamento a impedia de adorar os deuses de seu pai e ao mesmo tempo impunha os de outra linhagem masculina. Percebe-se que a crença na divindade dos mortos e os ritos a eles devidos foram o centro da família; se acaso o fogo, que deveria ser ritualizado por um filho, se extinguisse, toda uma legião de mortos e vivos deixariam de extrair dessas relações a vida e seus valores. Por isso o centro das preocupações domésticas era continuar a descendência, proibindo-se o celibato, divorciando-se em caso de esterilidade e mantendo-se a desigualdade entre filho e filha. O direito de propriedade era totalmente privado e fundido à religião doméstica e família. Sua religião prescrevia isolar o domínio e as sepulturas; a tradição ordenava que o lar fosse fixo ao solo e não fosse o túmulo deslocado. “Não foram as leis, mas a religião, aquilo que primeiro garantiu o direito de propriedade”, nos diz Fustel. Isso levou, salvo raras exceções, a somente o filho herdar a propriedade (lar e solo), a não existência do testamento e o pátrio poder. Segundo ele a família não recebeu da cidade suas leis, mas sim, da religião. O direito privado teria existido antes da cidade. Ao legislador foi imposta a lei originada na família onde o esposo possuía o poder de senhor do lar, de rei, de magistrado.
            As famílias se juntavam em genos (gens em latim) que formavam um grupo com descendência comum e origem pura, com seus deuses comuns, o que, segundo Fustel, não se pode dizer que eram associações de famílias distintas. Usavam o mesmo patronímico vivendo num “verdadeiro corpo, o verdadeiro ser vivo, do qual o indivíduo se tornava apenas membro inseparável; assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro em importância”. A família era um Estado organizado – com seu chefe hereditário – bastando a si própria, explorando a clientela e os escravos, podendo constituir-se de numeroso grupo, com uma religião que lhe mantinha a unidade, por meio do direito privado, leis próprias e formando extensa sociedade.
            O autor prossegue definindo melhor a cidade antiga, começando pelas fratrias, cúrias e tribos. Com o alargamento das famílias foi necessário conceber uma divindade superior aos deuses domésticos que fosse comum e velasse pela fratria como um todo. O alargamento das fratrias acabou gerando a tribo com seus altares aos deuses e heróis e um direito mais complexo, não havendo, acima dela, poder social algum. As cidades foram, então, reuniões de tribos que se submetiam ao deus das famílias mais fortes e numerosas; o lar passa a ser apenas o altar de um deus maior e nisso se vê a passagem de estado de fratria ou cúria (latina) para o estado de cidade. Se no começo cada tribo, tal como fora com a família, não se comunicava com outras tribos, a cidade foi o advento de associações de tribos, guardando seus ritos, segredos e identidades. Por exemplo, em Atenas, cada pessoa era ligada a quatro sociedades distintas: a uma família, a uma fratria, a uma tribo e a uma cidade. Eram instâncias que não necessariamente se comunicavam simultaneamente; um homem quando criança pertence à família e anos depois à fratria e assim sucessivamente, até que vinha a ser iniciado no culto público, tornando-se cidadão. Mas cada família mantinha seus cultos, seu altar, seus chefes seus juízes e leis próprias; só em alguns aspectos é que funcionavam como uma cidade única, uma confederação de grupos constituídos antes da formação da cidade.
              “Cidade e urbe não foram palavras sinônimas no mundo antigo. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio e, sobretudo, o santuário desta sociedade. A cidade gerava a urbe e esta era implantada de um só golpe, em um só dia”. [...]“Quando as famílias, as fratrias e as tribos convencionaram unir-se e terem o mesmo culto comum, era fundada a urbe, para representar o santuário desse culto. Assim, a fundação da urbe foi sempre um ato religioso”. Escolhida e revelada pela divindade, a localização da urbe se dava com rituais que a assentavam a partir de uma cidade, que ao formar seu corpo de leis e ritos erguiam a urbe. Isto era feito pelo fundador, o homem que realizava os ritos religiosos, sem o qual não se estabeleceria a urbe. Ele era o pai da cidade e acabava por ser um deus-lar para a cidade, sendo perpetuado pelo fogo e sacrifícios anuais das vítimas cerimoniais. O governo da cidade estava sob a autoridade religiosa do rei-sacerdote, também seu chefe político. Sua autoridade política vinha de ser sagrado e isso já lhe conferia, por extensão, o poder de magistrado, fato que não surpreende, uma vez que o rei era escolhido entre os paterfamilias – os senhores do lar que reinavam absolutos nos tempos das famílias e que, na cidade, representavam a aristocracia.

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(Continua amanhã, sábado)

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