quinta-feira, 22 de setembro de 2011

FCCV - CRIME É PROFISSÃO?

 

FORUM COMUNITÁRIO

 DE COMBATE

À VIOLÊNCIA

Salvador - Bahia - Brasil

Leitura de fatos violentos

publicados na mídia

Ano 11, nº 35, 19/09/11 

CRIME É PROFISSÃO?


“Se ele ficasse na dele, tranqüilo, sem reagir, ele não ia ter tomado bala”. Essa é uma declaração dada por Irlan Santiago quando se encontrava na delegacia em São Paulo, onde foi indiciado por participação no assassinato de Felipe Ramos Paiva, estudante da faculdade de Economia e Administração da USP.  A cena relativa a essa fala foi objeto de notícia em vários jornais, inclusive na edição de 10 de junho de 2011 do Bom dia Brasil, da Rede Globo de Televisão. A referida notícia imprimiu um caráter pouco habitual visando a indignação quanto à postura do indiciado por latrocínio. A jornalista que noticiou o caso a partir de São Paulo comentou ao vivo a situação com os âncoras do Rio de Janeiro e todos concordaram que diante de tamanha aberração não tinham o que dizer. Antes dessa estupefação, entretanto, a repórter paulista chama a atenção de que pior que as palavras do criminoso foi a resposta dada por seu advogado, diante da pergunta de um jornalista sobre por que seu cliente não “entrega o comparsa”.


A surpreendente argumentação do advogado aprofundou o sentido de indignação: “uma regra de quem é do crime é nunca entregar parceiro. Todo bandido tem ética. Você é um cara experiente na área criminal, eu sei que está fazendo esta pergunta por fazer, que você sabe que em todas as profissões tem ética”. Essas palavras proferidas pelo advogado de Irlan Santiago superaram as formas habituais de se representar a defesa de um réu confesso e, assim, permitiram o espanto explícito no produto jornalístico. É como se o jornal desse início e incentivasse um efeito em coro: “Assim já é demais!”

O coro sugerido pode ocupar o lugar do grito diante de uma dor aguda a qual não permite a contenção ou a manutenção de um padrão de comportamento habitual. Porém, passado o momento de forte agonia, cabe uma reflexão amarga e dura. Os conteúdos presentes nas duas falas são graves porque foram expressos em palavras diante dos jornalistas ou porque eles, mesmo tresloucados, evidenciam posições e práticas correntes no mundo do crime?  O que machuca é o fato de as práticas serem convertidas em discursos dirigidos à sociedade, através da mídia? Ou, ainda, o desapontamento seria ocasionado pela circunstância na qual se espera que os dois falantes referidos ocupem papéis que evidenciem distâncias simbólicas em relação às normas sociais? Se eles ficassem mudos, por exemplo, incomodariam menos?

É conveniente lembrar que o mundo do crime precisa, em razão de suas próprias conveniências, construir e respeitar as suas regras – algumas delas têm valor máximo, a exemplo das sanções contra os delatores de outros criminosos. Estas normas são mais ou menos conhecidas, porém nunca são empregadas na retórica de defesa de um criminoso diante da opinião pública. Não é raro se falar em “leis do crime”, porém, em geral, estas falas são proferidas por indivíduos não envolvidos em práticas criminosas ou por defensores destes. São locuções que costumam ser feitas por peritos que visam explicar a estrutura do mundo do crime. Na circunstância agora referida é observada uma ruptura não no discurso em si, mas no encontro entre os teores dos textos e seus autores. Nesse sentido, os dois atores roubaram os papéis e, assim, transgrediram uma norma subjetivamente cultivada, pois aquelas falas, dentro do jogo da representação do crime, condizem com a posição de análise e de acusação, nunca com a defesa do acusado. É isto que conforma a falta de cabimento e origina o alerta.

 É constatado um tipo de desrespeito novo. O criminoso se defende e é defendido através de expedientes simbólicos que são retirados da minas da acusação ou da retórica da defesa empregada para justificar o uso da força letal. Caso lograsse êxito, o acusado ganharia pontos no que se refere a um elemento escasso em nosso contexto, isto é, a ética, e, além disto, poderia inverter a sua posição de responsável pela morte do estudante, culpando-o por ter imposto o fim trágico.

Vale aprofundar um pouco a análise sobre a manobra de transferência de culpa à vítima. Também nisto não há novidade, no que se refere à estratégia que visa a diminuição ou a anulação da responsabilidade do acusado. Uma das formas freqüentes é baseada na desqualificação da pessoa morta quando é sugerida a idéia de compatibilidade com aquele tipo de óbito. No caso do estudante da USP, não seria possível o emprego do script desqualificador, dada à própria condição de estudante de uma das mais importantes universidades do País, mas é compatível a aplicação de uma espécie de “teoria da reação dentro da dinâmica do assalto”, muito utilizada por autoridades para advertir os cidadãos sobre como atuar diante de assaltos.

E no que tange ao mal-estar sentido ao ouvir a palavra “profissão” associada a um latrocida, a questão também merece ser refletida para além da desaprovação. O mundo da criminalidade – especialmente o crime organizado – tem incorporado regras comparáveis àquelas das profissões. Existem carreiras criminosas, com suas etapas, graduações e saberes especializados em atividades típicas do mercado do crime e que comportam recompensas que são formas de pagamento estabelecidas neste mercado. Ao lado disso, há atividades laborais mais ou menos conhecidas que são relacionadas a contravenções, a exemplo dos cargos ligados ao funcionamento dos jogos de azar. 


É compreensível o desapontamento quando se escuta, de maneira explícita, a palavra “profissão” atribuída a um ladrão. Mas, muito mais que perturbar os nossos ouvidos, o sentido de gravidade precisa se instalar sobre o quanto aquelas expressões inesperadas já correspondem a práticas consolidadas, tanto assim que viram profissão, meio de vida, ética, sinônimo de existência social justificável e apresentável.

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