HÁ UM ANO ... MÊS MILTON SANTOS (2)
sexta-feira, 3 de junho de 2011
MÊS MILTON SANTOS (2)
MÊS MILTON SANTOS (2)
DEZ ANOS SEM MILTON SANTOS (2001 - 2011)
Teoria e Debate entrevista Milton Santos
sexta-feira, 19 de junho de 2009
Fonte: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=1106 Entrevista: Milton Santos |
em 30/04/1999 |
Milton Santos é geógrafo, professor da Universidade de São Paulo e autor de mais de quarenta livros. Um dos intelectuais brasileiros de maior projeção internacional, vem realizando importante reflexão sobre as conseqüências da globalização para a humanidade, que foi sistematizada em seu livro A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, que recebeu o Prêmio Jabuti de 1997. por José Corrêa Leite*
O senhor sofreu uma influência importante do existencialismo sartriano na sua formação?
Com certeza. A leitura que pude fazer de Sartre ajudou muito na minha produção geográfica.
Quais figuras o senhor destacaria como importantes para a produção de sua obra?
Primeiro os clássicos, que aprendi no ginásio: Aristóteles, Platão, Leibnitz, Whitehead. É evidente que Marx teve um papel destacado. E também Henri Lefèbvre, embora eu o considere mais fácil do que Sartre e por conseguinte menos instigante, menos provocativo.
Quando o senhor fez o doutorado na França, teve contato com essas pessoas?
Não, o contato que tive com o grupo de Sartre foi depois, a partir de 1964. As idéias que exponho atualmente apareceram em embrião há vinte anos em um artigo na revista Les temps modernes.
E dos intelectuais que pensam a condição do Brasil, o senhor destacaria alguém?
Não poderia deixar de mencionar Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr.
O
senhor registraria uma ruptura entre a reflexão empreendida no diálogo
com essas figuras, que marca toda sua contribuição anterior para a
renovação da geografia e sua reflexão mais atual? Confrontando
Por uma geografia nova e A natureza do espaço me passa a idéia de um
movimento de renovação intelectual muito grande e consistente.
É
difícil falarmos de nós mesmos, mas pouco a pouco já vinha se dando, na
minha obra, uma separação das prisões do empírico e a busca de uma
construção mais filosófica. Quando escrevi Por uma geografia nova, vivia
fora do país há muito tempo e a partir de um certo momento não conhecia
mais o Brasil, porque o país mudou muito depois de 64, tanto em termos
de materialidade como de relações sociais. Então, a filosofia era o
único refúgio para mim, a única forma de continuar vivendo. O Brasil se
distanciava e havia a incapacidade de apreender intelectualmente os
outros países onde trabalhei e sobre os quais escrevi muito pouco.
Escrevi um pouco mais sobre a Tanzânia, sobre a África Ocidental, porque
era uma história capitalista menos complexa e com as similaridades
dadas pela condição de Terceiro Mundo, questão que era central na minha
base teórica. Isso me levou a Por uma geografia nova, que era expressão
de uma linha de duplo combate: em relação aos meus colegas do Norte e em
relação ao Brasil, onde eu estava pisando de volta.
Aí
eu passei quinze anos trabalhando na preparação desse outro livro, A
natureza do espaço, no qual queria mostrar que a geografia também é uma
filosofia. Eu tinha uma inconformidade com a minha disciplina e com o
que havia escrito antes sobre ela. Empreendi então a fundamentação da
idéia de que a geografia é uma filosofia das técnicas. E como tal, ela
somente podia se tornar teórica com a globalização, porque antes não
havia técnicas planetárias e a universalidade dos filósofos não havia se
tornado empírica. Acho que a minha pequena contribuição à filosofia é a
idéia de universalidade empírica, que só podia brotar da cabeça de um
geógrafo, vendo como os lugares se tornaram parecidos, na sua enorme
diferenciação, com a globalização. Mas o que eles têm de parecido não
são só os vidros fumês das grandes cidades. Essa psicosfera tem uma base
técnica, a produção, as condições de vida das pessoas. Eu tive essa
idéia da geografia como filosofia das técnicas há 35 anos. Mas esta
elaboração só podia se tornar concreta e sistematizada num livro com a
globalização. Aí é visível a inseparabilidade do individual e do
universal, através do lugar e do mundo.
Em
alguns textos meus de mais de vinte anos já aparece a palavra
globalização. Mas acho que como fruto dessa solidão enorme que foi minha
trajetória, a partir da ausência da condição cidadã, porque não estava
no meu país, estava longe do embate político e incapaz de participar
dele. E absolutamente convencido de que era por meio das idéias que
poderia ter um papel. Isso me facilitou a decisão de não participar da
vida partidária quando voltei. Eu tinha a certeza de que um dia os
intelectuais iam ter voz no Brasil. E hoje estou orgulhoso e feliz de
poder participar do debate político, sem nenhuma vinculação a partidos,
ainda que não esconda as minhas simpatias, que vão para o seu partido.
Esse
tratamento da geografia, que permite retirar as contribuições que ela
pode oferecer para a ação política, significa abordá-la de forma
interdisciplinar?
A interdisciplinariedade não se produz a partir das disciplinas. Ela se produz a partir das metadisciplinas. Eu converso com os outros colegas a partir da minha filosofia e da deles. Mas não da minha disciplina. Se eles não tiverem a filosofia, se eles não forem capazes de produzi-la, não há possibilidade de diálogo.
Outro
problema é que a filosofia não está sendo capaz de ajudar na produção
das filosofias particulares. Os filósofos me ajudaram, mas nenhum deles
foi capaz de me entregar um esquema. E não podiam. Imagine um filósofo
se ocupar de coisa tão boba como a geografia! Mas cada disciplina,
olhando a realidade a partir de um prisma, tem, ela própria, sua rede e
seus pontos nodais, que formam a rede. E a teoria é uma rede. A teoria
não é um conceito solto, é um sistema de conceitos. Então, os filósofos
acabam sendo os inspiradores e depois, lá adiante, os fiscais.
Mas
cada disciplina tem que elaborar a sua filosofia. No caso da geografia,
ela alcançou agora a sua maturidade histórica. Não podia ser antes. A
universalidade empírica da globalização, graças a essa onipresença das
técnicas da informação, das técnicas da produção, da circulação, do
comércio etc. acaba fazendo com que cada lugar se reconheça no mundo.
Seria uma forma particular de exercício do mundo. Isso garante essa
integração entre lugar e mundo, que é a base de uma teoria geral do
mundo, vista a partir de lugares, do universal e do particular, que é a
ambição filosófica suprema. E que para nós não era possível antes, na
geografia.
Como o senhor vê o processo de globalização?
A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Para entender esse processo, como qualquer momento da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política.
Há
uma tendência em separar uma coisa da outra. Daí muitas interpretações
da história a partir das técnicas. E, por outro lado, interpretações da
história a partir da política. Na realidade, nunca houve na história
humana separação entre as duas coisas. As técnicas são oferecidas como
um sistema, utilizado através do trabalho e das formas de escolha dos
momentos e dos lugares de uso das técnicas, das combinações entre elas. É
isso que fez a história.
Chegamos
ao fim do século XX e o homem, por intermédio dos avanços da ciência,
produz um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação.
Elas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e
assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico.
Só
que a globalização não é apenas a existência desse novo sistema de
técnicas. Ela é também o resultado dos processos políticos que
conhecemos. Com freqüência ouvimos a pergunta: "mas não tem alguma coisa
de bom na globalização?" ou "será que é tudo ruim?". A discussão não é
essa. A discussão é: há um conjunto, um sistema de técnicas baseado na
ciência, e há uma forma de utilizar esse sistema presidida por essa
mula-sem-cabeça chamada mercado global. Um mercado global utilizando
esse sistema de técnicas avançadas, repito, presididas pelas técnicas da
informação, resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser
diferente se seu uso político fosse outro. E quando digo uso político,
digo uso econômico e cultural, porque neste fim de século tudo se tornou
político; a economia é feita a partir da política, a cultura é base
para a política e resulta da política. Esse é o debate central, o único
que nos permite ter a esperança de utilizar o sistema técnico
contemporâneo a partir de outro paradigma.
O senhor tem falado em globalitarismo. Poderia nos explicar esse conceito?
Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político.
Esse
globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás
de tudo. E, o que é mais grave, atrás da própria produção e difusão das
idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de alguma maneira, aos
parâmetros estabelecidos. Se estes não são respeitados, os
transgressores são marginalizados, considerados residuais,
desnecessários ou não-relevantes. É o chamado pensamento único. Algumas
vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas pessoas têm permissão
para falar o que quiserem, para legitimar o discurso da democracia. Só
que a estrutura do processo de produção das idéias se opõe e hostiliza
essa produção de idéias autônoma e, por conseguinte, de alternativas.
É
uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em
idéias que aparecem como centrais à própria idéia da democracia –
liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente
para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do que
são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que,
associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo.
Essa
tirania da informação se opõe, portanto, à produção de um conhecimento
que poderia gerar uma alternativa distinta do mercado à organização
desse meio técnico-político?
Creio que sim. Na medida em que o mundo se globaliza, eu apenas posso entendê-lo como um todo. E cada coisa a partir do mundo. Se me retiram a possibilidade de compreender o mundo como ele é, se me bombardeiam todos os dias com informações que não são corretas, estão me tirando a possibilidade de entender não só o mundo como a mim mesmo.
Isso
é terrível, porque mata a possibilidade de desenvolvimento de
alternativas. Esse mundo globalizado produz uma racionalidade
determinante, mas que vai, pouco a pouco, deixando de ser dominante. É
uma racionalidade que comanda os grandes negócios, que são cada vez
menos numerosos mas cada vez mais abrangentes. Esses grandes negócios
são de interesse direto de um número cada vez menor de pessoas, embora a
maior parte da humanidade seja concernida por eles. Mas não pode se
interessar por eles já que, embora sofra suas conseqüências, não tem
condições de interferir.
Mas
pouco a pouco essa realidade é desvendada pelas pessoas e pelos países
mais pobres. Essa é uma contradição maior. Nós abandonamos as teorias de
desenvolvimento, o terceiro-mundismo, que era a nossa bandeira dos anos
50 e 60. A noção política de Terceiro Mundo foi produzida em grande
medida graças à existência da União Soviética; se ela não existisse, não
haveria essa idéia política.
Todavia,
graças à globalização está surgindo uma coisa muito mais forte: hoje é a
história da maioria da humanidade que conduz à consciência da
existência dessa tercermundização (que de alguma forma inclui também uma
parte da população dos países ricos). Há uma formidável contradição em
busca dos seus intérpretes, em busca de um discurso mais planetário e
também nacional e local. Esse discurso é dificultado por esse pensamento
único, mas ele pode se fazer.
Há
algo de extraordinário nesse momento da história, que é essa produção
limitada da racionalidade capitalista extrema e uma produção ilimitada
do que seria a "irracionalidade". A racionalidade é resultado de um
controle férreo, mas esse controle joga fora do trabalho que admite
controle um grande número de pessoas. Se o trabalho é o lugar da
descoberta da situação de cada um, o trabalho no fim do século revela
uma possibilidade de fugir ao controle.
A
exclusão e as formas de trabalho relativas à exclusão, que chamo de
"circuito inferior" – num livro que nunca conseguiu ter voga no Brasil,
mas que é muito usado na África e na Ásia, O espaço dividido –, é
exatamente uma discussão dessa contradição dentro do sistema
capitalista, entre uma visão do trabalho por cima e uma visão do
trabalho por baixo. Essa obra tem vinte anos, mas já indicava essa
tendência.
O
trabalho que é feito pelos pobres, pelos "marginalizados", é portador
da liberdade. Diferente do nosso trabalho, que é portador de uma
necessidade de enquadramento de cima para baixo, do qual vem nosso
sucesso. Esta produção limitada de racionalidade é a mesma produção de
menor número de empregos e de atividades ligadas a essa racionalidade.
Enquanto que eles chamam de "irracionalidade" outras formas de
racionalidade, que criam outras formas de trabalho, essas sim portadoras
do novo.
Existe,
nesse cenário, possibilidade de desenvolvimento nacional concebido como
um processo que integraria nações, como ocorria no momento em que
existiam os projetos terceiro-mundistas?
Os ideais universalistas nunca tiveram uma oportunidade tão grande de se afirmar. A construção desse mundo novo, dessa outra globalização se dará por baixo, a partir de cada país e em cada país, e não de cima para baixo.
No
caso do Brasil em particular não há saída para a Nação fora de um
modelo que possa abarcar a maior parte da população. A noção de
desenvolvimento com a qual se trabalha hoje é puramente ideológica, não
tem fundamento na busca do bem-estar. Ela não nos diz como vai ser esse
bem-estar, não nos diz quanto tempo vamos esperar por isso, não nos
indica quais são os vetores que vão ser postos em ação para chegarmos a
isso. Acenam de maneira vaga com a retomada do emprego e do crescimento,
mas não dizem muito mais. E toda essa formidável produção que existe
hoje no Brasil e que impede que o país se torne um vulcão ainda mais
explosivo do que já é, tudo isso não é contabilizado como economia. A
economia é aquilo que se refere a uma contabilidade imaginosa,
imaginária, fruto da ideologia da globalização. Esse é o debate que
estou reclamando e para o qual alguns economistas poderiam trazer a sua
contribuição.
O
que seria a mudança civilizacional necessária para organizar uma outra
lógica econômica capaz de abarcar a maioria da população?
Seria deslocar a centralidade do dinheiro em estado puro para o homem. Todo esse debate, quando não há crise, gira em torno do dinheiro em estado puro, o homem sendo um elemento residual. E o homem sendo residual, o território, o Estado-nação e a idéia de solidariedade social também se tornam residuais. O que é privilegiado são as relações pontuais entre grandes atores, cuja lógica escapa a um raciocínio que tenha a menor base filosófica, porque falta sentido ao que fazem.
O
regresso à idéia do homem como o porquê de trabalharmos está junto e
por conseguinte busca estabelecer formas de convivência. É o que está
fazendo falta na formulação dos políticos e de uma grande parcela dos
intelectuais. Isso empobrece o debate e impede que avancemos; buscamos
soluções dentro de um círculo fechado, dentro dessa racionalidade
viciada.
O
ponto de partida para se pensar alternativas seria então a prática, a
vida, a existência de todos, uma política existencialista. Todos
existindo e, por conseguinte, exigentes de respostas às suas
necessidades existenciais básicas, redefinidas com a globalização.
Voltamos, assim, à idéia do começo: os sistemas técnicos do presente são
utilizados para reduzir o escopo da vida humana. Nunca houve na
história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a felicidade do
homem. Descobrimos os sistemas técnicos mais dóceis e doces que já
existiram e os empregamos no sentido da perversidade! Nunca a
inteligência foi tão necessária para fazer funcionar a técnica como
hoje, nunca a inventividade foi capaz de se multiplicar, explorar
milhões de possibilidades e todavia só as utilizamos de uma única forma.
Porque não há flexibilidade. Está tudo aí, do ponto de vista da
materialidade, para que a gente promova um outro mundo. Está faltando o
dado político. Mas, de alguma forma, também ele já está surgindo, de
baixo para cima. Temos 6 bilhões de pessoas no mundo, mas na realidade
4,5 bilhões não são concernidas por essa globalização.
Num
país como o Brasil, a população pobre não tem como participar da
globalização e é a primeira a recusá-la. Primeiro porque não tem os
meios materiais para isso e segundo pela recusa do trabalho.O trabalho é
fundamento da originalidade das soluções. Nós intelectuais temos essa
possibilidade, mas as outras pessoas do nosso nível social não têm. Nós,
intelectuais, temos mas não queremos. Essa é a coisa nova que está
surgindo e da qual os partidos até agora não quiseram tirar partido.
Porque recusam o seu papel pedagógico e supervalorizam as preocupações
eleitorais. Essa é uma das dificuldades de não se reconhecer a presença
de uma outra lógica, contra-hegemônica, se manifestando no dia-a-dia. As
pessoas descobrem que são conduzidas e recusam a globalização,
pobremente, mas recusam.
Em sua obra, o senhor destaca bastante o papel das idéias nesse fim de século...
Em toda a história do homem havia as idéias. Mas hoje as técnicas são todas precedidas por idéias, enquanto antes não era assim, a ciência não era o que levava às técnicas. A tecnociência representa essa indispensabilidade da ciência num momento em que a própria natureza é um pouco dispensada. A história que estamos fazendo é sempre precedida por uma posição de idéias. As idéias têm um papel-motor e o discurso também. Daí a força da retórica. Creio que não acreditamos bastante na força das idéias.
No
caso do Brasil isso é muito claro porque as coisas foram se dando de
tal maneira que o intelectual não é apreciado. Vivemos num país que
ainda não elaborou seu código de aceitação, de apreço do intelectual.
Porque ele é queimado rapidamente e "se dá" àquele deputado, senador ou
ministro, terminando por se tornar incapaz de exercer seu papel de
crítica, que é o papel central do intelectual. De crítica e de apego aos
que estão por baixo.
Pode-se dizer que hoje abandonamos a idéia de natureza, com o ser humano cada vez mais vivendo no meio por ele produzido?
É
curioso que neste fim de século, com a globalização, a natureza tenha
ganho tantos holofotes, mas não é gratuito. Quando temos uma
globalização totalitária, utilizando um arsenal de técnicas extremamente
poderoso, a natureza é atacada com muita dureza. Ao mesmo tempo, a
sociedade que era contida pela natureza nos primeiros milênios, hoje é
quem contém a natureza. O que quero dizer é que cada pedaço de natureza
vale pelo seu valor social, se tornou global.
A
Amazônia é muito diferente nos anos 20, 60 ou 90 em função do uso
efetivo, potencial, ou imaginado, desse pedaço de natureza. Então, ao
mesmo tempo em que é verdade que os agravos à natureza se amplificaram, é
também verdade que não posso interpretá-los fora do quadro da
universalidade hoje dado pela globalização.
Esse
é o problema central que eu gostaria que perturbasse um pouco o
trabalho dos ecologistas, que nem sempre estão abertos a essa discussão.
Eles se tornam muito naturalistas, frente a um dado cujo entendimento é
apenas possível a partir da história. Numa cidade como São Paulo, o
trabalho é a inteligência da inteligência. Porque o que está aí é tudo
inteligência e nós não trabalhamos sobre a natureza. Mas o marxismo
renitente, não renovado, insiste ainda na idéia de que a história é
feita da relação do homem com a natureza, quando na verdade ela é toda
mediada pelas idéias e pelo meio técnico-científico.
Mas o senhor destaca que as alternativas estão sendo construídas a todo momento à nossa frente!
E
não as vemos em função do nosso aparelho epistemológico. Todos somos de
tal maneira subordinados à episteme norte-ocidental, que temos enorme
dificuldade para pensar diferente. Esse é um problema para as ciências
sociais latino-americanas e brasileiras. São por demais escravizadas
pelo paradigma do Norte e pela política que daí decorre.
Nunca
pensamos o mundo a partir da América Latina. Quem entre nós,
intelectuais, pensou o mundo? A gente pensa Europa, Estados Unidos e
exclui a África e a Ásia. A própria construção territorial da realidade
nos escapa com muita freqüência na nossa elaboração intelectual. Essa é a
realidade que cobra de nós uma outra epistemologia.
Sua
obra enfatiza que o território é o local onde os seres humanos podem
ter uma vivência integrada. Mas hoje a globalização o fragmenta e impede
essa vivência. Qual a importância da idéia de território para se
construir uma alternativa a esse processo de fragmentação?
O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque acolhem os vetores da globalização, que passam por eles para impor essa nova ordem – que eu espero seja passageira. Mas, de outro lado, produz-se a partir de cada lugar a contra-ordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados, isto é, de pessoas que não têm como se subordinar permanentemente à racionalidade hegemônica e que estão juntas, como parte de uma vizinhança. Em alguns filósofos, sobretudo em Sartre, essa categoria de vizinhança surge autorizando manifestações da emoção que adoçam o rigor do pragmatismo na busca da sobrevivência.
Temos,
na base da sociedade, um pragmatismo mesclado com a emoção a partir dos
lugares e das pessoas juntos. Esse é hoje o mecanismo de insurreição em
relação à globalização, essa descoberta de que somos outra coisa e
podemos continuar sendo outra, ainda que mudando todos os dias. E com
esse número de pessoas aumentando em um espaço reduzido e fazendo todo
dia a descoberta da sua incompatibilidade com o que está aí. Elas têm
dificuldade de exprimir essa inconformidade, em função do peso do
discurso que todos os dias atravessa a vida de todo mundo.
O
subtítulo de A natureza do espaço faz referência a essa distinção. É
opondo técnica e tempo, que estão juntos, e razão e emoção, que se
opõem, mas também estão juntos. Porque essa razão emotiva, a
inteligência emocional de que falam os livros que compramos nos
aeroportos, é baseada na vida, na existência.
O
senhor procura articular em sua obra um esforço universalista, muito
bem concretizado, dialogando muito com questões irredutíveis ao
universal...
Essa
irredutibilidade hoje é dada, entre outras coisas, pelo corpo e pelo
território, os dois grandes irredutíveis do mundo contemporâneo. O corpo
é uma herança e, ao mesmo tempo, o depositário da esperança, do futuro,
ainda que soframos a pressão do presente. E o território também, porque
ele realiza anastomoses, uma palavra da bioenergia, que significa que
ele realiza as combinações próprias dele, que fazem com que ele mude em
função do global e a despeito do global.
Isso afeta de forma diferente o campo e a cidade?
É
outra vez a esquizofrenia do território. A globalização torna o campo
muito vulnerável. O campo moderno é obediente, a cidade, não. Esta
resiste, inclusive porque, voltando a Marx, o capital físico, fixo, não
se moderniza rapidamente, enquanto no campo sim. É por isso que a cidade
atrai tanta gente pobre, produz tanta gente pobre e se fortalece do
ponto de vista da produção do futuro, da produção política. Porque isso
leva a uma produção econômica, a uma produção cultural variável e a uma
produção política na cidade. A cidade é um ente econômico cuja
existência é menos dependente, seja da globalização, seja do Estado
central. É nisso que ela faz renascer a Nação.
Celso
Furtado diz que a globalização representa uma interrupção do processo
de construção nacional. O senhor destaca o processo de fragmentação do
território. São duas facetas do mesmo processo?
Creio que sim. Eu parto do território, o Celso, apesar do seu talento multiforme, parte da economia e da filosofia, porque não é um economista vulgar. Então, são os dois complementares. Há uma fragmentação à medida em que o Estado torna-se incapaz de administrar em conjunto os pedaços do território. Essa administração em conjunto é impossível ao Estado, mas também é impossível aos vetores globais. Cria-se, então, uma desordem no território. A cidade é uma desordem também. Mas ela tem a sua ordem, econômica, cultural, política, olhando de múltiplas formas o futuro.
O
campo olha muito mais para o presente. Tenho uma visão otimista, porque
creio que a Nação – despedaçada sobre o território como um todo – se
refugia nas grandes cidades. E acaba por impor ao país a sua cultura e a
política da sua cultura. É uma construção da vontade de ser cidadão e
que deverá se materializar em participação política, em uma retomada do
processo de construção nacional. Essas são as forças centrípetas.
O
processo da globalização, tal como se dá hoje, é centrífugo. Ele é
produtor de uma fragmentação crescente em todos os níveis: os jovens
contra os velhos, os funcionários públicos contra os privados, uma
região contra outra etc. Temos uma multiplicação de fragmentações que se
acumulam. Ninguém fala mais do mercado nacional; quando os industriais
se reúnem hoje com os operários, eles falam da produção, não falam do
mercado nacional. A palavra foi banida do vocabulário.
Teria deixado de existir um espaço de integração nacional que esse mercado propiciava?
Essa ideologia do mercado nacional, que na minha geração era apontada como a grande saída para melhorar a vida de todo mundo, ficou em segundo lugar. Então, os discursos pragmáticos, ainda que aparentemente futuristas, recusam a palavra. Já estamos atingindo os limites do discurso ideológico da globalização e do dinheiro. A imprensa começa a dar estatísticas que não surgiram durante quatro anos. As pessoas começam a não mais considerar o real como um dado isolado e a colocá-lo num sistema. E quando colocamos as coisas num sistema, o nível de consciência aumenta. A primeira reação da população pobre, como qualquer outra, é a do consumo também. Está brigando para ser cidadã, mas primeiro quer consumir. Isto é normal. Depois é que se descobre que não basta consumir, ou que para consumir de forma permanente, progressiva e digna, é necessário ser cidadão. Dizem com desdém: "o pobre quer televisão" – e por que não? Na verdade, um mínimo de consumo é condição indispensável para ser cidadão. Agora, isso deve conduzir a outra organização política do Estado, a outra arquitetura política. O que estamos vendo é uma reforma da Constituição de cima para baixo, para responder aos imperativos do ajuste neoliberal. Mas haverá outra etapa, que é o encontro desses vetores de cima para baixo com os vetores de baixo para cima.
O senhor destacou inclusive a necessidade de outra forma de organização da Federação...
Acho que isso vai acontecer. Meu medo é que não estejamos preparados para o debate, como não estivemos em 1988. Não tínhamos, então, o fundamento "acadêmico" para fornecer aos políticos. Os políticos não são obrigados a ter idéias coerentes, mas nós – intelectuais – somos, e não estávamos em condições de lhes oferecer. O meu medo é que continuemos sem ter esse material para entregar aos sindicatos, às igrejas, aos partidos, aos grêmios etc. Essa nova forma de organização da Federação partiria dos de baixo, dos excluídos pelo processo da globalização. Quem se comunica pela Internet não são os de baixo. Essa comunicação distante não é própria deles. Os lugares são feitos sobretudo pelos de baixo, são eles que se comunicam nos lugares, são eles que estão reclamando alimentação correta, saúde, educação para os filhos, lazer, informação e consumo político – que é uma reclamação também não muito clara, mas que vai aparecer daqui a pouco, a partir de uma base local. Uma nova distribuição de atribuições, de recursos, a consideração dos novos direitos que a globalização e suas técnicas levantam, uma nova idéia de democracia, tudo tem que ser retrabalhado a partir de lugares.
A
política local hoje não é obrigatoriamente caipira. Antes da
globalização, nas fases em que os lugares não se comunicavam, em que os
lugares eram locais mas não globais como hoje, as visões eram caipiras,
ou tendiam a ser provincianas. Hoje não, podemos ter todas as visões,
mundial, nacional, local, a partir do lugar. São condições que o mundo
da globalização oferece para essa reforma política e que não eram
possíveis antes. São fenômenos como essa multiplicação de telefones,
rádios, imprensa local, as dezenas de revistas como a sua, que encontram
clientela, seguidores.
Essa nova arquitetura política teria como referência o terreno local das grandes metrópoles?
Em
parte. Mas as cidades médias são porta-vozes igualmente importantes
dessa esquizofrenia. Porque elas recebem de fora as instruções para
acorrentar os que trabalham em suas regiões e ao mesmo tempo elas
transmitem demandas, inclusive aquelas que vêm do fato de as pessoas não
entenderem mais os processos onde estão inseridas. O produtor de frango
faz o frango como a Sadia manda fazer, mas não entende porque fica
pobre, porque não cresce. Daí essa demanda de compreensão que a cidade
intermediária de alguma maneira fornece, através de veículos de imprensa
transversais como o seu, como Caros Amigos ou Carta Capital, como de
certo modo a República. A materialidade que o mundo da globalização está
recriando permite um uso diferente daquele que era o da base material
da industrialização.
A
informação e as indústrias da informação exigem mais inteligência,
permitem mais flexibilidade e com pouco recurso você comunica, pode ter
uma Internet democratizada. É por isso que sou otimista em relação ao
potencial emancipador dos meios técnicos utilizados a partir da política
de baixo. A política dos de baixo não é a do ministério reunido ou a do
comitê central dos partidos. São as pessoas vivendo, existindo e
falando umas com as outras, pessoas que têm necessidade da codificação e
da síntese política em novas instituições.
Nós
estamos fazendo aqui uma síntese política que não é comprometida com
nenhum partido. São dois momentos políticos: um do intelectual público,
outro dos partidos. O intelectual público é cada vez menos o intelectual
cosmopolita, internacionalizado. Este está ameaçado de apodrecimento,
porque é sempre obrigado a ceder, a não se aprofundar, a aceitar uma
linguagem mais racional, enfim, a ser traduzido. Enquanto o intelectual
público tem um discurso forte, um discurso político. E aí vêm os
partidos, que correspondem a outro momento, o momento da conversa
orientada, da discussão medida, do acordo, do encontro, da votação.
Nosso trabalho é sermos radicais. E o político tem como seu trabalho
central negociar. O problema é que, por enquanto, não há como os
intelectuais e os partidos trabalharem no mesmo terreno.
Uma
síntese política tem que ocorrer também no Estado, porque em última
instância novas relações têm que se materializar em organização
político-jurídica, no sentido estatal. E isso implica em cristalização
de correlação de forças, mudança de instituições. Uma mudança profunda.
Uma coisa que me choca é que percebo, pelos contatos obrigatórios com as
empresas, que elas legislam mais fortemente o meu cotidiano do que o
Estado.
A
noção de democracia, de cidadania, tudo isto tem que ser revisto. Essa
discussão de mudança do Estado, sem discutir como o poder se exerce, é
vazia. Nos venderam a idéia de que as empresas são a economia e o Estado
é o poder. Não é nada disso, as firmas são o poder. Quando a Sadia
estabelece uma rede de fornecedores, ela está mudando a economia dessa
parte do território, estabelecendo novas relações societais. Ela está
imprimindo uma direção aos orçamentos públicos.
Não
estamos discutindo no Brasil essas questões, ou em todo caso, não temos
trabalhado de maneira sistemática para oferecer os elementos que podem
servir de base ao discurso político dos partidos.
Meu
grupo de pesquisa está trabalhando, a partir deste ano, sobre o que
chamamos de "empresas territoriais", sobre a relação das empresas com o
território, estudando como elas acabam governando o território, por
sobre os municípios, estados e até mesmo a Federação. Se chegarmos a
algumas idéias, não digo nós, mas cem ou duzentos grupos como os nossos,
ofereceremos uma radiografia do país, uma contribuição a essa produção
de um novo tipo de Estado, com outra forma de organização da economia e
outro recorte das atribuições do Estado e das empresas em função do
homem e não das próprias empresas. O problema hoje é que tudo é feito
para que algumas empresas sejam vigorosas e o homem torne-se residual.
Mas se partirmos do território, é impossível excluir o homem, porque o
território não exclui ninguém. Estão o rico, o pobre, o negro, o branco,
o culto, o analfabeto, a grande empresa, o ambulante, todo mundo junto.
Este existencialismo territorial pode oferecer análises úteis para que o
especialista da coisa política reelabore.
Essa
é a nova geografia que estamos tentando instalar, que é mais complexa e
mais humilde também, porque parte das coisas simples. Mas creio que
pode ajudar.
*José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de TD.
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