GILBERTO - URBANO - GIL (1)
[fonte - jornal Folha de São Paulo. São Paulo (SP - Brasil), 25 de junho de 2012, pag A.12]
Entrevista da 2ª Gilberto Gil
Cada vez me desvencilho mais de minha própria história
O músico Baiano, ex-ministro da cultura, completa 70 anos amanhã e fala de religião, drogas e política
Fotos Marlene Bergamo | |||||||
Gilberto Gil, em seu camarim, na última quinta-feira,
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MORRIS KACHANI
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Gilberto Gil, artista seminal da MPB e ex-ministro da Cultura (2003-2008), completa 70 anos amanhã.
Ele recebeu a reportagem da Folha em seu camarim, na última
quinta, antes de se apresentar, ao lado de Andy Summers (ex-guitarrista
do The Police), Fernanda Takai (Pato Fu) e Jorge Mautner, em evento
fechado da Rio+20.
Em mais de uma hora de conversa, Gil falou de suas convicções
políticas, criticando os tucanos e cutucando a atual ministra da
Cultura, Ana de Hollanda. Pirataria, cultura digital, MPB, drogas e
religião também entraram no cardápio da conversa.
No momento, o artista baiano se prepara para uma turnê europeia de
seu novo show, "Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo", com
arranjos do violoncelista Jacques Morelenbaum.
Uma das primeiras apresentações, ocorrida em maio no Theatro
Municipal do Rio, contou com participação da Orquestra Petrobras
Sinfônica e foi transformada em DVD, a ser lançado em novembro. Mas
poderá ser vista amanhã, às 19h, no canal de Gil no YouTube
(youtube.com/gilbertogil), em homenagem a seu aniversário.
Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - Como se sente aos 70 anos?
Gilberto Gil - Bem, nessa idade ninguém vai mudar radicalmente o modo de ver as coisas, que é uma decantação de tudo que foi vivido. Cada vez me desvencilho mais de minha própria história. Ela passa a valer e ter sentido mais para a sociedade e menos para mim mesmo.
É religioso?
Sim, nesse sentido de que Deus não é um, Deus é todos. Não professo
nenhuma confissão religiosa, mas rezo todos os dias. Acredito no poder
da oração. Mas as instituições religiosas, e incluo todas as ordens,
estão preocupadas com política e poder. Já os evangélicos cresceram
enormemente como utilitarismo sistêmico produtivista, industrialista.
Hoje já é uma religião para lá da religião.
Politicamente, como você se posiciona?
Já votei no PMDB, no PT. Votei duas vezes em FHC e depois em Lula, duas vezes.
O justo meio está na igual possibilidade dos extremos. Ou seja: o centro flutua, não é uma coisa fixa, estática.
Como compara Dilma a Lula?
Primeiro, ela é mulher, o que muda muito o modo de olhar para várias questões. Os homens, por serem a classe dominante historicamente com relação às mulheres, são autocomplacentes, se permitem coisas. Eu acho que as mulheres são mais cuidadosas nesse sentido.
Que achou da foto do Maluf com Lula?
Isso me lembrou a foto dele [Maluf] com FHC, já faz tanto tempo
[risos]. E é pior para o Lula, porque ele sempre foi mais identificado
com a pureza do que FHC. O PT sempre foi um partido idealmente mais
angelical que o PSDB. O PSDB era: "Algumas meninas já tinham alguns
anos de janela". No PT, não: "As meninas estão na janela agora".
Já usou muita droga?
Maconha sim, até os 50 anos de idade, quando decidi que devia me afastar do hábito. Outras drogas, como LSD e mescalina também, na década de 1970. Gostava da maconha principalmente por causa da música. Certas sinapses desencadeavam uma liberdade auditiva. Corpo e alma percebiam essa inteligência. Costumo até brincar que tanto a bossa nova como o reggae, que têm doçura e suavidade, são gêneros que foram beneficiados pela maconha [risos].
Como está sua voz?
Melhorou. Em duas ocasiões, com diferença de dez anos, na mesma corda vocal, tive pólipos -conhecidos popularmente como calos. Nos dois casos, fiz cirurgia. De lá para cá, intensifiquei os cuidados. Estéticos inclusive. Parei de cantar com tonalidades altas e cheguei a um patamar mais compatível com a idade das cordas vocais.
Há quem diga que a MPB que se faz hoje é muito pior que antigamente.
Mudou muito. Chico [Buarque] chega a dizer que teme pelo desaparecimento da canção. Porque percebe que a canção -da forma como existiu no nosso tempo, como forma de expressão quase sagrada, com aquela aura de oração religiosa, para a qual nos empenhávamos com todo entusiasmo- está deixando de existir. A canção passou a se submeter a processos de formatação de manufatura muito específicos e, de certa forma, padronizados. De todo modo, esses processos estão sujeitos a súbitas explosões de luminosidade.
Como enxerga a pirataria?
Foi um conceito sólido enquanto se relacionava ao mundo analógico, da escassez, da distinção entre o original e a cópia. No momento em que a cultura digital borra essas fronteiras, borra também o que é e não é pirataria. Com as lupas bem ajustadas você vai encontrar pirataria aqui e acolá, mas, no olhar aberto horizontal sobre os territórios de atividade da humanidade hoje em dia, acabou [risos].
E sua obra?
No meu site você tem acesso a todos os meus discos, mas não pode baixá-los. Já quis abrir geral minha obra fonográfica, para remixes e reutilizações de outros autores com fins artísticos. Não pude porque minha gravadora não permitiu e ela detém 90% de meus fonogramas. Se eu tivesse autonomia, abriria para o mundo artístico. E para uso comercial, dependendo da finalidade, que é o que já faço com meus
"copyrights". Esses eu detenho e faço uma gestão com essa proposta.
Juca Ferreira, seu sucessor, disse que houve descontinuidade na gestão da Cultura, com Ana de Hollanda.
Depende da área. O licenciamento por "creative commons" que implementamos foi revisto. Ao mesmo tempo que deixaram de usar as licenças "creative", não criaram uma licença pública própria, como Austrália e Inglaterra fizeram. OK, você não ter o "creative" por se tratar de uma "marca" americana; mas então que se crie alguma licença pública para atender a esse tipo de interesse.
Os pontos de cultura, que eram uma de suas principais bandeiras, desidrataram.
É o que ouço em geral por aí. De alguma maneira houve um certo desânimo gerencial, administrativo, institucional, por parte do ministério. Mas tomo o cuidado de não monitorar a gestão atual: ela precisa ter autonomia para ser diferente também.
Que balanço você faz de sua gestão?
No Brasil predominava uma visão muito eurocentrista e "civilizada" sobre a produção cultural. As manifestações propriamente populares eram vistas como uma coisa chula da periferia, e o combate que o funk carioca sofre é um exemplo disso. Em minha gestão procuramos dar atenção ao protagonismo popular e à autogestão. Esse viés era uma coisa do governo Lula e que os críticos gostam de dizer que era populista. Já eu prefiro responder que esse governo era popular.
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