sexta-feira, 22 de junho de 2012

MORUS - DAS CIDADES DA UTOPIA E PARTICULARMENTE DA CIDADE DE AMAUROTA


DAS CIDADES DA UTOPIA E PARTICULARMENTE DA CIDADE DE AMAUROTA

(extraído de A Utopia de autoria de Thomas Morus)

- Quem conhece uma cidade, conhece todas, porque todas são exatamente semelhantes, tanto quanto a natureza do lugar o permita. Poderia portanto descrever-vos indiferentemente a primeira que meb ocorresse; mas escolherei de preferência a cidade de Amaurota, porque é a sede do governo e do senado, fato que lhe dá preeminência sobre as demais. Além disso, é a cidade que melhor conheço, pois habitei-a cinco anos inteiros.

Amaurota se estende em doce declive sobre a vertente de uma colina. Sua forma é de quase umquadrado. Começa a estender-se um pouco acima do cume da colina, prolonga-se cerca de dois milpassos sobre as margens do rio Anidra, alargando-se à medida que vai margeando o rio.

A nascente do Anidra é pouco abundante; está situada a oitenta milhas acima de Amaurota. A fracacorrente se engrossa na sua marcha com o encontro de numerosos rios, entre os quais se distinguem dois de grandeza média. Ao chegar diante de Amaurota, o Anidra mede quinhentos passos de largo. A partir daí, segue se avolumando sempre até desembocar no mar, após ter percorrido uma extensão de sessenta milhas. Dentro de todo o espaço compreendido entre a cidade e o mar, e algumas milhas acima da cidade, o fluxo e o refluxo da maré, que duram seis horas por dia, modificam singularmente o curso do rio. À maré crescente, o oceano invade o leito do Anidra numa extensão de trinta milhas, rechaçando-o para a nascente. Então a vaga salina comunica seu amargor ao rio; mas este, pouco a pouco, se purifica, e leva à cidade uma água doce e potável, e a reconduz inalterada até perto de sua embocadura, quando a maré baixa. As duas margens do Anidra estão ligadas por uma ponte de pedra, construída em arcadas maravilhosamente curvas. Esta ponte se encontra na extremidade da cidade mais afastada do mar, a fim de que os navios possam ancorar em todos os pontos da baía.

Um outro rio, pequeno é verdade, mas belo e tranqüilo, corre também no perímetro de Amaurota. Este ribeiro brota a pouca distância da cidade, na montanha sobre que está assentada; e, depois de a ter cortado ao meio, vem unir suas águas às do Anidra. Os amaurotanos cercaram a nascente de fortificações que a ligam aos arrabaldes. Desta forma, no caso de cerco, o inimigo não poderá envenenar o rio, nem barrar ou desviar-lhe o curso. Do ponto mais elevado, ramificam-se em todos os sentidos canos de barro que conduzem a água aos quarteirões baixos da cidade. Onde este meio é impraticável, vastas cisternas recolhem as águas pluviais para os diversos usos dos habitantes.

Uma cadeia de altas e largas muralhas circunda a cidade e, a pequenas distâncias, erguem-se torres e fortalezas. As muralhas, dos três lados, estão cercadas de fossos sempre secos, mas largos e profundos, atravancados de sebes e espinheiros. O quarto lado tem por fossa o próprio rio. As ruas e as praças são convenientemente dispostas, seja para o transporte, seja para abrigar-se do vento. Os edifícios são construídos confortavelmente; brilham de elegância e de conforto e formam duas fileiras contíguas, acompanhando de longo as ruas, cuja largura é de vinte pés. Atrás, e entre as casas, abrem-se vastos jardins. Em cada casa há uma porta que dá para a rua e outra para o jardim. Estas duas portas se abrem facilmente com um ligeiro toque, e deixam entrar o primeiro que chega.

Os habitantes da Utopia aplicam aqui o princípio da posse comum. Para abolir a idéia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa todos os dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha. Os habitantes das cidades tratam de seus jardins com desvelo; cultivam a vinha, os frutos, as flores. e toda a sorte de plantas. Põem nessa cultura tanta ciência e gosto que jamais vi em outra parte maior fertilidade e abundância combinadas num conjunto mais gracioso. Não é o prazer o único motivo que os incita à arte da jardinagem; há emulação entre os diferentes quarteirões da cidade, que lutam à porfia por quem terá o jardim mais bom cultivado. Na verdade, nada se pode conceber mais agradável, nem mais útil aos cidadãos que esta ocupação. O fundador do império bem o compreendeu, quando tantos esforços envidou para encaminhar os espíritos nessa direção.

Os utopianos atribuem a Utopus o plano. geral de suas cidades. Este grande legislador não teve tempo de concluir as construções e embelezamentos que tinha projetado; isso demandava o trabalho de muitas gerações. Assim, legou à posteridade o cuidado de continuar e aperfeiçoar sua obra. Lê-se nos anais da Utopia, conservados religiosamente desde a conquista da ilha e que abarcam a história de mil setecentos e sessenta anos; lê-se que, no começo. as casas eram muito baixas, não havia senão choupanas, cabanas de madeira, com paredes de barro e tetos de palha, terminados em ponta. As casas, hoje, são elegantes edifícios de três andares, com paredes externas de pedra ou de tijolo e paredes internas de caliça. Os tetos são chatos, recobertos de uma matéria moída e incombustível, que não custa nada e protege melhor que o chumbo dos danos do tempo. As janelas envidraçadas (faz-se na ilha grandeuso do vidro) abrigam do vento. Algumas vezes substitui-se o vidro por um tecido de uma finura extrema revestido de âmbar ou óleo transparente, o que oferece ainda a vantagem de deixar passar a luz e evitar o vento.

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