Editorial - Folha de São Paulo
[jornal Folha de São Paulo, São Paulo (SP - Brasil), 25 de dezembro de 2011, p. A2]
A alma das cidades
Como bem sabe qualquer turista, um dos
prazeres de conhecer as grandes cidades
do mundo está em simplesmente caminhar
sem destino fixo, deixando-se levar pelo
acaso das ruas.
A surpresa de encontrar uma praça
escondida, de se deparar com um
ângulo insuspeito da paisagem urbana
, se soma à experiência de mergulhar
no fluxo dos passantes, flagrando sua
diversidade no vaivém cotidiano.
Não são muitas as regiões de São Paulo
capazes de oferecer esse tipo de
sensação. A cidade, notoriamente hostil
ao pedestre, tende a estruturar-se
como um mosaico de destinos
razoavelmente interessantes,
todavia cercados de zonas mortas,
quando não perigosas.
Assim, o núcleo turístico criado em
torno da Pinacoteca de São
Paulo se encolhe nas imediações da
cracolândia, e, na Cidade Jardim,
os esplendores de um shopping
de luxo aterrissaram às margens
de uma via expressa.
A região da avenida Paulista e da
rua Augusta é uma das poucas em
que o pedestre, ainda mais se for
turista, pode apreciar aquele
meio termo entre a homogeneidade
e a diversidade, entre a segurança e
a surpresa, que faz a graça dos
locais mais visitados nas grandes
cidades do mundo.
Diante da notícia de que quatro
shoppings serão construídos
nessa área, é natural que os
especialistas se dividam. "O shopping
é anticidade", opina Álvaro Puntoni,
professor da USP. Haveria mais
sentido, diz o planejador urbano
Thiago Guimarães, se complexos
comerciais fossem construídos fora do
centro, redirecionando o trânsito e a
atividade econômica para áreas menos
congestionadas.
Não há incompatibilidade de princípio
entre a existência de um shopping e
a vitalização das vias ao seu redor.
É claro que um "bunker" comercial
, fechado para a rua, como é comum
em São Paulo, constitui agressão à cidade.
Pequenos shoppings semiabertos, de que
há exemplo aliás na região do Itaim,
podem, entretanto, integrar-se à rua
tradicional -e parece ser esta a intenção
de alguns dos novos projetos da Paulista.
Mas é, sobretudo, a valorização da rua
que precisa se impor em São Paulo,
com reformas de calçadas e enterramento
da fiação, como se fez, por exemplo,
na Oscar Freire. Um caminho que também
poderia ser tentado é inverso e simétrico
ao da construção de shoppings: ruas que,
tendo ampla oferta de lojas e restaurantes,
priorizem o pedestre. Servidas por bolsões
de estacionamento, seriam como que shoppings
a céu aberto, ou, quem sabe, coisa melhor:
lugares de convívio urbano livre e democrático.
É só em ambientes assim, de delicada
ecologia econômica e social, que a alma
das cidades sobrevive.
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