Magnani - O LAZER NA CIDADE (2 - FINAL) - NAU/USP
(continuação)
Magnani - O LAZER NA CIDADE
José Guilherme C. Magnani
Núcleo de Antropologia Urbana (NAU)/ Universidade de São Paulo (USP)
Texto apresentado ao Condephaat para fundamentar o processo de tombamento do Parque do Povo. São Paulo, 4 de julho de 1994.
(Continuação)
Assim, tomando-se como ponto de partida o espaço onde tais atividades são realizadas, é possível distinguir um sistema de oposições cujos primeiros termos são "em casa" versus "fora de casa". Na primeira categoria, "em casa", estão aquelas formas de lazer associadas a ritos que celebram as mudanças significativas no ciclo vital e têm com o referência a família, ou seja, festas de batizado, aniversário, casamento etc.
O segundo termo da oposição, "fora de casa", subdivide-se, por sua vez, em "na vizinhança" e "fora da vizinhança". O primeiro engloba locais de encontro e lazer - os bares, lanchonetes, salões de baile, salões paroquiais e terreiros de candomblé ou umbanda, campos de futebol de várzea, o circo etc. - que se situam nos limites da vizinhança. Estão, portanto, sujeitos a uma determinada forma de controle, do tipo exercido por gente que se conhece, de alguma maneira - seja por morar perto, por utilizar os mesmos equipamentos como ponto de ônibus, telefone público, armazém, farmácia, centro de saúde - quando disponíveis.
Os moradores referem-se a esse espaço - que configura um território delimitado por marcos físicos, sobre o qual se estende uma rede de relações - com a denominação de "pedaço", local freqüentado por pessoas que se reconhecem enquanto membros de uma rede social com base territorial:
"O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade".(MAGNANI, op. cit. p. 116)
É aí que se tece a trama do cotidiano: a vida do dia-a-dia, a prática da devoção, a troca de informações e pequenos serviços, os inevitáveis conflitos, a participação em atividades vicinais. E é o espaço privilegiado para a prática do lazer nos fins de semana nos bairros populares. Desta forma, o "pedaço" é ao mesmo tempo resultado (ainda que não exclusivo) de práticas de lazer, e condição para a sua prática.
Isto porque pertencer a essa rede implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade que funcionam também como proteção, inclusive quando as pessoas aventuram-se para o desfrute de lazer "fora do pedaço", como acontece com disputas de futebol em outros bairros, excursões, idas a salões de baile ou a outros equipamentos de lazer situados em outros pontos da cidade.
Como se pode ver, o momento de desfrute do lazer não pode ser considerado apenas por seu lado instrumental, passivo e individualizado - reposição das energias gastas. Isto porque, como a análise da categoria "pedaço" mostra, existe um componente afirmativo referido ao estabelecimento de laços de sociabilidade, desde o núcleo familiar até o círculo mais amplo que envolve amigos e colegas (no âmbito do "pedaço") e desconhecidos (fora do "pedaço"). Daí a importância do diálogo entre o "pedaço" (no âmbito do bairro) e outros espaços da cidade que abre, através dos "trajetos", o particularismo da experiência local para outras vivências, em outros locais: é o "direito à cidade" (LEFEBVRE, 1969), o que significa acesso a espaços, equipamentos, instituições, serviços que transcendem os limites da vida cotidiana no bairro.
No entanto, seja "no pedaço" ou fora dele, constata-se uma progressiva diminuição dos espaços destinados ao exercicio do lazer da população de baixa renda. É o que acontece principalmente com modalidades tradicionais como circos, parques de diversão, futebol de várzea; a insuficiência de áreas verdes, praças e parques - ou dificuldade de acesso a eles, em virtude de sua localização - configura outra carência, assim como a inexistência ou precariedade de instalações para atividades comunitárias, sociais e culturais. Tal situação é resultado do caráter excludente do desenvolvimento urbano e a conseqüente desigualdade da distribuição dos equipamentos, privilegiando alguns setores em detrimento de uma grande maioria.
Tal diagnóstico - apenas indicativo - por si só aponta para a solução mais evidente: uma política cultural capaz de equipar as regiões mais carentes com a infraestrutura necessária e facilitar o acessso para usufruto da rede de lazer mais ampla. Se esta conclusão se impõe, cabe, entretanto, uma segunda constatação, aparentemente óbvia, mas não sem consequências: se há carências nessa área, com maior razão é preciso preservar o que existe e é utilizado, e impedir sua destruição.
Decisões relativas ao uso do espaço não podem ser tomadas em função de apenas uma lógica que supostamente decide o que é bom, conveniente e bonito para a cidade; há outros pontos de vista, decorrentes da existência de outros atores sociais com suas tradições, modos de vida, hábitos - igualmente legítimos. Aliás, é justamente essa diversidade que caracteriza a experiência urbana: "Nesse sentido, a diversidade urbana, além de ser uma propriedade das cidades, deve ser reconhecida como o princípio que as torna cidades" (DOS SANTOS, 1985, pg. 78).
Edificações de épocas e estilos diversos, espaços culturais tradicionais ao lado de centros voltados para o experimentalismo e a vanguarda, locais escolhidos e/ou compartilhados por pessoas de diferentes faixas etárias e outros exemplos mais de contrastes caracterizam a riqueza da experiêcia urbana, a que todos os moradores da cidade - os cidadãos, no sentido original do termo - têm direito.
Tal é o contexto das práticas urbanas, entre as quais a de lazer. Como se pôde apreciar, no caso deste último, se ainda o universo do trabalho faz-se presente, ao menos enquanto definidor dos limites do tempo livre - afinal, trata-se do lazer desfrutado no final de semana, entre uma e outra jornada de trabalho - já não é principalmente por referência aos valores desse universo que o lazer adquire seu pleno sentido.
Mesmo numa sociedade como a brasileira, marcada por profundos contrastes socio-econômicos, com uma imensa população carente, cada vez mais o lazer deixa de ser pensado como privilégio de poucos, ou como algo acessório, passando a ser encarado como direito de todos e parte constitutiva de modos culturalmente diferenciados de vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DOS SANTOS, C. N. (coord.) - Quando a Rua vira Casa. Rio de Janeiro, Ibam/Finep, Projeto, 1985.
LALIVE D'ÉPINAY, C. Beyond the Antinomy: Work versus Leisure? Stages of a cultural mutatiom in industrial societies during the twentieth century. Society and Leisure. 14 (2), 433-446.
LEFEBVRE, H. - O direito à cidade. São Paulo, Ed. Documentos, 1969.
MAGNANI, J.G.C. (1998). Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo, Editora Hucitec.(2a. edição)
Texto apresentado ao Condephaat para fundamentar o processo de tombamento do Parque do Povo. São Paulo, 4 de julho de 1994.
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