domingo, 5 de dezembro de 2010

CRÔNICA ... O DOMINGO DOS CATADORES DE PAPÉIS

CRÔNICA DOMINICAL DE 5 DE DEZEMBRO DE 2010

O DOMINGO DOS CATADORES DE PAPÉIS A CEU ABERTO


Vicente D. Moreira


Angústia, solidão
Um triste adeus em cada mão
Lá vai, meu bloco vai
Só deste jeito é que ele sai
Na frente sigo eu
Levo um estandarte de um amor
Amor que se perdeu
No carnaval lá vai meu bloco
E lá vou eu também
Mais uma vez sem ter ninguém
No sábado e domingo
Segunda e terça-feira
E quarta feira vem
O ano inteiro é sempre assim
Por isso quando eu passar
Batam palmas para mim

Aplaudam quem sorrir
Trazendo lágrimas no olhar
Merece uma homenagem
Quem tem forças pra cantar
Tão grande é minha dor
Pede passagem quando sai
Comigo só
Lá vai meu bloco vai


("Bloco da Solidão" Edvaldo Gouveia / Jair Amorim)


Hoje, primeiro domingo do último mês do ano (precisa dizer que já estamos em dezembro?) vamos falar - breve que seja - do domingo dos solitários a céu aberto: catadores de papéis, moradores de rua, mendigos, "os bêbados" [e os loucos] do centro da cidade" ("Cálice" - Chico Buarque e Gilberto Gil)

Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...


[No próximo domingo, dia 12, nossa crônica dará bola e vez aos solitários a céu fechado. A epígrafe será esta mesma; os solitários serão outros e será a outra a solidão corrosiva do viver só, e sofrer]


Mas hoje é hoje. Próximo domingo é próximo domingo.

Aos domingos, as ruas e praças do centro das cidades estão vazias de gente e de automóveis. Resta mais espaço, mais solidão ... e menos olhos e menos ameaças, poucos homicídios e tentativas de homicídios contra as gentes que têm o céu como teto e como cobertor ... para essas gentes que não guardam o Dia do Senhor e de Seu merecido dencanso.

Aos domingos, para estas gentes talvez haja menos cálices e menos frases cheias de veveno à mão e à boca dos que têm carros e casas.

Há mais solidão para carregar papéis, papelões, caixas ... e tudo o que resta, que não mais presta e não mais se presta ... migalhas descartadas, do banquete consumista do sábado das lojas do centro da cidade.

As lojas dos shopping centers escondem as migalhas que são descartadas das toalhas de algodão egípcio.

As lojas do centro das cidades não têm essa vergonha de acentuar uma vergonha que não está nos personagens urbanos da crônica de hoje, e sim nos olhos de quem os vê.

É um domingo solitário e silencioso. E até se consegue sentir o cheiro do que resta de verde. Saudades do barulho e da fumaça dos dias (ditos) úteis?

A pérola é uma jóia muito cara e de singular raridade. Pérolas são produtos da dor do molúsculo que a produz, e que precisa ser ferido para produzí-la. A dor é produzida quando um grão de areia ou qualquer outra substância estranha penetra no interior da ostra, que é constituído de uma substância oleosa chamada nácar. [Daí aquele tipo de papel translúcido que emite várias cores ser chamado papel nacarado].


De brilho translúcido e capaz de captar os raios solares, o nácar aciona suas células para que cubram e envolam o grão de areia e, desse modo, proteger o corpo da ostra bastante indefeso. Mesmo assim, a ostra é ferida e a dor correspondente a este sofrimento aparece sob forma de pérola.

Que ostras e que dores sociais produzem essas pérolas camadas caixas de papelão?

Não precisa responder agora. Precisa é cantar agora.

E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade

"Marcha da Quarta-feira de Cinzas" - Vinicius de Moraes e Carlos Lyra

Então, vamos cantar "Cálice", de Chico Buarque e Gilberto Gil:


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...(2x)

Como beber
Dessa bebida amarga
Tragar a dor
Engolir a labuta
Mesmo calada a boca
Resta o peito
Silêncio na cidade
Não se escuta
De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Como é difícil
Acordar calado
Se na calada da noite
Eu me dano
Quero lançar
Um grito desumano
Que é uma maneira
De ser escutado
Esse silêncio todo
Me atordoa
Atordoado
Eu permaneço atento
Na arquibancada
Prá a qualquer momento
Ver emergir
O monstro da lagoa...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

De muito gorda
A porca já não anda
(Cálice!)
De muito usada
A faca já não corta
Como é difícil
Pai, abrir a porta
(Cálice!)
Essa palavra
Presa na garganta
Esse pileque
Homérico no mundo
De que adianta
Ter boa vontade
Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Talvez o mundo
Não seja pequeno
(Cale-se!)
Nem seja a vida
Um fato consumado
(Cale-se!)
Quero inventar
O meu próprio pecado
(Cale-se!)
Quero morrer
Do meu próprio veneno
(Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez
Tua cabeça
(Cale-se!)
Minha cabeça
Perder teu juízo
(Cale-se!)
Quero cheirar fumaça
De óleo diesel
(Cale-se!)
Me embriagar
Até que alguém me esqueça
(Cale-se!)


("Cálice" - Chico Buarque e Gilberto Gil)

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