FCCV - Forum Comunitário de Combate à Violência (Salvador - Bahia - Brasil)Leitura de fatos violentos publicados na mídiaAno 10, nº 45, 29/12/10 | |
LÂMPADAS DA INCIVILIDADE |
De quem é a rua? E o corpo de cada pessoa que por ela passa, de quem é?
Essas perguntas parecem sair de um baú improvável que talvez restasse naquele sótão da antiga casa dos velhos tempos. Em meio ao pó e às teias de aranha quem sabe restam cadernos antigos e, em suas páginas, quiçá, perguntas como estas sirvam de lentes para fotografias daquele tempo dos donos da rua e dos corpos alheios.
Agora é tempo de rua pública e é quando cada pessoa possui o seu próprio corpo tal como a sua vida e sua intimidade. As vias públicas são ocupadas por estes corpos que com suas existências emprestam movimento a cada hora do tempo em sua grandeza civil. Durante os dias um jeito se incorpora, dando pressa ao caminhante em suas linhas tão retas quanto possível, de tal modo que são poucos os que desenham em seus rastros oscilações ou vaivens espontâneos e dissonantes. Uma onda humana caminha para chegar e não para caminhar.
Nas noites, mesmo neste nosso tempo de tanto medo, há muitos jovens que fazem do verbo sair um afazer. E muitos deles dão conta deste costume a pé e em pequenos grupos. Caminham pelas cidades como forma de diversão e ali se encontram, papeiam e festejam em anonimato. A rua é deles, como de todos e esse é o trato oficial que marca, nas juras cívicas de nossa atualidade, o direito de ir e vir.
Em muitas das ruas atuais das grandes cidades há um sofisticado esquema de vigilância através do qual o movimento dos pedestres e dos motorizados fica registrado. O olho eletrônico é sensível aos abalos sutis de quem por ele é magnetizado. São células que acompanham os passantes e dos seus atos podem fazer faróis sobre inquéritos policiais.
De repente, três jovens são espancados quando caminhavam, à noite, pela Avenida Paulista no dia 14 de novembro de 2010. Eles voltavam da balada quando quatro adolescentes e um jovem de 19 anos os surpreenderam com agressões, um deles os atacou com dois bastões de lâmpadas fluorescentes. Uma testemunha viu a agressão e chamou a polícia.
Identificados, os autores dos ataques são jovens de classe média que explicaram os seus atos como revides às provocações de homossexuais que os agrediram. Familiares dos acusados e o advogado apelaram para um redimensionamento do caso que, para a mãe de um deles “tudo não passou de uma briga boba”. Pela versão dos agressores, as vítimas atiraram a primeira pedra (“eles mexeram com a gente”) e, assim, os seus ataques podem tomar o lugar da legítima defesa e, quem sabe, a culpa possa ser descarregada contra os feridos. Essa inversão de papéis, entretanto, não se sustenta diante das imagens do olho eletrônico que vigia o dia e a noite daquele pedaço da Paulista.
As imagens mostram os garotos agredindo gratuitamente os três rapazes. Os bastões fluorescentes “iluminam” os atos e seus responsáveis e, juntamente com as outras provas dos ataques imotivados, devolvem aos originais acusados o fardo da suspeição, deixando vazios os argumentos da defesa.
A sociedade que se aparelha para registrar flagrantes muitas vezes se vê, como agora, flagrada com as suas próprias técnicas de vigiar o alheio na sanha de deter um temeroso e medonho invasor. Nestas horas, as cenas mostram que as coisas que se imaginam superadas e perdidas em sótãos embolorados vigem em plena luz dos postes e deles tiram um sustento inusitado. As suas lâmpadas viram armas nas mãos dos donos da rua, caçadores da liberdade daqueles corpos que cismam em transitar pelos seus itinerários.
Depois de flagrados os “donos da via pública” não conseguem conceber que o jogo continua. Querem a incolumidade que não “concederam” aos seus agredidos. É justamente o que eles não dão que agora mais querem: passar em brancas nuvens. E é por isso o apelo obstinado: foi tudo uma brincadeira de adolescentes!
Nenhum comentário:
Postar um comentário