quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Magnani - O LAZER NA CIDADE (1) - NAU/USP

Magnani - O LAZER NA CIDADE



José Guilherme C. Magnani

Núcleo de Antropologia Urbana (NAU)/ Universidade de São Paulo (USP)
Texto apresentado ao Condephaat para fundamentar o processo de tombamento do Parque do Povo. São Paulo, 4 de julho de 1994.


Para se entender o atual significado e crescente importância do lazer na sociedade contemporânea, é preciso situá-lo num determinado contexto que oferece, simultaneamente, o quadro de referência histórica e pistas para sua conceituação. Tal contexto é o dos primeiros tempos da Revolução Industrial, quando a disciplina, o ritmo e intensidade do trabalho só conheciam um limite: o da exaustão física e psíquica daqueles contingentes de trabalhadores arrancados de seu tradicional modo de vida, no qual a interrupção do trabalho - seja agrícola, artesanal, de coleta - era ditada pelos ciclos da natureza e legitimada por um calendário religioso que marcava o tempo através das festas e rituais. O nascente capitalismo, porém, inaugura uma nova ordem socio-econômica onde a produção já não era determinada pelas necessidades de consumo do grupo doméstico, mas tinha como eixo o mercado, que aliás fornecia um dos fatores envolvidos no processo produtivo: a força de trabalho. O problema da conservação desta última dizia respeito unicamente a seu vendedor que, de posse da remuneração, devia arcar com os custos - alimentação, alojamento, saúde, descanso.

Melhores e mais humanas condições de vida e trabalho foram, pois, desde os inícios do sistema capitalista, conquistas da classe trabalhadora. O que não deixa de constituir um paradoxo: o tempo livre, necessário e funcional desde a lógica do capital - como fator indispensável para a manutenção e reprodução da força de trabalho - é resultado da luta do movimento operário pela diminuição da jornada de trabalho, descanso semanal remunerado, férias, etc.

Para muitas tendências do movimento operário organizado, o tempo livre era de suma importância pois representava não apenas a necessária reposição da energia gasta, mas ocasião de desenvolvimento de uma cultura própria e independente dos valores burgueses. Representações teatrais, competições desportivas, sessões de canto e música, leituras, passeios, além de debates e cursos de formação - tais eram as formas através das quais os militantes preenchiam seu tempo livre.

A questão do lazer, portanto, surge dentro do universo do trabalho e em oposição a ele: a dicotomia é, na verdade, entre tempo de trabalho versus tempo livre ou liberado, e por lazer entende-se geralmente o conjunto de ocupações que o preenchem.

Se este é o quadro de referência que permite entender, em suas origens, o papel do lazer, atualmente é possível verificar algumas mudanças na forma como é encarado. Em primeiro lugar, o lazer já não é pensado apenas em sua referência ao mundo do trabalho e, principalmente, não é visto como um apêndice a ele. Uma rápida enumeração das instituições, equipamentos, produtos e atividades em torno do lazer - academias, clubes, rede de hotéis, sistemas de excursões, vestuário, os cadernos de turismo dos grandes jornais - mostra que as formas de ocupar o tempo livre são consideradas per se e constituem rentável empreendimento.

Esta desvinculação entre lazer e o universo do trabalho tem a ver, nos países desenvolvidos, com o que um autor contemporâneo (LALIVE D'ÉPINAY, 1992) chama de mudança de ethos: a realização pessoal não passa mais necessariamente pelo trabalho - ao menos não pelo trabalho remunerado: "Para muitas pessoas, o trabalho continua sendo uma necessidade, mas não como uma forma de auto-realização (...) os direitos dos seres humanos não são apenas viver e trabalhar, mas viver e desenvolver-se, o que requer segurança não apenasmaterial mas emocional". (op. cit., p.439)

O autor, evidentemente, está falando de sociedades onde os problemas de base foram resolvidos em função da política do bem-estar e onde a população economicamente ativa entra cada vez mais tarde no mercado de trabalho e sai cada vez mais cedo. Neste caso, aumenta o tempo livre e o trabalho remunerado é apenas uma das formas de atividade - nem sempre gratificante - ao lado de outras, como o trabalho doméstico, assistencial, comunitário.

O que acontece, entretanto, em países como o Brasil, marcado por profundos contrastes e desigualdades? Poderia parecer fora de propósito discutir tempo livre e lazer quando contingentes expressivos da população, em estado de miséria absoluta, não têm acesso sequer ao trabalho, numa situação até mais perversa que aquela descrita quando dos primórdios da revolução industrial. Mas exatamente por se tratar de uma situação de contraste é que, além dos dois lados extremos do quadro, existe uma significativa região intermediária. Se, para alguns, as reflexões na linha de D'Épinay já fazem sentido, e para outros a questão do lazer é um luxo, existem muitos outros, também, para os quais a prática do lazer ainda é um direito a ser conquistado, consolidado.

Trata-se, com efeito, daquela parcela da população inserida no mercado de trabalho mas que, tendo legalmente assegurados seus direitos a férias, descanso semanal remunerado etc., nem sempre tem acesso às condições reais e objetivas que permitam o usufruto do lazer: São, em geral, moradores dos bairros de periferia, distantes, carentes de muitos serviços urbanos básicos e desprovidos de espaços, equipamentos e instalações adequadas ao exercício de seu lazer. E no entanto é amplo e variado o espectro de suas formas tradicionais de uso de tempo livre, nos finais de semana: circos, bailes, festas de batizado, aniversário e casamento, torneios de futebol de várzea, quermesses, rituais e comemorações religiosas (católicos e dos cultos afro-brasileiros), excursões de "farofeiros", passeios etc. (MAGNANI, 1998). Antes, porém, de analisar as condições objetivas de exercício dessas e outras modalidades de lazer característicos dessa população, no espaço urbano, cabem algumas observações sobre sua dinâmica.

São, evidentemente, modalidades simples e tradicionais que não têm o brilho e a sofisticação das últimas novidades da indústria do lazer, mas estão profundamente vinculadas ao modo de vida e tradições dessa população. E analisando mais de perto as regras que presidem o uso do tempo livre por intermédio dessas formas de lazer, verifica-se que sua dinâmica vai muito além da mera necessidade de reposição das forças dispendidas durante a jornada de trabalho: representa, antes, uma oportunidade de, através de antigas e novas formas de entretenimento e encontro, - estabelecer, revigorar e exercitar aquelas regras de reconhecimento e lealdade que garantem a rede básica de sociabilidade. O que não é de pouca importância para uma população cujo cotidiano não se caracteriza exatamente pelo gozo pleno dos direitos de cidadania.


(continua amanhã, quinta-feira, 12 de agosto)

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