quinta-feira, 16 de junho de 2011
MÊS MILTON SANTOS (5) - O TEMPO NAS CIDADES
MÊS MILTON SANTOS (5)
DEZ ANOS SEM MILTON SANTOS
O Tempo Nas Cidades
Milton Santos
O
texto que segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude
realizar (espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de
pós-graduação sobre o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo,
parto da idéia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas,
considerando a técnica como a possibilidade de realização da História,
de mudança da História, de visibilidade dessas rupturas.
A
Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como
uma das geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do
contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma
maneira, a história de cotidianos sucessivos. O entrosamento entre
técnica e História permite o entendimento do que se passou, do que se
passa e eventualmente do vai se passar, quando as técnicas se tornam um
conjunto unificado e único, movidas por um motor também único, o que
permite uma visibilidade do futuro.
O
tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou
filósofo, repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de
partida, como ajuda na minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que
li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo
cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da
natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico,
objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há cesuras, em
vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo,
interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo
do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos
se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social.
Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse
tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de
maneira uniforme, que temos de tratar. E é por aí que se vê que esses
diversos tipos de tempo convergem e divergem. Convergem na experiência
humana e divergem na análise.
Do
tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico,
vai toda uma evolução que é assinalável ao longo da História. O relógio
que é descoberto num determinado momento da História, é redescoberto
neste século com o taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é
medida do relógio, se não o enchermos dessa substância social. O tempo
individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico,
mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é
suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo
sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que
nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é,
as diferenças de significação.
Nesse
momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano,
Sérgio Bagú, que distingue entre o tempo como seqüência - o transcurso -
o tempo como raio de operações - o espaço - e o tempo como rapidez de
mudanças, como riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como
sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de
operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo,
ou que foi coetâneo de uma outra geração, e essas duas acepções do tempo
nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico como um todo, mas a
cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações,
que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, em cidades que
se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo
diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes
ideologias.
Na
cidade atual, essa idéia de periodização é ainda presente; é presente
nas cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas
nasce com características próprias, ligadas às necessidades e
possibilidades da época, e é presente no presente, à medida que o espaço
é formado pelo menos de dois elementos: a materialidade e as relações
sociais. A materialidade, que é uma adição do passado e do presente,
porque está presente diante de nós, mas nos traz o passado através das
formas: basta passear por uma cidade, qualquer que seja, e nos
defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram criados, que
foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que foram
presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente
do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente
que escapa de nossas mãos. Na realidade, a paisagem é toda ela passado,
porque o presente que escapa de nossas mãos, já é passado também. Então,
a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado
fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se
foram e que permanecem através das formas e objetos que são também
representativos de técnicas. É nesse sentido que eu falei que a técnica é
sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das
possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um
papel tão importante na preocupação de interpretação histórica do
espaço.
Ora,
essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem
reconstituir como aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de
tempos desiguais, que é a paisagem urbana, como ela chega até nós,
permitem-nos também passar dos tempos justapostos aos tempos
superpostos. Se considerarmos a história do espaço e do tempo ao longo
da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram
justapostos, isto é, em que cada sociedade que criava o seu tempo
através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações
sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava
também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são
superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual
há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar
plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma
verdadeira mundialização.
Esse
momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade
sincrônica, integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo,
sociedade essa que é, ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade
cronofágica, à qual o tempo cede, nós encontraremos a cidade, tal como
descrita por Baillard, no seu Cronópolis: dizia ele que, no seu
esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo.
Transportar a cada dia quinze milhões de empregados de escritório,
manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão, administrar
essa nossa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo! Esse
organismo não poderia subsistir senão sincronizando estritamente cada
passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve necessidade de
descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham
placas de cores diferentes, de acordo com o horário em que podiam
circular, e assim o sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina
de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa
determinada de tempo. Um sistema de cartas coloridas e uma série de
quadros publicados a cada dia, assim como programas de televisão,
permitiam a cada pessoa sua localização dentro daquela faixa de tempo.
Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria
muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos
do mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor, de estilo
gótico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a
pouco se constituindo, em torno de um relógio gigantesco. Os
programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a
totalidade da existência de cada um era impressa nos boletins expedidos a
cada mês pelo Ministério do Tempo.
Num
retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das
cidades em que vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha
relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade.
São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas imitava os grandes
centros para parecer também uma grande cidade. Nesse entretempo, os
relógios desapareceram de São Paulo, e reapareceram agora, quando São
Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna cronópolis como qualquer
outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as
dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito grande sobre
nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens, não
temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim
como as intituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente
a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo
contido no tempo, um tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.
Nesse
momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e
algumas pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O
espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira
extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o
espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos
diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com
temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo
harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a
cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada
instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e
de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço. Não
fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a
convivência de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e
firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas.
Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo, quer dizer, o
recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele
que aparece como espaço.
Essa
temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido,
aparece nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os
contextos, a sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein,
se confunde com o espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente
é possível através desse trabalho de empiria que nos é admissível,
concebendo a técnica como tempo, incluindo entre as técnicas, não apenas
as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vão
nos permitir a interpretação de contextos sucessivos. De tal maneira que
o espaço aparece como coordenador dessas diversas organizações do
tempo, o que permite, por consegüinte, nesse espaço tão diverso, essas
temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.
É
esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la,
estou trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver
se há viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand
Braudel, nosso mestre, que foi o fundador da escola de História e
Geografia da USP, as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu,
modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falássemos
de tempos rápidos e tempos lentos.
A
cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas,
instituições, que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se
segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira
que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na
realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses
atores, por essa gente, segundo os tempos, que são lentos ou rápidos.
Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições
hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos
homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde as
velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a
economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que
tem significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a
dos Bandeirantes e a Anhanguera, que são estradas que sobretudo
interessam aos agentes hegemônicos e às pessoas ricas que usam melhor,
do seu ponto de vista, essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade
vai-se muito depressa, criam-se condições materiais para que o tempo
gasto na viagem seja curto. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no
sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido.
Aqui,
a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres
vivem dentro da cidade sob tempos lentos. São temporalidades
concomitantes e convergentes que têm como base o fato de que os objetos
também têm uma temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos
homens. A partir do momento em que eu crio objetos, os deposito num
lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a
cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas
temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que
terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Não naquele sentido a que
Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser
obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma
maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu
modo de ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos
o vemos, mas, evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout
court. Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o
projeto de pesquisa.
Milton
Santos foi professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
falecido em 24 de junho de 2001.
Texto
extraído da transcrição da conferência do autor na mesa-redonda "O
tempo na Filosofia e na História", promovida pelo Grupo de Estudos sobre
o Tempo do Instituto de Estudos Avançados da USP em 29 de maio de 1989.
A transcrição completa foi publicada na Coleção Documentos, série
Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em fevereiro de 2001.
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