terça-feira, 3 de maio de 2011

BRENER - A CIDADE NOS CONTOS DE RUBEM FONSECA (1)

REPRESENTAÇÃO DA CIDADE NOS CONTOS DE RUBEM
FONSECA (1)

Fernanda Machado BRENER
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Paraná - Brasil

ISBN: 978-85-99680-05-6

REFERÊNCIA:
BRENER, Fernanda Machado. A representação da
cidade nos contos de Rubem Fonseca. In: CELLI –
COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E
LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá,
2009, p. 364-371.

“Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma
rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.”
(Passeio Noturno I ,1994, p. 396)..


“Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma
rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.”
(Passeio Noturno I ,1994, p. 396).

1. INTRODUÇÃO
Rubem Fonseca é autor de um projeto literário que prima por pintar a sociedade brasileira com cores que tendem a ir muito além dos limites socialmente estabelecidos. Em seus contos, o escritor dá voz aos fantasmas da cidade, àqueles que são vistos e contudo ignorados: as prostitutas, os mendigos, os ladrões e assassinos. Justamente a população produzida e ao mesmo tempo rejeitada pela urbe. Neste sentido, Rubem Fonseca produz uma literatura que representa as transformações da cidade herdeira da tradição de Macedo, Alencar, Machado de Assis e João do Rio (ABREU, 2004, p.1). Contudo, seu texto dialoga com a realidade de forma transgressora na medida em que provoca a reflexão contundente sobre os dejetos da cidade, aquilo que não lhe interessa e é descartado.

A cidade sempre foi matéria de interesse da literatura, palco singular de uma concentração de indivíduos cujos mecanismos de interações e condutas tanto a regem como são por ela regidos. Renato Cordeiro Gomes (1994), define a cidade como a materialização da história do homem, o resultado concreto de seu desafio à natureza. A cidade é o receptáculo das experiências humanas e a escrita tem papel fundamental na fixação da memória desse trabalho coletivo.

“O texto é o relato sensível das formas de ver a cidade; não enquanto
mera descrição física, mas como cidade simbólica, que cruza lugar e
metáfora, produzindo uma cartografia dinâmica, tensão entre
racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas”
(GOMES, 1994, p.24).

Citando Barthes, Gomes (p. 153) afirma que há uma construção recíproca entre cidade e habitantes, um fala ao outro e assim se definem mutuamente. A cidade é lugar onde o diálogo com o outro se realiza e, por conseguinte provoca a definição da própria identidade. A ficção brasileira pós-moderna, ainda segundo Renato Cordeiro Gomes (2000, p.67) expõe a crise da cidade contemporânea justamente a partir da “perda do contato direto e credível entre as pessoas” provocada pelo acelerado crescimento urbano desordenado somado ao patente empobrecimento da população. O último censo (IBGE, 2000) acusou que 15% da população brasileira vive em apenas oito das capitais, cinco delas na região sul-sudeste, e que algumas delas são mais populosas que estados inteiros. Está claro que cidades tão populosas podem se converter em verdadeira  gaiolas de ratos, onde os indivíduos tem que lidar com uma gama cada vez maior de situações conflitantes.

 demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando
o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo de marquise,   
estamos sempre expulsando vagabundo de fora, tem até falso mendigo
disputando o nosso papel com a gente.” (A Arte de andar nas ruas do
Rio de Janeiro ,1994, p.613)

As transformações espaciais internas sofridas pelas metrópoles acabam por provocar mudanças também em seus moradores cujas conseqüências incluem, dentre outras, a angústia resultante da instabilidade urbana e os conflitos advindos do contato forçado entre diferentes culturas. A cidade pós-moderna, segundo Wally (2004, p.104), “exibe a diversidade social, étnica, política, evidenciando que as classes subalternas não mais “reconhecem seu lugar”, lugar este que lhe fora conferido pelo planejamento da cidade moderna, em sua organização excludente e esterilizadora.”. Assim sendo estes indivíduos apartados povoam as praças e ruas da cidade, insistindo em serem vistos, incluindo-se, à revelia, ao cenário urbano. Nesse sentido a região central assume um caráter todo especial na medida em que guarda em si, e para ela convergem, as forças geradas pela pólis. O centro das grandes cidades brasileiras ainda abriga a organização político-administrativa, os grandes bancos e instituições financeiras, estabelecimentos culturais como museus, bibliotecas e teatros apesar do surgimento de novos e menores núcleos em outros pontos de seu perímetro.

Por outro lado, deixou de ser o lugar da vida privada, da moradia e, conseqüentemente das relações afetivas. Assim sendo, parte da população de apartados sociais escolhe “morar” no centro da cidade, e corporifica os personagens, a matéria prima viva, dos contos de Rubem Fonseca. É este justamente o discurso de Zé Galinha, personagem do conto A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, morador de rua convicto, presidente da União dos Desabrigados e Descamisados.

“Queremos ser vistos, queremos que olhem a nossa feiúra, que sintam
nosso bodum em toda parte; que nos observem fazendo nossa comida,
dormindo, fodendo, cagando nos lugares bonitos onde os bacanas
passeiam ou moram (...) temos que feder e enojar como um monte de
lixo no meio da rua. (...) Eles tiram a gente da rua e a gente volta. E se
matarem algum de nós (...) a gente pega o corpo e exibe a carcaça
pelas ruas como fizeram com a cabeça do Lampião.” (1994, p. 623-
624).

Na representação da realidade, o contista invariavelmente escolhe aquilo que quer retratar. Segundo Cortázar (1993, p.151), o conto é como a fotografia bem realizada cujos limites são impostos pelo fotógrafo mas que, apesar de limitada, paradoxalmente provoca uma ampliação da realidade. Esse significado contido no fragmento de realidade que extrapola os limites provoca uma grande atmosfera de tensão no conto constitui o veículo privilegiado para retratar a cidade pós-moderna.

A velocidade é outra característica do conto que favorece a representação da cidade. A urbe urge. As grandes metrópoles impõem um ritmo acelerado vida de seus habitantes, o progresso e a modernização não podem ser retardados. Do mesmo modo o conto imprime uma velocidade à narrativa que não dá margens a divagações. (CORTÁZAR, 1993, p.152). De acordo com Gil, (2004, p.37) o conto de Rubem Fonseca revela um escrito atento às transformações engendradas dentro da sociedade pela história contemporânea cujo ritmo tenta transpor para seu texto.

Tendo em vista esses aspectos da obra de Rubem Fonseca pudemos identificar alguns elementos constituintes da representação de cidade em quatro contos. A escolha dos contos foi particularmente difícil já que o autor é reconhecido por produzir uma literatura de temática com clara predominância urbana. Optamos pelos contos em que a interação dos personagens com a cidade fosse predominante ou decisiva para a trama. São eles: A coleira do cão de 1965, A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro de 1992, O outro de 1996 e Família é uma merda de 2002. Em todos os contos os personagens caminham pelas ruas da cidade e com ela estabelecem uma relação singular. Augusto de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, e o Delegado Vilela de A coleira do cão, caminham por ruas as quais não pertencem procurando desvendar sua misteriosa tessitura para então redimensioná-las. Já a relação que os narradores dos contos O outro e Família é uma merda mantém com as ruas da cidade é muito diferente.

O primeiro se vê forçado a sair de seu mundo hermeticamente protegido do contato social imposto pela calçada para, uma vez face a face com o dessemelhante, sofrer as angústias da proximidade com o estranho. O segundo, ao contrário, tem total identificação com a paisagem urbana a se reconhece nas pessoas e ruas por onde passa estabelecendo a cartografia afetiva de sua comunidade.

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(continua amanhã, quarta-feira)


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