sábado, 14 de agosto de 2010

Magnani - A RUA ... (3)

Magnani - A RUA E A EVOLUÇÃO DA SOCIABILIDADE (3)
REVISTA DIGITAL DE ANTROPOLOGIA URBANA :::::: ISSN: 1806-0528


A RUA E A EVOLUÇÃO DA SOCIABILIDADE (3)

José Guilherme Cantor Magnani


Sociabilidade no centro

Se o uso da categoria pedaço no contexto do bairro tinha como referência a moradia e vizinhança, na pesquisa que se seguiu ( ) tal conotação desaparece: as unidades de análise eram, agora, definidas em função exclusivamente de práticas de lazer e encontro. O que se queria saber é se por ocasião dessas práticas, num território heterogêneo e acessível a todos como é o centro da cidade, estabelecem-se vínculos, sinais de reconhecimento e delimitação de espaço - de forma que aí também seja possível definir quem é e quem não é "do pedaço". ( )

Neste novo contexto foi possível distinguir duas formas de relação entre os componentes básicos da categoria - o simbólico e o espacial - com sensíveis diferenças nos estilos de apropriação e uso do espaço em uma e outra.
Num primeiro caso, o componente determinante que dá o tom é o simbólico. Os códigos são de tal maneira explicitados que não há lugar para dúvidas: é o que acontece em determinados espaços gay - bares e locais de encontro, espetáculos e dança de "entendidos" e "entendidas"; bares, lojas de discos e cabeleireiros black; salões de dança de clubbers; pontos de encontro e zoada de punks, góticos, funções, carecas; bares happy-hour de yuppies; o café dos artistas nas imediações do Ponto Chic no Largo do Paissandu, ponto de encontro de artistas circenses às segundas-feiras e assim por diante. Como exemplo de identificação de pedaço, um trecho do relatório da pesquisa:

"(...) a caminhada mesmo começa na rua 24 de Maio. Chama a atenção a calma reinante nessa rua, em contraste com a costumeira agitação de um dia útil; é até possível perceber um grupo de punks e mais adiante outro, de funções, estes últimos possivelmente dirigindo-se à loja Piter, bem a seu gosto, com grifes acessíveis ao orçamento de office-boys. Nessa rua, porém, destaca-se uma das tantas galerias da região: Centro Comercial Presidente, ocupada por lojas de discos funk, disco e outros ritmos dançantes (Disco Mania Blacks, Truck's Discos) além de outros serviços como cabeleireiros black (Gê Curl Wave, Almir Black Power, Gueto Black Power) que reforçam a particular "gramática" de sua ocupação característica: é um pedaço negro que aglutina rapazes e moças em torno de algumas marcas de negritude - determinada estética, música, ritmo, freqüência a shows e danceterias (Chic Show. Zimbabwe, Skina Club, etc.)" ("Os Pedaços da Cidade", p. 52)

Quando jovens negros saem de suas casas e dirigem-se a este seu pedaço, no centro da cidade, não o fazem, necessariamente, para dar um trato no visual ou comprar discos: vão até lá para encontrar seus iguais, exercitar-se no uso dos códigos comuns, apreciar os símbolos escolhidos para marcar as diferenças. É bom estar lá, rola um papo legal, fica-se sabendo das coisas... e é assim que a rede da sociabilidade vai sendo tecida.

A diferença, pois, com a idéia do pedaço tradicional é que aqui os freqüentadores não necessariamente se conhecem - ao menos não por intermédio de vínculos construídos no dia-a-dia do bairro - mas sim se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo, modos de vida semelhantes.
Está-se entre iguais, nesses lugares: o território é claramente delimitado por marcas exclusivas. O componente espacial do pedaço, ainda que inserido num equipamento de amplo acesso, (no caso, uma galeria) não comporta ambigüidades porque está impregnado pelo aspecto simbólico que lhe empresta a forma de apropriação característica.

O segundo caso é quando o fator determinante da apropriação é exercido pelo componente espacial: trata-se de lugares que funcionam como ponto de referência para um número mais diversificado de freqüentadores. Sua base é mais ampla, permitindo a circulação de gente oriunda de várias procedências. Estamos agora falando de manchas - neste caso, de lazer - como a do Bexiga, as da rua Augusta, a da região do Bar Avenida em Pinheiros, a dos Jardins, entre tantas outras.

Emprego o termo mancha para designar uma área contígua do espaço urbano dotada de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam - cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando - uma atividade ou prática predominante. Um trecho descrevendo a caminhada pelo Bexiga pode dar uma idéia:

(...)"E já que o objeto de observação é basicamente o cenário, começa a delinear-se uma ligação poderosa entre o Bexiga do lazer em toda sua variedade e o Bexiga-bairro: é este que fornece ao primeiro o espaço físico - o traçado das ruas, a contigüidade dos estabelecimentos, a escala das edificações, as próprias edificações - transformadas em casas noturnas. É esse particular desenho e arranjo que explicam o reforço, mais que a competição, entre as casas, por obra do efeito espelhamento: os estabelecimentos dialogam, conversam, opõem-se, complementam-se - uns ao lado dos outros e frente a frente. Existe um estímulo para passar de lá para cá, subir e descer, parar e espiar - antes de decidir-se por este ou aquele bar, boteco ou casa de show.
tradição italiana garante o apelo para a gastronomia característica da cantina, enquanto a presença negra é associada à MPB; não se pode esquecer que dos cortiços da região saem pizzaiolos, chapeiros, garçons, porteiros, ajudantes, seguranças - o sotaque é do Nordeste.

Os botecos dão apoio (o sanduíche e a bebida mais em conta, o cigarro) antes ou depois do programa principal, assim como uma passadinha na livraria cai bem, sem dúvida.
Vai se configurando uma espécie de núcleo, um espaço que se pode percorrer a pé, em vários sentidos, e não apenas para se chegar a este ou aquele ponto. Passeia-se, mesmo quando se está dirigindo a um lugar em especial; não custa dar uma olhadinha pelas muitas janelas ou portas, para sentir o movimento." ("Os Pedaços da Cidade", op. cit., p. 58-59)

Assim, numa mancha caracterizada pelo lazer como a do Bexiga, descrita mais acima, os equipamentos podem ser bares, restaurantes, cinemas, teatros, etc. que se complementam ou competem entre si, mas que no conjunto concorrem para o mesmo efeito.
O termo também se aplica a espaços marcados e procurados por outras atividades:
Faculdades /livrarias /bibliotecas /papelarias /xerox /cafés são, entre outros, equipamentos que delimitam uma área na cidade marcada pela atividade de ensino; Hospitais /consultórios particulares /centros de fisioterapia /farmácias /raio X /lojas de material cirúrgico, etc. constituem uma mancha ligada à saúde. As lojas de tecidos e malhas, assim como as de aviamentos e produtos de couro no Brás - procuradas por atacadistas e varejistas, sustentam uma intrincada rede de sociabilidade que vai além da mera compra de produtos( ). E assim por diante. Como se verá, uma mancha é recortada por trajetos e pode também abrigar vários pedaços.

As marcas dessas duas formas de apropriação e uso do espaço - pedaço e mancha - na paisagem mais ampla da cidade, são diferentes. No primeiro caso, onde o determinante é o componente simbólico, o espaço enquanto ponto de referência é restrito, interessando mais a seus habituês. Com facilidade muda-se de ponto, quando então "leva-se junto o pedaço".

A mancha, ao contrário - sempre aglutinada em torno de um ou mais estabelecimentos - apresenta uma implantação mais estável, tanto na paisagem como no imaginário. As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de acesso - o que garante uma maior continuidade, transformando-a, assim, em ponto de referência físico, visível e público para um número mais amplo de usuários. ( )

A cidade, contudo, não é um aglomerado de pontos, pedaços ou manchas excludentes: as pessoas circulam entre eles, fazem suas escolhas entre as várias alternativas - este ou aquele, este e aquele e depois aquele outro - de acordo com determinada lógica; mesmo quando se dirigem a seu pedaço favorito, no interior de determinada mancha seguem caminhos que não são aleatórios. Estamos falando de trajetos.

O termo trajeto surgiu da necessidade de categorizar uma forma de uso do espaço que se diferencia, em primeiro lugar, daquele descrito pela categoria pedaço. Enquanto esta última, como foi visto, remete a um território que funciona como ponto de referência - e, no caso da vida no bairro, evoca a permanência de laços de família, de vizinhança, origem e outros - trajeto aplica-se a fluxos no espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas urbanas.

Não que não se possa reconhecer sua ocorrência no bairro, mas é justamente para pensar a abertura do particularismo do pedaço que essa categoria foi elaborada. É a extensão e principalmente a diversidade do espaço urbano para além do bairro que colocam a necessidade de deslocamentos por regiões distantes e não contíguas: esta é uma primeira aplicação da categoria. Na paisagem mais ampla e diversificada da cidade, trajetos ligam pontos e manchas, complementares ou alternativos: casa /trabalho /casa; casa /cinema /restaurante /bar; casa /posto de saúde /hospital /curandeiro - eis alguns exemplos, dos mais corriqueiros, de trajetos possíveis.

Outra aplicação é no interior das manchas. Tendo em vista que a mancha supõe uma presença mais concentrada de equipamentos, cada qual concorrendo, à sua maneira, para a atividade que lhe dá a marca característica, os trajetos, nelas, são de curta extensão, na escala do andar: representam escolhas ou recortes no interior daquela mancha, entendida como uma área contígua.

Sanduicheria Baguette /Cineclube /Café do Bexiga /Livraria Arte Pau Brasil, nessa ordem; ou: Livraria Belas Artes /Cine Belas Artes /Bar e Restaurante Riviera - são exemplos de trajetos já "clássicos", um no interior da mancha do Bexiga, e outro na mancha da esquina da Consolação com Paulista, como resultado de escolhas concretas frente a alternativas oferecidas pelas respectivas manchas.

A construção dos trajetos não é aleatória nem ilimitada em suas possibilidades de combinação. Estamos diante de uma lógica ditada por sistemas de compatibilidades. No exemplo: Livraria Belas Artes /Cine Belas Artes /Bar e Restaurante Riviera - que mostra uma combinação não apenas possível, mas bastante freqüente, não entra na seqüência (nem como alternativa), o bar Metrópolis, apesar de estar situado na mesma mancha. Outra é a gramática que permite compreender o significado desse bar e do trajeto em que se inscreve: com características de bar "yuppie", apresenta um tipo de paquera com abordagens explícitas que o distancia do bar Riviera, por exemplo. E no caso daquele outro trajeto, recortado no Bexiga, não entra, por certo, o teatro de sexo explícito Márcia Ferro, logo ali e ao mesmo
tempo tão distante, ao menos do ponto de vista de determinado padrão de lazer.

Assim, a idéia de trajeto permite pensar tanto uma possibilidade de escolhas no interior das manchas como a abertura dessas manchas e pedaços em direção a outros pontos de espaço urbano e, por conseqüência, a outras lógicas. Sem essa abertura corre-se o risco de cair numa perspectiva reificadora, restrita e demasiadamente "comunitária" da idéia de pedaço - com seus códigos de reconhecimento, laços de reciprocidade, relações face a face.

Foi afirmado que o pedaço é aquele espaço intermediário entre a casa (o privado) e o público ou, para utilizar um sistema de oposições já consagrado, entre casa e rua. (DA MATTA, 1985). Não é, contudo, um espaço fechado e impermeável a uma e outra; ao contrário. É a noção de trajeto que abre o pedaço para fora, para o espaço e âmbito do público.

Finalmente, os trajetos levam de um ponto a outro através dos pórticos. Trata-se de espaços, marcos e vazios na paisagem urbana que configuram passagens. Lugares que já não pertencem ao pedaço ou mancha de lá, mas ainda não se situam nos de cá; escapam aos sistemas de classificação de um e outra e como tal apresentam a "maldição dos vazios fronteiriços"( ).
"Um dos pórticos para o Bexiga é constituído pelas duas quadras da rua Martinho Prado, que passa por cima da avenida Nove de Julho: de um lado, uma sinagoga, de outro, o conhecido bar e restaurante "Ferros'Bar", ponto de encontro e freqüência de homossexuais femininas, as "entendidas". E mais nada; passa-se por aí rapidamente, seja em direção à rua Augusta ou ao Bexiga". ("Os Pedaços da Cidade", op. cit., p. 55)

Terra de ninguém, lugar do perigo, preferido por figuras liminares e para a realização de rituais mágicos - muitas vezes lugares sombrios que é preciso cruzar rapidamente, sem olhar para os lados...

(Continua amanhã, domingo, dia 15 de agosto/2010)

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