CULTURA URBANA E EDUCAÇÃO - ME/SED - BRASIL (2)
ISSN 1982 - 0283
Cultura urbana e educação
Ano XIX – Nº 5 – Maio/2009
Ministério da
Educação
Secretaria de Educação à Distância
TEXTOS DA SÉRIE CULTURA URBANA E EDUCAÇÃO
A série Cultura urbana e educação pretende evidenciar estratégias dos grupos que desenvolvem ações culturais na cidade, buscando, ainda, os reflexos dessas práticas na educação formal e não-formal. Nesse contexto, extrapola-se o ponto de vista da cultura como representação e passa-se a entendê-la a partir de estratégias e procedimentos que impulsionam processos continuados de ações criativas que reforçam laços de sociabilidade, permitindo reinventar a cidade.
TEXTO 1: A POSSE DA LINGUAGEM
No contexto das redes e cultura urbanas, o texto que oferece subsídios para o primeiro programa da série destaca a diversidade das linguagens e sua incorporação como elemento determinante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens urbanas, o foco recai sobre o audiovisual e a música presentes na produção cultural, educacional, estética, na produção social contemporânea de forma ampla. O texto analisa, também, que a maioria dos grupos culturais urbanos não trabalha com uma linguagem exclusiva, diferentes linguagens são mobilizadas na sua produção, mas todos reconhecem uma dimensão decisiva hoje na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual:
8 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Unesco, 2003.
9 Estes textos são complementares à série Cultura urbana e educação, com veiculação de 25 a 29 de maio no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC).9
a necessidade de “posse” dessas linguagens, assim como a posse e a desconstrução das linguagens do poder. De fato, o desejo difuso é experimentar todas as linguagens, compartilhar a emoção, a inteligência, disputar com a novela e com a cultura de massa, potencializar e empoderar os discursos, tomar posse de todas as linguagens.
TEXTO 2: O CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO
O texto que embasa o segundo programa apresenta, entre outros temas, a necessidade de reconhecer que a cidade é produto da diversidade da vida social, cultural e pessoal. Isto significa dizer que a cidade deve ser pensada, tratada e vivida como um bem público comum, e não como um espaço de desigualdades. A cidade é o encontro dos diferentes. A cidade é a expressão da pluralidade de vivências culturais, afetivas e existenciais. Por outro lado, a padronização cultural da vida rouba da cidade a criatividade necessária para inventar a alegria e a felicidade, enquanto a homogeneização das práticas socioculturais enfraquece o significado do conviver e do aprender com presença do outro. Isto significa dizer, portanto, que é preciso reconstruir a vida da cidade pelo reconhecimento da diversidade cultural como um valor da existência.
TEXTO 3: PRÁTICAS INOVADORAS
O texto deste terceiro programa enfatiza estes aspectos, entre outros: Se acreditarmos que a escola é o primeiro lugar onde podemos experimentar o mundo, como isso será possível se dentro da escola não existir a diversidade do mundo? Até então, essa diversidade do mundo só estava presente dentro da escola através de ilustrações que o conteúdo escolar difunde. O conteúdo deve ser tratado como um objeto que pode ser montado/desmontado por todos. Dessa maneira, ele será percebido como uma linguagem que produz sentido sobre o mundo. A combinação de diversos atores sociais com a experimentação das linguagens e conteúdos pode criar um ambiente favorável a novas práticas.
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para o quarto programa, com entrevistas que refletem sobre esta temática (Outros olhares sobre Cultura urbana e educação) e para as discussões do quinto e último programa da série (Cultura urbana e educação em debate).
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
ATHAYDE, Celso et alli. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
CANCLINI, Néstor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.
DAVIS, Mike. Planeta de favelas. In: SADER, Emir. Contragolpes – seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.
ESSINGER, Sílvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão – guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
LAZZARATO, Maurício. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.
SAID, Edward. Cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2003.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Petrópolis: Vozes, 2006.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.11
TEXTO 1
Aposse da linguagem
INCLUSÃO SUBJETIVA
Ivana Bentes1
No momento em que a cidade é pensada como a “nova fábrica”, como propõe Antonio Negri, podemos dizer que a cultura urbana está na gênese da própria ideia da “multidão” produtiva, formada por singularidades que não podem mais ser representadas de forma tradicional e que começam a atuar de forma comum ou em projetos e ações partilhadas.
A cultura urbana, hoje, passa a ser entendida como produção de riqueza e a cidade, as metrópoles estariam para a multidão como a fábrica estava para os operários (Antonio Negri). A difusão da produtividade e da criação de valor se desloca para o campo das relações sociais, dos fluxos e trocas, a cidade se informatiza, assim como a produção e o trabalho. A cultura urbana torna-se uma das bases do capital que busca extrair valor das redes espalhadas pela cidade, redes de cultura, redes de saber, redes de afetividade e sociabilidade.
Mas quais as possibilidades para que as redes de cultura urbana se apropriem e dinamizem o território urbano? “Não existe inclusão sem inclusão subjetiva”, essa proposição do projeto Reperiferia, de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro2, pode se articular com uma outra questão. Também não existe inclusão sem a posse das linguagens e o acesso à infraestrutura tecnológica, o acesso às redes: sistemas de informação e comunicação que permitam a comunicação barata, autônoma e colaborativa, gerando um aumento da produtividade social: computadores, software, câmeras digitais, internet livre, ambientes coletivos para se “estar junto”.
Mais que tecnologias de comunicação, estas são condições de funcionamento de novos processos sociais e criação de capital social, aumentando a “intelectualidade de massa”, aumentando a produtividade social em todos os níveis. Mas o que seria essa sustentabilidade e inclusão subjetiva, que é tão importante quanto a existência de infraestrutura tecnológica instalada, seja low-tech, seja hight tech. Muitos aspectos dessa sustentabilidade “imaterial”, simbólica são tão ou mais importantes que as questões bem materiais e concretas da necessidade de tecnologias instaladas no corpo da cidade, de forma pública e gratuita.
A POSSE DA LINGUAGEM
Nesse contexto das redes e cultura urbanas, podemos destacar a diversidade das linguagens e sua incorporação como elemento determinante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens urbanas destacamos o audiovisual e a música presentes na produção cultural, educacional, estética, na produção social contemporânea de forma ampla.
A maioria dos grupos culturais urbanos não trabalha com uma linguagem exclusiva, diferentes linguagens são mobilizadas na sua produção, mas todos reconhecem uma dimensão decisiva hoje na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual: a necessidade de “posse” dessas linguagens, assim como a posse e a desconstrução das linguagens do poder.
De fato, o desejo difuso é experimentar todas as linguagens, compartilhar a emoção, a inteligência, disputar com a novela e com a cultura de massa, potencializar e empoderar os discursos, tomar posse de todas as linguagens.
Também é interessante pensar as culturas urbanas como experiências radicais de educação não-formal, em que a experiência audiovisual, musical, teatral, etc. aparece como conhecimento lúdico, posse da linguagem como porta de entrada privilegiada para essa inclusão subjetiva e para o trabalho vivo.
Destituindo a oposição entre letrado/oral, popular/erudito, tecnológico/artesanal, a cultura urbana vai incorporando as mais distintas estéticas, utilizando desde o mais experimental até as linguagens que já circulam na cultura de massas. As estratégias são múltiplas para essa apropriação das linguagens.
Uma dinâmica recorrente na constituição de grupos, coletivos, projetos de cultura urbana é começar com as referências existentes dos jovens, sejam quais forem. Uma jovem da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, por exemplo, quer produzir clipes para as músicas evangélicas e religiosas da sua Igreja, um menino quer aprender a fazer filmes de ação tipo James Bond... O professor não vai dissuadi-los dos seus projetos e motivações, mas vai lhes apresentar novas referências. Já no projeto “coletores de imagens” são os registros do cotidiano de cada um que serão analisados nas aulas. Parte-se do cotidiano para pensar uma estética ou linguagem expandida para outros campos, repertórios e referências.
Um garoto traz as imagens das irmãzinhas tomando banho em nudez inocente, no projeto TV Lata, da Bahia. O mediador/professor, Joselito Crispim, tem que perguntar se ele acha mesmo que pode mostrar as irmãs para qualquer um ver. O garoto recua, melhor não expor as irmãs à curiosidade de desconhecidos. Ética das imagens que nasce do fazer, do sentir, do perceber.
A partir do concreto se chega ao conceito, à ética, à história do cinema e da videoarte. Pode-se partir dos códigos do melodrama ou da novela para chegar a Godard. Partir do sabido, do consumo, para trazer outras referências. Como na história roteirizada de um garoto que quer incorporar o nome, a marca Nike, no seu sobrenome, conta Luciana Bezerra do núcleo de cinema Nós do Morro.
Esses jovens já se relacionam com as tecnologias e linguagens, em lan houses, videolocadoras, através dos jogos eletrônicos, do melodrama, da TV, das linguagens da violência e mesmo da pornografia. Pode-se partir dessas referências e questões para chegar a outras estéticas e éticas.
Para muitos grupos (que trabalham com jovens das periferias), o ponto de partida, nesse trabalho de educação/ocupação/formação de jovens, é o desafio de criar um “pertencimento” social, criar uma “comunidade” subjetiva, um comum, uma inserção pelo compartilhamento da linguagem, mais do que pelo confinamento em um gueto, decisivo como estratégica de sair do lugar de objeto e se tornar sujeito do discurso e ganhar mobilidade social.
Para a TV Lata e o Espaço Bagunçaço de Alagados, Salvador essa construção de autoestima e pertencimento, assim como para o pessoal das Filmagens Periféricas, da favela paulista de Tiradentes, surge como decisiva num primeiro momento. Fazer seus filmes, se ver nos filmes, exibir seus filmes e ser reconhecido dentro e fora da sua comunidade de forma singular. Inclusão subjetiva.
Propostas como a Oficina de Imagem (e o Latanet, “da latinha à internet”) articulam áreas do conhecimento entre si como física, química, história, geografia, matemática, filosofia, estética, informática. Ao fazer fotografia em latas de alumínio, o jovem tem contato com conceitos da física ótica, com elementos químicos, com estilos artísticos, com o espaço geográfico. Ao analisar temas relacionados à sua comunidade, o aluno é estimulado a ter uma visão crítica acerca das informações veiculadas diariamente pelos meios de comunicação. O projeto Latanet também aproxima currículo escolar, mídia, cidadania e o cotidiano do estudante, levando as linguagens e tecnologias da comunicação para o ambiente escolar com 14
a criação de redes de intercâmbio entre jovens e educadores de diferentes escolas.
POSSE DA CIDADE
Ao mesmo tempo, com a proliferação da cultura urbana vinda das periferias, é preciso problematizar o discurso assistencialista e paternalista que se apresenta como “salvador” ou “messiânico” ou de “tutela” desses movimentos, que surgem rompendo com velhos discursos sobre a pobreza. É a preocupação do grupo Nós do Morro de sair do discurso paternalista dos projetos que têm como missão ou objetivo “tirar jovens do tráfico”, “tirar jovens da rua”. O discurso é outro, para empoderar esses jovens, lhes restituir autonomia, criar novas condições de uma inclusão subjetiva ou uma “intrusão social”; a aposta é a apropriação tecnológica e simbólica, tudo o que produza um aumento de potência/autonomia/autogestão. “Não nos coloque no gueto”, não nos reduza a produzir uma “estética da periferia”. Ou, ainda, não nos reduza a uma pobreza folclórica, essa é uma das questões recorrentes da cultura urbana periférica, um segundo momento, de saída do discurso da “identidade” e do “gueto”.
Os jovens de Alagados, do projeto Bagunçaço e da TV Lata podem ser beneficiados por esse exotismo da pobreza, alvos da curiosidade da BBC e de muitas equipes de TV e documentários estrangeiros. Ao mesmo tempo, a periferia é global, está em vários espaços e países. Assim, a mobilidade social conquistada por Joselito Crispim o leva a discutir e apresentar seus projetos em diferentes grupos sociais e países, conseguindo parcerias e apoios no mundo todo. É claro que quem financia, apoia ou patrocina os projetos das periferias urbanas brasileiras acaba direcionando o foco. “Meninos pobres da favela” é uma demanda e “condição inicial” de muitos filmes e projetos realizados que podem até passar pelo exotismo da pobreza, mas afirmam a necessidade de não se deixar aprisionar nos estereótipos nem cair na condição de vítimas, de objetos do discurso do outro, de uma folclorização, onde alguém diz de “fora” o que você é . É preciso tomar posse das linguagens e dos meios, tomar posse das câmeras, das redes, pois as questões de pertencimento e autoestima passam pela potência da imagem e da visibilidade e pela possibilidade de reverter o negativo em positivo, saindo do discurso da “falta” e do “negativo” que ainda marca certos discursos sobre a cultura urbana periférica.
(...) com a proliferação da cultura urbana vinda das periferias, é preciso problematizar o discurso assistencialista e paternalista que se apresenta como “salvador” ou “messiânico” ou de “tutela” desses movimentos, que surgem rompendo com velhos discursos sobre a pobreza.
Essas seriam pois algumas condições para uma inclusão subjetiva: além da apropriação tecnológica e da posse da linguagem, a plena circulação pela cidade. A posse do território urbano.
Como falar de uma cultura urbana plena quando jovens negros são impedidos de se deslocarem livremente pela cidade ou, ao se deslocarem, aparecem os constrangimentos e os territórios proibidos.
Joselito Crispim descreve o espanto que os garotos negros de Alagados/Bahia ainda causam nos espaços públicos de Salvador. Racismo, desconfiança, choque visual diante das crianças do Bagunçaço, que tocam percussão em latas. Também os jovens do Filmagens Periféricas destacam a necessidade dessa posse simbólica e real da cidade. Precisam sair do gueto e circular nos espaços que intimidam. Mais do que isso, precisam de dinheiro para circular e atravessar, às vezes, a cidade inteira para chegar a participar de um projeto cultural/social. Viabilizar o transporte e a circulação desses jovens, assegurando esse outro tempo, tornou-se decisivo para muitos projetos e participantes. Bolsas transportes, vãs, transportes facilitados são propostas de todos os grupos para tomar posse simbólica da cidade.
Além disso, é preciso levar os jovens brancos e de classe média e de outros grupos sociais às periferias e favelas. Entre esses grupos estratégicos estão os jornalistas e produtores de mídia. Uma das propostas da Associação Imagem Comunitária de Belo Horizonte é “educar” a mídia e os jornalistas sobre esses movimentos sociais e culturais.
A mídia também tem, muitas vezes, um discurso paternalista e piedoso, que só valoriza os projetos que vão “tirar o jovem do tráfico”, discurso que transforma os projetos em “creches de adultos”. Matérias que só querem explorar a antiga relação dos jovens com o tráfico ou a delinquência. Todos reconhecem essa dupla força da mídia: de dar visibilidade aos projetos e, ao mesmo tempo, produzir clichês e caricaturas. Alguns jornalistas não conhecem as periferias das cidades, e fazer mídia e tornar-se mídia são pontos decisivos na guerrilha semiótica.
Seria importante ter ações que levem a imprensa e a mídia para conhecer os projetos e periferias, de forma não sensacionalista, deixando de lado a retórica que transforma os novos produtores de cultura em “pobrestars”.
Os grupos e coletivos que trabalham nesses campos midiáticos profissionais voltados para a formação de atores, músicos, diretores de vídeo sublinham esse horizonte de uma profissionalização dessas atividades, não de uma glamourização das profissões e atividades midiáticas e artísticas. Reforçam a ideia do trabalhador-artista ou do artista-trabalhador. No Nós do Morro e em outros grupos, todos têm que passar por todas as etapas de produção, realização, atuação, manutenção física dos espaços, viabilização financeira, as diferentes ocupações na cadeia do audiovisual, atividades técnicas (eletricista, iluminador, figurinista, etc.).
OUTROS CIRCUITOS
Na TV Ovo, do Rio Grande do Sul, a formação de jovens através do audiovisual tem como objetivo formar e multiplicar formadores, passar da formação para a produção e exibição, e criar um circuito novo.
Por exemplo, a TV Ovo no ônibus, em que se produz curtas para serem vistos dentro de ônibus comuns que recebem um aparelho de televisão. O ônibus vira um espaço de exibição. Passageiros passam da sua parada original para acabar de ver o vídeo no Bus TV. Ainda na criação de circuitos, temos a TV Minuto. Debates relâmpagos no trânsito são feitos enquanto o sinal fecha, com um banquinho de plástico e uma pauta. Paródia dos debates de TV em que não se discute nada. A correria e a preocupação com o sinal que vai abrir ou fechar já bastam para “entreter”.
Em relação a novos circuitos, o Filmagens Periféricas tem como um dos projetos do grupo, depois das oficinas de vídeo na cidade de Tiradentes-SP, a exibição do material produzido no MIS, no CCBB, locais que muitos moradores de Tiradentes, periferia paulista, não têm acesso, não sabem o que é. Surge, então, o “Cinema de Periferia”, com a ideia de colocar todos os vídeos realizados pelo Filmagens Periféricas em uma fita ou DVD e distribuir nas locadoras de Tiradentes.
Com o apoio do Programa de Valorização das Iniciativas Culturais do Município de São Paulo, o Filmagens Periféricas conseguiu produzir, em 2003, 120 cópias com 13 curtas-metragens que foram distribuídas nas sete locadoras do bairro, e podem ser retiradas gratuitamente quando o cliente aluga algum filme comum.
No Cubocard, ação inovadora de criação de uma moeda colaborativa, em Cuiabá, chegamos ao exemplo máximo de criação de uma economia da cultura, com a criação de uma “moeda cultural”, um sistema de troca 17 e de crédito, uma “moeda” baseada na força do cooperativismo, mas que tem múltiplas faces com o comunitário, o cooperativo, a colaboração e o mercado.
O Cubocard transforma a troca de serviços em multiplicadora de autonomia. Não se trata de formação, mas de produção de autonomia e novos mercados fora do eixo, com protagonismo juvenil. Originada no cenário autoral da música, produtores de vídeo, Calango, Grito Rock, Festivais independentes, Imprensa Zine, o Cubocard é uma moeda de trocas, juntando o mercado formal e alternativo.
Trata-se de reinventar e ressignificar os circuitos locais, além de empoderá-los através da internet (TV Lata, Latanet, TV Ovo, Cubocard), pois todos os projetos têm web-sites como a base de divulgação e produção de redes e criação de mercados. Todos os participantes fazem demandas na capacitação na área de gestão, administração, para disputar editais, redes de apoio na formatação de projetos, “cnpjotagem”, tornando-se pessoa jurídica, Ong, OCIP, buscando aumentar o nível de formalização jurídica, mas mantendo a horizontalidade de rede e o coletivo e novas formas de gestão. Faltam captadores, redes de relacionamento, redes de colaboração, redes de troca de experiências, redes de gestão e de metodologias, listas, encontros periódicos, publicações sobre esses temas, trocas de serviços, banco de serviços e bens cambiáveis. Outra dificuldade é manter as redes formadas e criar “redes de redes”, potencializando as iniciativas, criando redes de relacionamento, trocas de conhecimento, que proporcionem um aumento da produtividade social e da inteligência coletiva.
Mas como sustentar o desejo? As formas jurídicas se tornaram insuficientes para dar conta dos arranjos dos coletivos, que são muito variados e diversos. A Escola Livre de Cinema é um projeto patrocinado pela Prefeitura de Nova Iguaçu, tendo professores com carteira assinada. Uma Ong e uma produtora independente, simultaneamente. A equipe de direção também faz produção e captação. Qualquer participante pode captar em nome do Projeto. Seu horizonte é se profissionalizar, remunerar a todos, com gestores, e setor financeiro
O Curso de Audiovisual da CUFA (Central Única das Favelas) é um curso livre de audiovisual, de teoria e prática, realizado hoje em parceria com a Escola de Comunicação da UFRJ, numa relação inovadora da cultura urbana com a universidade. A CUFA tem hoje uma equipe de cerca de 30 pessoas, inventou a Escola de Audiovisual, o Festival Hutúz, o Basquete de Rua. Tem uma figura midiática como MV Bill, que dá visibilidade e credibilidade, patrocínios estaduais, nacionais, apoio da Petrobras, apoio de políticas públicas, mídia da Globo. Tem Financeiro, tem diretor, tem Assessoria de Imprensa, 18 parcerias em todos os níveis. É um projeto que se replica em todo o Brasil.
O Grupo Nós do Morro tem patrocínio da Petrobras para os administradores. Bolsas simbólicas para os multiplicadores. Sua equipe tem perfil transdisciplinar: jornalistas, dramaturgos, cenógrafos, iluminadores, pedagogos, militantes. Dá autonomia para que os participantes proponham projetos individuais utilizando a “marca” do Grupo e a possibilidade de vender serviços para terceiros, para sustentar suas atividades (aluguel das ilhas de edição e equipamentos), etc. O processo de trabalho atende a 360 pessoas. Tem uma Diretoria e Coordenadores, únicos remunerados, os professores são voluntários.
TV Lata e Bagunçaço. A equipe da Associação é formada por uma pedagoga e um assistente social. Os meninos não vão embora, se autogerem, 300 meninos são sazonais, alguns se profissionalizam, frequentam intercâmbios internacionais, ganham trânsito e mobilidade social. É centrado na figura de Joselito Crispim, que tem liderança e visibilidade e apoios internacionais.
TV OVO: O projeto foi implantado como um Ponto de Cultura do Minc, o que garante sua sustentabilidade, e tem entrada em programas de políticas públicas, como o Primeiro Emprego. Ressalta a importância de bolsas para 12 jovens, com ajuda de custo, e conta com os voluntários dos Pontos de Cultura. Indicam a necessidade de profissionalizar a área e o projeto. Todos têm como horizonte não depender de voluntários, sair da precariedade.
Os Mcs do coletivo Filmagens Periféricas começaram trabalhando a “pão-com-mortadela” e hoje conseguiram, através de uma Lei de Incentivo Estadual, de São Paulo, montar uma ilha de edição e comprar uma câmera digital locadas no quarto de um dos coordenadores, na periferia de Tiradentes. O suficiente para colocarem seus vídeos e clipes na locadora da comunidade, inventando um mercado e um circuito. Quem aluga um “Duro de Matar” leva de graça os filmes da periferia.
O que essas propostas têm em comum? A horizontalidade das redes, a tendência no sentido de abolir a rigidez de hierarquias e burocracias. Essa cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, mídia, vídeo, moeda, educação), surge como um discurso político “fora de lugar” (não vem da universidade, não vem do Estado, não vem da mídia, não vem de partido político) e coloca em cena novos mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados, produtores da chamada economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso político urgente e de renovação num capitalismo da informação.
Essas redes culturais locais constituem um contraste com as políticas públicas organizadas do centro, muito hierarquizadas, centralizadas, e que não resolveram ou reduziram a um nível desejável as desigualdades sociais. Hoje, nós temos uma oportunidade histórica de experimentar outros modelos de políticas públicas, ainda embrionários, redes socioculturais que funcionam justamente de forma horizontal, acentrada, rizomática, organizando a própria produção.
Este texto tem como base a experiência de Coordenação do Grupo de Audiovisual do Projeto “Onda Cidadã”, promovido pelo Itaú Cultural em novembro de 2007 no Circo Voador, Rio de Janeiro/Lapa, um instantâneo, breve e intenso dessa potência da multidão, em gestação no laboratório do capitalismo imaterial brasileiro, o território urbano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTES. Ivana. Redes Colaborativas e Precariado Produtivo. In: Caminhos para uma Comunicação Democrática. São Paulo: Le Monde Diplomatique e Instituto Paulo Freire, 2007.
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.20
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