terça-feira, 20 de setembro de 2011

FCCV - QUANDO A PROTEÇÃO É FATOR DE INSEGURANÇA

FORUM COMUNITÁRIO

 DE COMBATE

À VIOLÊNCIA

Salvador - Bahia - Brasil

Leitura de fatos violentos

publicados na mídia

Ano 11, nº 33, 05/09/11 

QUANDO A PROTEÇÃO
É FATOR DE INSEGURANÇA

A insegurança sentida nos dias atuais tem gerado uma série de insólitas providências de proteção. Recentemente órgãos de mídia publicaram o caso da morte de um ladrão que agia em uma cidade do interior de Goiás e, por diversas vezes, adentrou à modesta residência de um idoso roubando-lhe pertences. A persistência do ato levou a que o morador lesado construísse uma armadilha para alvejar o costumeiro ladrão. Como imaginava o inventor da geringonça, o criminoso retornou, o equipamento foi acionado, o ladrão alvejado e morto. Na seqüência, o dono do armamento foi denunciado, preso e será julgado por homicídio.


Nos últimos dias, foi noticiada a história da médica que trabalha em Brasília e, diante das investidas dos ladrões contra a sua residência, decidiu colocar na parte superior das grades que cercam a sua casa inúmeras seringas com o aviso de que as mesmas estavam contaminadas pelo vírus da AIDS.

As duas histórias sintetizam uma disposição de defesa “feita com as próprias mãos” cuja base é a contra oferta de risco real. O princípio que sustenta as referidas providências é a proteção do que é próprio através de mecanismo letal que é concebido para ser acionado se um agressor penetrar nos domínios privados.  Em lugar do velho “Rex”, têm-se as infectadas agulhas de injeção afixadas sobre o muro ou o engenho mata-ladrão aguardando o seu alvo. 

A adoção destes supostos mecanismos de proteção costuma ser precedida de falhas no que tange à segurança oferecida, normalmente, aos cidadãos. Aos poucos os indivíduos vão incorporando formas pessoais de segurança, apelando, normalmente, ao mercado de serviços e equipamentos que contempla uma ampla variedade de ofertas que vão das grades aos serviços de monitoramento à distância. Os produtos disponibilizados por este filão têm consentimento legal para atuar, ou seja, a segurança é um setor explorado comercialmente e se vem sofisticando no mesmo ritmo em que o medo aumenta de modo descontrolado.   
 
A insegurança generalizada e a pouca efetividade no que tange às respostas de natureza pública tem funcionado como clima favorecedor das buscas por soluções privadas, proporcionando a expansão dos negócios neste setor. As soluções caseiras também são buscadas, incrementando-se a criatividade nesta área. É dentro deste clima que a geringonça mata-ladrão e as seringas infectadas no muro podem ser interpretadas.

A idéia do “salve-se quem puder” tem autorizado e até estimulado a tomada de providências de proteção em nível privado, tendendo a se aceitar todas as receitas concebidas para este fim.  Deste modo, em lugar do caco de vidro incrustado ao longo do velho muro, por que não adaptar aquela idéia aos medos atuais e contornar as grades pontiagudas com seringas infectadas? Por que dar um susto no ladrão com o cachorro brabo se é possível golpear o gatuno de modo definitivo por meio de um invento?

São situações que fazem ver o quanto a violência e a insegurança estão mobilizando aptidões individuais para a defesa própria a partir de uma modelo de proteção que concebe o indivíduo, sua família e seus bens como cápsulas independentes e hostis à coletividade. Cada qual em sua concha se preserva de tudo o que é estranho ao microambiente, cercado por garantias que tanto podem dar choques elétricos aos estranhos quanto podem contê-los através de outros protocolos de exclusão.

Os dois casos noticiados estão em dia quanto ao clima de insegurança, o que os singulariza, entretanto, é a superação da faixa da legalidade. Os métodos adotados incluem o resultado morte sem qualquer eufemismo.  A técnica do mata-ladrão tem o mesmo princípio da ratoeira, não é uma mera arapuca para aprisionar o estranho e dominá-lo, ao contrário, seu objetivo é letal. Quanto às seringas infectadas, funcionam como ameaças ao invasor. Mesmo não sendo uma sentença de morte, em nosso contexto cultural, o vírus da AIDS ainda tem como efeito o estigma que mina as possibilidades de vida social dos infectados. Nesse sentido, as seringas representam uma condenação alternativa à falta de punição pelos meios legais. 


Exemplos desta natureza dão indicação de que há riscos na aposta que tem sido feita nas soluções privadas para se responder aos desafios da insegurança pública. Convém retornar aos papéis institucionais e lhes consagrar a devida atenção, inclusive no que se refere a itens como dotação orçamentária, preparo profissional, aparato tecnológico, enfim. Afinal de contas, a segurança não pode ser tratada como dieta alimentar, definida à mesa de cada família, levando-se em conta hábitos, gostos e custos.

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