quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Marcelo Coelho - "Centenário sem Torresmo"

INSUSTENTÁVEL

("Os amantes" de René Magritte)

INSUSTENTÁVEL Blog da professora Thaís. Leituras, dicas e temas de redação. quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Centenário sem torresmo - belo texto sobre Adoniran Barbosa
Marcelo Coelho publicou, hoje, na Folha um belo texto sobre o inesquecível Adoniran.


A música era para se chamar "Bife à Milanesa", mas Adoniran Barbosa (1910-1982) pensou melhor, e conversou com seu parceiro. Sugeriu que, de "Bife à Milanesa", mudasse para "Torresmo à Milanesa".


"Por quê, Adoniran?", perguntou Carlinhos Vergueiro. "Porque não existe", respondeu o mestre. Ocorreu-lhe em seguida outro ajuste de pormenor.

A letra falava de um almoço constando de arroz, feijão e o recém-criado torresmo à milanesa. Adoniran consertou o verso: "Arroz, feijão e UM torresmo à milanesa". Novamente, Carlinhos Vergueiro ficou curioso.

"Por que só um, Adoniran?"
"Porque é mais triste".

Leio essa história em "Trem das Onze - A Poética de Adoniran Barbosa" (R$ 130, 204 págs.), livro de grande formato, com CD incluído, que acaba de sair pela editora Aprazível. Os textos são de Celso de Campos Jr., biógrafo e curador do acervo de Adoniran.

Há também 165 fotos antigas (do Brás, do Bexiga, do artista) que fazem do livro uma bela homenagem ao centenário do seu nascimento.

As fotos são, às vezes, mais tristes que o tal torresmo. Meninos de mão no bolso, e pés descalços, observam ressabiados alguma paupérrima atração de rua no centro paulistano. Um freguês solitário, de paletó claro, espera o troco numa pastelaria, daquelas de vitrô branco em cima do balcão.

Homens de chapéu preto e bigodinho aparecem toda hora, tomando café, lendo jornal ou comendo macarrão. Fogem rapidamente para a página seguinte, protegendo-se da chuva, escondendo-se da mulher ou de algum credor.

Poderiam ser sósias do próprio Adoniran. Mesmo quando aparecia jovem e sorridente nas fotos, ele tinha algo de acabado, um certo amarfanho no olhar. E quem já ouviu suas gravações (só surgiram em disco, aliás, na década de 1970) sabe que uma pessoa pode ter rugas até na voz.

As imagens de São Paulo, algumas das décadas de 1940 e 1950, dão ao livro o aspecto de um passado "em camadas".

Sendo de fotógrafos famosos, como Marcel Gautherot ou Hildegard Rosenthal, mostram lugares que já eram decadentes mesmo quando em plena ebulição -para lembrar o comentário famoso de Lévi-Strauss.

E trazem à mente a sensação típica de algumas letras de Adoniran Barbosa, como "Saudosa Maloca", "Samba do Arnesto" e "Trem das Onze": a de que algo já está em ruínas antes da hora, e que chegamos com atraso a uma festa que não houve.

O Arnesto, que mora no Brás, desistiu do samba e não deixou na porta nenhum aviso. Poderia, diz a letra de Adoniran, ter pedido desculpas por escrito; desculpas inclusive pelo fato de não saber escrever.

É a mesma ideia do "torresmo à milanesa", que só está na marmita de outro personagem porque não existe tal comida.

De certo modo, Adoniran Barbosa também nunca existiu -é uma personagem criada por João Rubinato, um senhor nascido em Valinhos, não se sabe se em 1910 mesmo ou se dois anos depois.

Quanto ao Jaçanã, bairro paulistano imortalizado pelo autor, diz uma das lendas que Adoniran nunca esteve lá, dizendo não saber sequer "onde fica aquela porcaria".

Nem por isso se desculpa o fato de o livro da editora Aprazível não trazer nenhuma foto do Jaçanã. Muitas imagens, apesar de bonitas, são apenas vagamente relacionadas com o universo do sambista.

O "não lugar" do Jaçanã, cuja existência é tão literária quanto a "não comida" do torresmo à milanesa, soma-se ao "não pobre", se se pode dizer assim, que foi Adoniran Barbosa.

Não que ele fosse rico, ou tivesse instrução (foi só até o terceiro ano primário). Mas é que, sendo um tipo evidentemente popular, tratou de falar errado de propósito; sua ironia, impensável se viesse da classe alta, pôde voltar-se sobre quem estivesse abaixo dele próprio na escala social.

Mesmo na classe D, haverá quem despreze o "maloqueiro", termo que ninguém da classe A empregaria.

"Escrever errado é a coisa mais difícil que existe", dizia Adoniran. "Se não for do jeito certo, vira piada, vira deboche."

A magia da coisa, especialmente sensível nos anos 1970, quando se deu a "redescoberta" de Adoniran, talvez esteja nisso.

Não se trata do povo, ele próprio, falando de seu lugar autêntico. É o povo falando de si como se fosse de uma terceira pessoa.

Afinal, o "povo", quando existe, é sempre os outros. Ou melhor, os outro.

coelhofsp@uol.com.br

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Postado por Thaís às 03:37 Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar no Google Buzz
Temas: Adoniran Barbosa, cultura, linguagem

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