quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Magnani - A RUA E A EVOLUÇÃO DA SOCIABILIDADE (2)

Magnani - A RUA E A EVOLUÇÃO DA SOCIABILIDADE (2)
REVISTA DIGITAL DE ANTROPOLOGIA URBANA :::::: ISSN: 1806-0528


A RUA E A EVOLUÇÃO DA SOCIABILIDADE (2)

José Guilherme Cantor Magnani

(continuação)



A especificidade do olhar antropológico.

Inicialmente vale lembrar que a antropologia clássica desenvolveu seus métodos de trabalho e construiu seus arcabouços conceituais com base principalmente na observação e análise dos então denominados povos "primitivos" - sociedades de pequena escala, numa terminologia mais atual. Apesar de não mais se aceitar - com razão - a oposição entre "sociedades simples" versus "sociedades complexas" para estabelecer o ponto de corte entre aqueles grupos tradicionalmente estudados pelos antropólogos e as sociedades urbano-industriais, não se pode negar que o modo de operar da antropologia, seja qual for o contexto de seu estudo, carrega inevitavelmente as marcas das primeiras incursões a campo. Que não deixam de ser particularmente sentidas - seja como vantagem ou dificuldade - quando o que se tem pela frente são questões, objetos e temas próprios das sociedades contemporâneas, na sua escala e complexidade características. Mas como, afinal, opera a antropologia?

A prática da etnografia, que caracteriza o métier do antropólogo, supõe a delimitação de contextos empíricos onde seja possível trabalhar com determinados instrumentos tais como a observação direta de comportamentos, a observação participante (quando há um maior envolvimento no cotidiano), coleta de depoimentos, de histórias de vida, narrativas orais, termos de parentesco e termos técnicos, descrição de rituais, etc.

Cabe observar, contudo, que etnografia não é uma mera descrição, coleta de dados brutos a serem posteriormente trabalhados: o que se observa, e a forma como se ordenam as primeiras observações constituem parte integrante do processo de interpretação.

Esta forma de operar, portanto, não exclui - ao contrário, supõe - a utilização de quadros teóricos mais amplos, o conhecimento de variáveis mais abrangentes, a inserção em processos históricos pertinentes. A alternância entre ambos níveis de trabalho - o trabalho com os significados em nível local e sua colocação em quadros mais gerais -, descrita por Geertz através dos termos "experience-near" e "experience-distant", (GEERTZ, 1983) caracteriza a dinâmica do trabalho do antropólogo, dentro de uma perspectiva interpretativa.

Existem algumas precauções que o antropólogo urbano procura tomar e uma delas diz respeito à forma como encara seu objeto de estudo. Se diante de uma cultura radicalmente diferente da sua a atitude é no sentido de procurar transformar o "exótico", ou melhor, o que lhe aparece inicialmente como estranho, sem sentido - porque ainda não conhecido - em familiar, o caminho do daquele que enfrenta sua própria sociedade é inverso: trata-se, aqui, de transformar o familiar, o que já é (aparentemente) conhecido em estranho, de forma a escapar à armadilha do senso comum. (DA MATTA, 1974; VELHO e VIVEIROS, 1978).

O segundo cuidado é resistir à tentação de encarar o objeto de pesquisa escolhido - este ou aquele bairro, tal ou qual seita religiosa, instituição social, prática cultural ou movimento popular - como se constituíssem uma "aldeia", nos moldes de algumas das sociedades tradicionalmente estudadas pelos antropólogos. Seja qual for o recorte escolhido, é preciso levar em consideração a malha de relações que mantém com a sociedade envolvente: a dinâmica de um espaço não se esgota no seu perímetro, assim como o significado mais amplo de uma comunidade religiosa afro-brasileira vai além dos limites do terreiro.

O desafio é manter as características da pesquisa etnográfica - a tradição da descrição e análise minuciosas, do contato prolongado, da busca de relação direta com os informantes - sem perder de vista o quadro mais amplo no qual os fenômenos culturais se desenvolvem, nas sociedades modernas.

Tendo apresentado, de forma resumida, algumas das especificidades do olhar e do modo de operar da antropologia, trata-se agora de mostrar resultados mais concretos a respeito do tema proposto. As observações que seguem - em torno das categorias manchas, pedaços, trajetos, pórticos - são o produto de pesquisas que venho realizando sobre práticas de lazer, locais de encontro e formas de sociabilidade no contexto da cidade de São Paulo.
Tais categorias constituem uma tentativa de identificar espaços, personagens e comportamentos tendo em vista a inevitável e característica diversidade das práticas urbanas. Seu propósito é perceber regularidades, padrões e significados lá onde muitas vezes o senso comum não vê senão o resultado de escolhas feitas de forma individual e aleatória.

Para apreciar diferentes tipos de experiências da rua, conforme a denominação dada neste texto, às vivências de sociabilidade em determinados espaços da cidade, foram escolhidos, dois contextos, o do bairro e o centro.



Sociabilidade no bairro

O primeiro contexto onde se pode perceber a relação entre uma forma de sociabilidade e determinada delimitação do espaço urbano é o bairro, e bairro popular, de periferia. Justamente para descrever e explicar um tipo particular de relações entre ambos os níveis é que foi elaborada a categoria pedaço, no decorrer de uma pesquisa sobre formas de cultura popular e modalidades de lazer que ocupam o tempo livre dos trabalhadores, nos bairros da periferia da cidade de São Paulo. ( ) Ao invés de pensá-las simplesmente como um mecanismo de reprodução da força de trabalho, o que se pretendia era, através da abordagem antropológica, detectar seu significado a partir do discurso e da prática concreta dos personagens diretamente envolvidos nessa rede de lazer.

Inicialmente tratava-se de demonstrar que, ao contrário de uma afirmação bastante em voga, os fins de semana dos trabalhadores não eram utilizados apenas para complementar, através de "bicos", os magros orçamentos domésticos, nem eram gastos diante dos intermináveis e "alienantes" programas populares na TV. Um contato mais estreito com os moradores de determinado bairro começou a revelar a existência de múltiplas formas de diversão, entretenimento e encontro através das quais se desfrutava o tempo livre: festas de casamento, almoços de batizado, comemorações de aniversários, bailes, torneios e festivais de futebol de várzea, festas de candomblé e umbanda, quermesses, circos, excursões, etc.

Por outro lado, essas modalidades de lazer tampouco constituíam um todo indiferenciado, disponível e desfrutável por todos, de forma aleatória: havia uma ordem. Era possível distinguir, por exemplo, formas de entretenimento características de homens, por oposição às de mulheres; de crianças versus de adultos; de rapazes e moças, e assim por diante. Outra classificação ordenava as formas de lazer segundo o local do desfrute, através dos eixos "em casa" e "fora de casa". "Fora de casa", por sua vez, subdividia-se em "no pedaço" e "fora do pedaço".

Este último, pedaço, aparecia em outras situações, denotando lealdades, códigos compartilhados, pertencimentos; a recorrência de seu uso apontava para uma riqueza de significados que valia a pena investigar. Era, sem dúvida, uma "categoria nativa" que não podia deixar de ser incorporada, após, evidentemente, algum trabalho dedicado a determinar seu campo de aplicação e remontá-la, em outro nível.

E assim ocorreu. Uma primeira análise mostrou que a categoria pedaço era formada por dois elementos básicos: um de ordem espacial, físico, sobre o qual se estendia uma determinada rede de relações. O primeiro configurava um território claramente demarcado: o telefone público, a padaria, este ou aquele bar, o terminal da linha de ônibus, talvez um templo ou terreiro e outros pontos mais delineavam seu entorno.

As características desses equipamentos definidores de fronteiras mostravam que o território assim delimitado constituía um lugar de passagem e encontro. Entretanto, não bastava passar por esse lugar ou mesmo freqüenta-lo com alguma regularidade para "ser do pedaço"; era preciso estar situado numa peculiar rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participação em atividades comunitárias e desportivas, etc. Assim, era o segundo elemento - a rede de relações - que instaurava um código capaz de separar, ordenar, classificar: era, em última análise, por referência a esse código que se podia dizer quem era e quem não era "do pedaço", e em que grau - "colega", "chegado", "xará", etc. "O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade." (MAGNANI, 1984, p. 138).

É aí que se tece a trama do cotidiano : a vida do dia-a-dia, a prática da devoção, o desfrute do lazer, a troca de informações e pequenos serviços, os inevitáveis conflitos, a participação em atividades vicinais. Para uma população sujeita às oscilações do mercado de trabalho, à precariedade dos equipamentos urbanos e a um cotidiano que não se caracteriza, precisamente, pela vigência dos direitos de cidadania, pertencer a um pedaço significa dispor de uma referência concreta, visível e estável - daí a importância do caráter territorial na definição da categoria. Pertencer ao pedaço significa também poder ser reconhecido em qualquer circunstância, o que implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade que até mesmo os "bandidos" da vila, de alguma forma, acatam.


"Pessoas de pedaços diferentes, ou alguém em trânsito por um pedaço que não o seu, são muito cautelosas: o conflito, a hostilidade estão sempre latentes, pois todo lugar fora do pedaço é aquela parte desconhecida do mapa e, portanto, do perigo" (idem, ibidem, p. 139)

Resumindo, nem a universalidade abstrata do mundo legal, nem o particularismo das obrigações e deveres ditados por laços de parentesco:
"Para além da soleira da casa, portanto, não surge repentinamente o resto do mundo. Entre uma e outro situa-se um espaço de mediação cujos símbolos, normas e vivências permitem reconhecer as pessoas diferenciando-as, o que termina por atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com a produzida pela interpelação da sociedade mais ampla e suas instituições" (idem, ibidem, p. 140)

Até aqui, o contexto do bairro e da pesquisa sobre formas de cultura popular e modalidades de lazer na periferia de São Paulo. A pergunta que se seguia era: e o que acontece em outros pontos do território urbano? Pedaço serviria para designar outros estilos de apropriação do espaço e sociabilidade em regiões centrais da cidade? Em outros termos: existem pedaços no centro?

(Continua amanhã, sábado, 14 de agosto/2010)

Nenhum comentário:

Postar um comentário