sábado, 24 de setembro de 2011

GRAHAM / BACELAR - ALIMENTANDO A CIDADE DA BAHIA


[Revista Afro-Ásia, Universidade Federal da Bahia/Centro de Estudos Afro Orientais, Saaalllvador (Bahia – Brasil), 42 (2010), 253-258 255]


ALIMENTANDO A CIDADE DA BAHIA

GRAHAM, Richard. Feeding the City: From Street Market to Liberal Reform in Salvador, Brazil, 1780-1860. Austin: University of Texas Press, 2010, 334 p.

Resenha por Jeferson Bacelar

Especialista na história brasileira do século XIX, Richard Graham oferece, no seu novo livro, um quadro abrangente sobre a alimentação de Salvador, cobrindo os vários aspectos do abastecimento e da distribuição dos produtos alimentícios. E, como fazem os bons historiadores da alimentação, compreende as múltiplas conexões da comida e do comer, o que conduz a desdobramentos complexos e instigantes.

O autor realizou um consistente trabalho de pesquisa em arquivos, além de se utilizar amplamente da atual historiografia baiana sobre o período. Vários historiadores já tinham abordado, com qualidade variável, aspectos concernentes ao abastecimento e à distribuição de alimentos em Salvador no século XIX, em especial Thales de Azevedo e Barickman, mas também João Reis, Luis Mott, Ellen Ribeiro e Cecília Soares, porém nenhum com os objetivos e a amplitude alcançada pela investigação de Richard Graham.

Inicialmente, abordando “a cidade em uma baía”, traça uma radiografia do espaço urbano de Salvador, sua demografia, sua estratificação social e racial. Uma cidade que não funcionaria sem os escravos africanos, os crioulos e os mestiços, estes últimos em bem menor número, mas importantes nas ocupações mais especializadas dos chamados ofícios mecânicos. Porém, seria limitador pensar numa sociedade tão somente de senhores e escravos, exploradores e explorados, face à complexidade de suas hierarquias e de suas relações sociais, como, aliás, já tinham apontado há algum tempo as pesquisas de Kátia Mattoso. E isso permitia que as pessoas, mesmo escravas, “atravessassem as fronteiras” sem ameaçar a legitimidade da estrutura social tão profundamente desigual e predominantemente escravista. Como o autor assevera, a flexibilidade foi o segredo de sua saúde e longevidade. E acontecia que, especialmente trabalhando no comércio de alimentos, escravos africanos ou crioulos, libertos e brancos pobres, quando empreendedores, podiam tornar-se relativamente prósperos e, pela mobilidade e pela autonomia auferida, abrir avenidas de ascensão e autoafirmação.

No comércio de alimentos, em alguns planos as divisões sociais eram vagas ou inexistentes, sendo a interdependência um elemento constante. Por outro lado, Graham demonstra a existência de uma perfeita interação do mundo secular com o religioso, envolvendo os negociantes, seja através das irmandades brancas e negras, seja através das religiões de origem africana.

O segundo capítulo é uma rica etnografia dos “vendedores de rua e os lojistas”. O autor constata, com novos dados, a predominância feminina na vendagem de rua, onde, numa amostra de 977 vendedores, 89% ou 866 eram mulheres. Entretanto, seus dados são confusos em relação à condição etnicorracial dos vendedores (p. 35), embora toda a sua leitura seja parasalientar a onipresença dos africanos e seus descendentes no mercado de rua. O que me surpreendeu foi o autor concluir que perto da metade dos vendedores (488) era de negros e mulatos, sendo 382 escravos. Isso indica então a presença de muitos brancos e, mais ainda, brancas, na vendagem de rua. Vale salientar que Graham trata de vendedores que existiam oficialmente, ou seja, tiravam licença na Câmara Municipal para negociar, além de referir- se aos meses de janeiro de 1789, 1807 e 1819. Já tratando de outro momento histórico, 1840, reitera a sua argumentação, usando dados de Maria Inês Oliveira, ao demonstrar que, na Paróquia de Santana, quase 4/5 das mulheres africanas eram vendedoras de provisões. Apresenta uma tipologia dos vendedores – ambulantes e quitandas – sua localização nos logradouros da urbe, alimentos que vendiam, forma de vida, e fala sobre a liberdade que possuíam em determinar a sua dieta e a preparação do alimento. E assim “nasceram” os nossos conhecidos acarajés, abarás, moquecas, a cozinha de azeite de dendê da Bahia. Muitas vendedoras de rua, negras e mulatas, viviam como os escravos e pobres livres, porém, com vários exemplos, o autor mostra que existiam as afortunadas, possuidoras de várias casas e escravos

Além dos vendedores de rua, o outro supridor de alimentos da cidade trabalhava nas lojas, fossem tendas, vendas, tavernas ou armazéns. Mas os termos eram intercambiáveis, pois armazéns podiam vender bebidas em copo, e tavernas, comidas. As lojas eram, segundo Graham, um microcosmo da cidade como entreposto comercial, apresentando produtos dos mais diversos lugares do Recôncavo e de outras regiões da Bahia e do Brasil, assim como da Europa, Ásia ou América do Norte. Seus proprietários ocupavam uma posição intermediária na sociedade, sendo, na sua maioria, homens portugueses. Os empregados, chamados caixeiros, parentes ou muito relacionados com os proprietários, viviam nas próprias lojas. Raros foram os escravos identificados como caixeiros.

Em seguida, Richard Graham evidencia a importância do parentesco, das famílias, dos amigos e dos vizinhos para os vendedores de rua e os lojistas. Contatos são estabelecidos nas lojas e nas ruas com as mais variadas pessoas da sociedade, de proprietários a escravos. Vínculos eram estabelecidos, como entre as vendedoras de rua e os barqueiros, mas nem todas as conexões eram amigáveis – apesar de serem da mesma classe e raça – como entre os soldados ou fiscais da câmara e os vendedores. O autor demonstra a diferença entre a elite mercantil e os pequenos comerciantes, sendo as suas relações pautadas pelo clientelismo social, valendo a máxima: “mais vale um amigo na praça, que dinheiro no bolso”.

Ao abordar o “povo do mar”, o autor demonstra que Salvador, por sua situação estratégica na Baía de Todos os Santos, dependia do transporte por água para quase todos os suprimentos, exceto a carne, que vinha por terra. Todos em Salvador comiam farinha, utilizada de várias formas, de pirão a beiju, sendo o principal produto da dieta dos soteropolitanos. Em 1780, a cidade já consumia 253 mil alqueires de farinha, chegando a 406 mil em 1856, sendo que 43% vinham de Nazaré e Jaguaripe. Em 1855, com variada tipologia, Salvador tinha 3.441 barcos, com uma tripulação de 8.553 pessoas. Existiam muitos negros e mulatos, e até escravos, como capitães. Mais: ainda em 1855, dois mil tripulantes – marinheiros e barqueiros – eram escravos, sendo muitos deles africanos. Eram livres quatro mil tripulantes, mas não brancos, ou seja, apenas um quarto dos homens do mar era de brancos. Tratava- se de um trabalho perigoso, que exigia cooperação e solidariedade, daí as formas de relacionamento muitas vezes superarem a condição racial e o status legal dos participantes.

Vejo nesse capítulo 4 um problema, na questão da temporalidade, que se repete em algumas partes do livro: em certos momentos, a abordagem centra-se nos finais do século XVIII, e logo em seguida passa diretamente para a segunda metade do XIX, como se nada relevante tivesse acontecido no meio desse longo período.

Tratando do “mercado de grãos”, no qual inclui, soberana, a farinha, o  autor traça um painel do seu funcionamento, mostrando a preocupação governamental em racionalizar as vendas para impedir a ação de monopolistas e atravessadores, que levavam ao aumento artificial dos preços. Assim, construiu-se, em 1785, um celeiro público na cidade baixa de Salvador. Com um administrador do governo, nomeado entre a elite mercantil, eram constantes as divergências dele com os comerciantes e os capitães dos barcos. Reitera Graham que as mulheres africanas eram ativas comerciantes, algumas, inclusive, compravam barcos para adquirir os produtos diretamente no Recôncavo. A rede do comércio de grãos, segundo Graham, envolvia um amplo número de pessoas: produtores, comerciantes, embarcadiços, carregadores, lojistas, vendedores de rua, e ia até os consumidores. Acho curioso, na medida em que trata de alimentação, o autor não se referir ao açúcar, subtraindo, assim, do leitor uma discussão da doçaria baiana e da bendita cachaça. Em seguida, Richard Graham avança para a compreensão do “mercado de carne”. Salvador consumia de 350 a 600 cabeças de gado por semana, na virada do XIX. Vinha do interior da província, mas era também enviado de locais mais distantes, como as Províncias do Piauí e de Goiás. A “feira do gado”, inicialmente montada em Capuame (atual Dias D’Ávila), com seu superintendente, um empregado público, para onde todo o gado deveria ser conduzido, por sua localização, já estava sendo substituída pelo povoado de Feira de Santana nas primeiras décadas do século XIX. Pelas dificuldades de chegada do gado por terra, cansado, magro e muitas vezes doente, progressivamente a rota marítima tornouse aceitável. Em 1830, 40% dele já chegavam a Salvador por meio de barcos, em lotes de trinta a cinqüenta cabeças. E, em 1833, designou-se apenas um cais, Água de Meninos, para o seu desembarque obrigatório e pastagem. Doce ilusão, pois, como tantos outros regulamentos, dominou a desobediência, com muita carne chegando a outros locais, e sendo vendida clandestinamente, sem o pagamento das taxas devidas.

Era constante, portanto, o problema do suprimento da cidade, daí as várias medidas governamentais para controlar os segmentos que lidavam com o gado: os negociantes, o matadouro e os açougues.

 Um rico material o autor nos oferece sobre os grupos e os indivíduos que participavam do “mercado da carne”: as formas específicas de fricção e hostilidade, de patronagem e clientelismo. Mostra Graham “curiosidades” da nossa história social, como os magarefes do matadouro público, realizando, em 1830, a primeira greve por melhores salários no Brasil. Acho também significativo que ressalte a importância dos negociantes de couro, uma vez que o produto atingia 22% do total das exportações através do porto de Salvador, em 1802; entretanto, não o relaciona com outro dos nossos “alimentos”, o fumo, ensacado em couro para ser exportado.

Nos capítulos 8 e 9, Richard Graham enfoca a guerra da Independência da Bahia, sob o prisma da alimentação. De acordo com Evans-Pritchard, os Nuer diziam que a fome e a guerra são más companheiras, o que o autor demonstra com perspicácia e novos dados. Inova, ao apresentar a trama e as estratégias dos litigantes em relação ao espaço e à comida, tanto no Recôncavo, como no cerco à cidade do Salvador. Como ele próprio diz, ambos os lados compreenderam uma verdade crucial: os exércitos marcham com seus estômagos. A vitória dos brasileiros não apagou o trágico resultado da guerra, com a desestruturação da produção na província, também no campo alimentar. Salvador era uma cidade basicamente comercial, ou seja, um lugar que vivia da produção feita alhures, o que fica muito explícito no caso da alimentação. Cidade, como afirmou Kátia Mattoso, da opulência e da escassez, que se verificava também no plano do comer, opulência para uns poucos e escassez para muitos, estes em geral negros e pobres. Foi uma constante, no decorrer do século XIX, a crise de abastecimento, muitas vezes acompanhada por motins populares que ameaçaram a ordem pública. Daí ser sempre um problema crucial para os governantes, que viviam em constante tensão e luta contra os monopolistas, tentando racionalizar a distribuição dos suprimentos para proteger o povo, impedindo que se rebelasse. Assim, diante das profundas desigualdades sociais, o incremento das perspectivas liberais, à Adam Smith, foi sempre de difícil implementação. Graham aponta que, até o fim do sistema colonial, nem os que advogavam o paternalismo ou o liberalismo econômico estavam livres da contaminação: as decisões dependiam muito mais das contingências do que da aderência ao dogma. Eu diria que o debate entre a liberdade individual e o liberalismo econômico, de um lado, e a perspectiva paternalista- hierárquica, de outro, se mantêm, com suas contradições e ambiguidades, até os dias de hoje. E, como no passado, consoante com as contingências e os interesses, um mesmo governo pode abraçar os dois lados.

No último capítulo, “O povo não vive de teorias”, ele prossegue a discussão, já enfocando a Bahia pós-Independência e o Segundo Reinado, culminando com o motim da “carne sem osso e farinha sem caroço”, episódio já magistralmente estudado por João Reis e Márcia Aguiar. Vejo os dois últimos capítulos como uma complementação à instigante perspectiva teórica do autor, sem a riqueza e a inovação documental do restante do livro, mas mantendo a qualidade e a coerência narrativas.

Um trabalho dentro da perspectiva materialista cultural da alimentação, uma escola com fortes raízes norteamericanas, daí o interesse em aspectos tão utilitários como o abastecimento e a distribuição. Mais: com uma proeminênciada comida sobre o comer. Comida que se junta à gente de carne e osso, na montagem da compreensão de uma sociedade escravista específica, onde, a par das suas hierarquias, planavam a flexibilidade, as múltiplas relações, as imprevistas ascensões, as possíveis erosões da classe e da raça. Comida que mostra gente rica que enriquece, e gente pobre que empobrece, mas também comida que apresenta a lógica do paternalismo e do clientelismo, nos seus variados desdobramentos ou, como Roberto Schwarz diz, “mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa”.1

Essa é uma obra de mestre, que enriquece a historiografia baiana sobre a alimentação, abrindo novos caminhos e demonstrando o quanto ainda pode ser feito, e de modo criativo, no campo da história social. Espero, por sua importância, que cedo venha a ser traduzida para o português.

Jefferson Bacelar
Universidade Federal da Bahia

1 Roberto Shwarcz, Ao vendedor as Batatas, São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000, p. 21.A

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