segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

CULTURA URBANA E EDUCAÇÃO - ME/SED - BRASIL (2)

CULTURA URBANA E EDUCAÇÃO - ME/SED - BRASIL (2)

ISSN 1982 - 0283
Cultura urbana e educação
Ano XIX – Nº 5 – Maio/2009
Ministério da
Educação
Secretaria de Educação à Distância


TEXTOS DA SÉRIE CULTURA URBANA E EDUCAÇÃO
A série Cultura urbana e educação preten­de evidenciar estratégias dos grupos que desenvolvem ações culturais na cidade, buscando, ainda, os reflexos dessas prá­ticas na educação formal e não-formal. Nesse contexto, extrapola-se o ponto de vista da cultura como representação e passa-se a entendê-la a partir de estraté­gias e procedimentos que impulsionam processos continuados de ações criativas que reforçam laços de sociabilidade, per­mitindo reinventar a cidade.
TEXTO 1: A POSSE DA LINGUAGEM
No contexto das redes e cultura urbanas, o texto que oferece subsídios para o primeiro programa da série destaca a diversidade das linguagens e sua incorporação como elemen­to determinante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens urbanas, o foco recai sobre o audiovisual e a música presentes na produção cultural, educacional, estética, na produção social contemporânea de forma ampla. O texto analisa, também, que a maioria dos grupos culturais urbanos não trabalha com uma linguagem exclusiva, diferentes linguagens são mobilizadas na sua produção, mas todos reconhecem uma di­mensão decisiva hoje na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual:
8 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Unesco, 2003.
9 Estes textos são complementares à série Cultura urbana e educação, com veiculação de 25 a 29 de maio no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC).9
a necessidade de “posse” dessas linguagens, assim como a posse e a desconstrução das linguagens do poder. De fato, o desejo difuso é experimentar todas as linguagens, compar­tilhar a emoção, a inteligência, disputar com a novela e com a cultura de massa, potencia­lizar e empoderar os discursos, tomar posse de todas as linguagens.
TEXTO 2: O CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO
O texto que embasa o segundo programa apresenta, entre outros temas, a necessi­dade de reconhecer que a cidade é produto da diversidade da vida social, cultural e pes­soal. Isto significa dizer que a cidade deve ser pensada, tratada e vivida como um bem público comum, e não como um espaço de desigualdades. A cidade é o encontro dos diferentes. A cidade é a expressão da plura­lidade de vivências culturais, afetivas e exis­tenciais. Por outro lado, a padronização cul­tural da vida rouba da cidade a criatividade necessária para inventar a alegria e a felici­dade, enquanto a homogeneização das prá­ticas socioculturais enfraquece o significado do conviver e do aprender com presença do outro. Isto significa dizer, portanto, que é preciso reconstruir a vida da cidade pelo re­conhecimento da diversidade cultural como um valor da existência.
TEXTO 3: PRÁTICAS INOVADORAS
O texto deste terceiro programa enfatiza es­tes aspectos, entre outros: Se acreditarmos que a escola é o primeiro lugar onde pode­mos experimentar o mundo, como isso será possível se dentro da escola não existir a di­versidade do mundo? Até então, essa diversi­dade do mundo só estava presente dentro da escola através de ilustrações que o conteúdo escolar difunde. O conteúdo deve ser tratado como um objeto que pode ser montado/des­montado por todos. Dessa maneira, ele será percebido como uma linguagem que produz sentido sobre o mundo. A combinação de di­versos atores sociais com a experimentação das linguagens e conteúdos pode criar um ambiente favorável a novas práticas.
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para o quarto programa, com entrevistas que refletem sobre esta temática (Outros olhares sobre Cultura urbana e educação) e para as discussões do quinto e último pro­grama da série (Cultura urbana e educação em debate).

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
ATHAYDE, Celso et alli. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
CANCLINI, Néstor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.
DAVIS, Mike. Planeta de favelas. In: SADER, Emir. Contragolpes – seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.
ESSINGER, Sílvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e me­diações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão – guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
LAZZARATO, Maurício. As revoluções do capi­talismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às me­diações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: es­tética e política. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.
SAID, Edward. Cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2003.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Petró­polis: Vozes, 2006.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizon­te: Editora UFMG, 2004.11
TEXTO 1

Aposse da linguagem
INCLUSÃO SUBJETIVA
Ivana Bentes1

No momento em que a cidade é pensada como a “nova fábrica”, como propõe An­tonio Negri, podemos dizer que a cultura urbana está na gênese da própria ideia da “multidão” produtiva, formada por singula­ridades que não podem mais ser represen­tadas de forma tradicional e que começam a atuar de forma comum ou em projetos e ações partilhadas.
A cultura urbana, hoje, passa a ser entendi­da como produção de riqueza e a cidade, as metrópoles estariam para a multidão como a fábrica estava para os operários (Antonio Negri). A difusão da produtividade e da cria­ção de valor se desloca para o campo das relações sociais, dos fluxos e trocas, a cidade se informatiza, assim como a produção e o trabalho. A cultura urbana torna-se uma das bases do capital que busca extrair valor das redes espalhadas pela cidade, redes de cul­tura, redes de saber, redes de afetividade e sociabilidade.
Mas quais as possibilidades para que as redes de cultura urbana se apropriem e dinami­zem o território urbano? “Não existe inclu­são sem inclusão subjetiva”, essa proposição do projeto Reperiferia, de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro2, pode se articular com uma outra questão. Também não existe inclusão sem a posse das linguagens e o acesso à in­fraestrutura tecnológica, o acesso às redes: sistemas de informação e comunicação que permitam a comunicação barata, autônoma e colaborativa, gerando um aumento da pro­dutividade social: computadores, software, câmeras digitais, internet livre, ambientes coletivos para se “estar junto”.
Mais que tecnologias de comunicação, estas são condições de funcionamento de novos processos sociais e criação de capital social, aumentando a “intelectualidade de massa”, aumentando a produtividade social em to­dos os níveis. Mas o que seria essa susten­tabilidade e inclusão subjetiva, que é tão importante quanto a existência de infraes­trutura tecnológica instalada, seja low-tech, seja hight tech. Muitos aspectos dessa sus­tentabilidade “imaterial”, simbólica são tão ou mais importantes que as questões bem materiais e concretas da necessidade de tec­nologias instaladas no corpo da cidade, de forma pública e gratuita.
A POSSE DA LINGUAGEM
Nesse contexto das redes e cultura urbanas, podemos destacar a diversidade das lingua­gens e sua incorporação como elemento determinante das novas formas do político e da ação. Entre essas linguagens urbanas destacamos o audiovisual e a música pre­sentes na produção cultural, educacional, estética, na produção social contemporânea de forma ampla.
A maioria dos grupos culturais urbanos não trabalha com uma linguagem exclusiva, di­ferentes linguagens são mobilizadas na sua produção, mas todos reconhecem uma di­mensão decisiva hoje na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisu­al: a necessidade de “posse” dessas lingua­gens, assim como a posse e a desconstrução das linguagens do poder.
De fato, o desejo difuso é experimentar to­das as linguagens, compartilhar a emoção, a inteligência, disputar com a novela e com a cultura de massa, potencializar e empode­rar os discursos, tomar posse de todas as linguagens.
Também é interessante pensar as cultu­ras urbanas como experiências radicais de educação não-formal, em que a experiência audiovisual, musical, teatral, etc. aparece como conhecimento lúdico, posse da lin­guagem como porta de entrada privilegiada para essa inclusão subjetiva e para o traba­lho vivo.
Destituindo a oposição entre letrado/oral, po­pular/erudito, tecnológico/artesanal, a cultu­ra urbana vai incorporando as mais distintas estéticas, utilizando desde o mais experimen­tal até as linguagens que já circulam na cul­tura de massas. As estratégias são múltiplas para essa apropriação das linguagens.
Uma dinâmica recorrente na constituição de grupos, coletivos, projetos de cultura urbana é começar com as referências exis­tentes dos jovens, sejam quais forem. Uma jovem da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, por exemplo, quer produzir clipes para as músicas evangélicas e religiosas da sua Igreja, um menino quer aprender a fazer filmes de ação tipo James Bond... O profes­sor não vai dissuadi-los dos seus projetos e motivações, mas vai lhes apresentar novas referências. Já no projeto “coletores de ima­gens” são os registros do cotidiano de cada um que serão analisados nas aulas. Parte-se do cotidiano para pensar uma estética ou linguagem expandida para outros campos, repertórios e referências.
Um garoto traz as imagens das irmãzinhas tomando banho em nudez inocente, no projeto TV Lata, da Bahia. O mediador/pro­fessor, Joselito Crispim, tem que perguntar se ele acha mesmo que pode mostrar as ir­mãs para qualquer um ver. O garoto recua, melhor não expor as irmãs à curiosidade de desconhecidos. Ética das imagens que nasce do fazer, do sentir, do perceber.
A partir do concreto se chega ao conceito, à ética, à história do cinema e da videoarte. Pode-se partir dos códigos do melodrama ou da novela para chegar a Godard. Partir do sabido, do consumo, para trazer outras refe­rências. Como na história roteirizada de um garoto que quer incorporar o nome, a marca Nike, no seu sobrenome, conta Luciana Be­zerra do núcleo de cinema Nós do Morro.
Esses jovens já se relacionam com as tecno­logias e linguagens, em lan houses, video­locadoras, através dos jogos eletrônicos, do melodrama, da TV, das linguagens da vio­lência e mesmo da pornografia. Pode-se par­tir dessas referências e questões para chegar a outras estéticas e éticas.
Para muitos grupos (que trabalham com jovens das periferias), o ponto de partida, nesse trabalho de educação/ocupação/for­mação de jovens, é o desafio de criar um “pertencimento” social, criar uma “comuni­dade” subjetiva, um comum, uma inserção pelo compartilhamento da linguagem, mais do que pelo confinamento em um gueto, decisivo como estratégica de sair do lugar de objeto e se tornar sujeito do discurso e ganhar mobilidade social.
Para a TV Lata e o Espaço Bagunçaço de Ala­gados, Salvador essa construção de autoes­tima e pertencimento, assim como para o pessoal das Filmagens Periféricas, da favela paulista de Tiradentes, surge como decisiva num primeiro momento. Fazer seus filmes, se ver nos filmes, exibir seus filmes e ser re­conhecido dentro e fora da sua comunidade de forma singular. Inclusão subjetiva.
Propostas como a Oficina de Imagem (e o Latanet, “da latinha à internet”) articulam áreas do conhecimento entre si como física, química, história, geografia, matemática, filosofia, estética, informática. Ao fazer fo­tografia em latas de alumínio, o jovem tem contato com conceitos da física ótica, com elementos químicos, com estilos artísticos, com o espaço geográfico. Ao analisar temas relacionados à sua comunidade, o aluno é estimulado a ter uma visão crítica acerca das informações veiculadas diariamente pelos meios de comunicação. O projeto La­tanet também aproxima currículo escolar, mídia, cidadania e o cotidiano do estudan­te, levando as linguagens e tecnologias da comunicação para o ambiente escolar com 14
a criação de redes de intercâmbio entre jo­vens e educadores de diferentes escolas.
POSSE DA CIDADE
Ao mesmo tempo, com a proliferação da cultura urbana vinda das periferias, é pre­ciso problematizar o discurso assistencialis­ta e paternalista que se apresenta como “salvador” ou “messi­ânico” ou de “tutela” desses movimentos, que surgem rompen­do com velhos discur­sos sobre a pobreza. É a preocupação do grupo Nós do Morro de sair do discurso paternalista dos pro­jetos que têm como missão ou objetivo “tirar jovens do trá­fico”, “tirar jovens da rua”. O discurso é ou­tro, para empoderar esses jovens, lhes res­tituir autonomia, criar novas condições de uma inclusão subjetiva ou uma “intrusão social”; a aposta é a apropriação tecnológi­ca e simbólica, tudo o que produza um au­mento de potência/autonomia/autogestão. “Não nos coloque no gueto”, não nos reduza a produzir uma “estética da periferia”. Ou, ainda, não nos reduza a uma pobreza folcló­rica, essa é uma das questões recorrentes da cultura urbana periférica, um segundo mo­mento, de saída do discurso da “identidade” e do “gueto”.
Os jovens de Alagados, do projeto Bagunça­ço e da TV Lata podem ser beneficiados por esse exotismo da pobreza, alvos da curio­sidade da BBC e de muitas equipes de TV e documentários estrangeiros. Ao mesmo tem­po, a periferia é global, está em vários espaços e países. Assim, a mobilidade social conquis­tada por Jose­lito Crispim o leva a discutir e apresentar seus projetos em di­ferentes grupos sociais e países, conseguindo parcerias e apoios no mundo todo. É claro que quem financia, apoia ou patrocina os projetos das periferias urbanas brasileiras acaba direcionando o foco. “Me­ninos pobres da favela” é uma demanda e “condição inicial” de muitos filmes e pro­jetos realizados que podem até passar pelo exotismo da pobreza, mas afirmam a neces­sidade de não se deixar aprisionar nos este­reótipos nem cair na condição de vítimas, de objetos do discurso do outro, de uma fol­clorização, onde alguém diz de “fora” o que você é . É preciso tomar posse das lingua­gens e dos meios, tomar posse das câmeras, das redes, pois as questões de pertencimen­to e autoestima passam pela potência da imagem e da visibilidade e pela possibilidade de reverter o negativo em positivo, saindo do discurso da “falta” e do “negativo” que ainda marca certos discursos sobre a cultu­ra urbana periférica. 

(...) com a proliferação da cultura urbana vinda das periferias, é preciso problematizar o discurso assistencialista e paternalista que se apresenta como “salvador” ou “messiânico” ou de “tutela” desses movimentos, que surgem rompendo com velhos discursos sobre a pobreza.

Essas seriam pois algumas condições para uma inclusão subjetiva: além da apropria­ção tecnológica e da posse da linguagem, a plena circulação pela cidade. A posse do ter­ritório urbano.
Como falar de uma cultura urbana plena quando jovens negros são impedidos de se deslocarem livremente pela cidade ou, ao se deslocarem, aparecem os constrangimentos e os territórios proibidos.
Joselito Crispim descreve o espanto que os garotos negros de Alagados/Bahia ainda cau­sam nos espaços públicos de Salvador. Ra­cismo, desconfiança, choque visual diante das crianças do Bagunçaço, que tocam per­cussão em latas. Também os jovens do Fil­magens Periféricas destacam a necessidade dessa posse simbólica e real da cidade. Pre­cisam sair do gueto e circular nos espaços que intimidam. Mais do que isso, precisam de dinheiro para circular e atravessar, às ve­zes, a cidade inteira para chegar a partici­par de um projeto cultural/social. Viabilizar o transporte e a circulação desses jovens, as­segurando esse outro tempo, tornou-se de­cisivo para muitos projetos e participantes. Bolsas transportes, vãs, transportes facilita­dos são propostas de todos os grupos para tomar posse simbólica da cidade.
Além disso, é preciso levar os jovens brancos e de classe média e de outros grupos sociais às periferias e favelas. Entre esses grupos es­tratégicos estão os jornalistas e produtores de mídia. Uma das propostas da Associação Imagem Comunitária de Belo Horizonte é “educar” a mídia e os jornalistas sobre esses movimentos sociais e culturais.
A mídia também tem, muitas vezes, um dis­curso paternalista e piedoso, que só valoriza os projetos que vão “tirar o jovem do trá­fico”, discurso que transforma os projetos em “creches de adultos”. Matérias que só querem explorar a antiga relação dos jovens com o tráfico ou a delinquência. Todos re­conhecem essa dupla força da mídia: de dar visibilidade aos projetos e, ao mesmo tem­po, produzir clichês e caricaturas. Alguns jornalistas não conhecem as periferias das cidades, e fazer mídia e tornar-se mídia são pontos decisivos na guerrilha semiótica.
Seria importante ter ações que levem a im­prensa e a mídia para conhecer os projetos e periferias, de forma não sensacionalista, deixando de lado a retórica que transforma os novos produtores de cultura em “pobrestars”.
Os grupos e coletivos que trabalham nesses campos midiáticos profissionais voltados para a formação de atores, músicos, direto­res de vídeo sublinham esse horizonte de uma profissionalização dessas atividades, não de uma glamourização das profissões e atividades midiáticas e artísticas. Reforçam a ideia do trabalhador-artista ou do artista-trabalhador. No Nós do Morro e em outros grupos, todos têm que passar por todas as etapas de produção, realização, atuação, manutenção física dos espaços, viabilização financeira, as diferentes ocupações na ca­deia do audiovisual, atividades técnicas (ele­tricista, iluminador, figurinista, etc.).
OUTROS CIRCUITOS
Na TV Ovo, do Rio Grande do Sul, a forma­ção de jovens através do audiovisual tem como objetivo formar e multiplicar forma­dores, passar da formação para a produção e exibição, e criar um circuito novo.
Por exemplo, a TV Ovo no ônibus, em que se produz curtas para serem vistos dentro de ônibus comuns que recebem um apare­lho de televisão. O ônibus vira um espaço de exibição. Passageiros passam da sua parada original para acabar de ver o vídeo no Bus TV. Ainda na criação de circuitos, temos a TV Minuto. Debates relâmpagos no trânsito são feitos enquanto o sinal fecha, com um banquinho de plástico e uma pauta. Paródia dos debates de TV em que não se discute nada. A correria e a preocupação com o si­nal que vai abrir ou fechar já bastam para “entreter”.
Em relação a novos circuitos, o Filmagens Periféricas tem como um dos projetos do grupo, depois das oficinas de vídeo na cidade de Tiradentes-SP, a exibição do material pro­duzido no MIS, no CCBB, locais que muitos moradores de Tiradentes, periferia paulista, não têm acesso, não sabem o que é. Surge, então, o “Cinema de Periferia”, com a ideia de colocar todos os vídeos realizados pelo Filmagens Periféricas em uma fita ou DVD e distribuir nas locadoras de Tiradentes.
Com o apoio do Programa de Valorização das Iniciativas Culturais do Município de São Paulo, o Filmagens Periféricas conse­guiu produzir, em 2003, 120 cópias com 13 curtas-metragens que foram distribuídas nas sete locadoras do bairro, e podem ser retiradas gratuitamente quando o cliente aluga algum filme comum.
No Cubocard, ação inovadora de criação de uma moeda colaborativa, em Cuiabá, che­gamos ao exemplo máximo de criação de uma economia da cultura, com a criação de uma “moeda cultural”, um sistema de troca 17 e de crédito, uma “moeda” baseada na força do cooperativismo, mas que tem múltiplas faces com o comunitário, o cooperativo, a colaboração e o mercado.
O Cubocard transforma a troca de serviços em multiplicadora de autonomia. Não se trata de formação, mas de produção de au­tonomia e novos mercados fora do eixo, com protagonismo juvenil. Originada no cenário autoral da música, produtores de vídeo, Ca­lango, Grito Rock, Festivais independentes, Imprensa Zine, o Cubocard é uma moeda de trocas, juntando o mercado formal e al­ternativo.
Trata-se de reinventar e ressignificar os cir­cuitos locais, além de empoderá-los através da internet (TV Lata, Latanet, TV Ovo, Cubo­card), pois todos os projetos têm web-sites como a base de divulgação e produção de redes e criação de mercados. Todos os parti­cipantes fazem demandas na capacitação na área de gestão, administração, para dispu­tar editais, redes de apoio na formatação de projetos, “cnpjotagem”, tornando-se pessoa jurídica, Ong, OCIP, buscando aumentar o nível de formalização jurídica, mas manten­do a horizontalidade de rede e o coletivo e novas formas de gestão. Faltam captadores, redes de relacionamento, redes de colabora­ção, redes de troca de experiências, redes de gestão e de metodologias, listas, encontros periódicos, publicações sobre esses temas, trocas de serviços, banco de serviços e bens cambiáveis. Outra dificuldade é manter as redes formadas e criar “redes de redes”, po­tencializando as iniciativas, criando redes de relacionamento, trocas de conhecimento, que proporcionem um aumento da produti­vidade social e da inteligência coletiva.
Mas como sustentar o desejo? As formas jurídicas se tornaram insuficientes para dar conta dos arranjos dos coletivos, que são muito variados e diversos. A Escola Livre de Cinema é um projeto patrocinado pela Pre­feitura de Nova Iguaçu, tendo professores com carteira assinada. Uma Ong e uma pro­dutora independente, simultaneamente. A equipe de direção também faz produção e captação. Qualquer participante pode cap­tar em nome do Projeto. Seu horizonte é se profissionalizar, remunerar a todos, com gestores, e setor financeiro
O Curso de Audiovisual da CUFA (Central Única das Favelas) é um curso livre de au­diovisual, de teoria e prática, realizado hoje em parceria com a Escola de Comunicação da UFRJ, numa relação inovadora da cultu­ra urbana com a universidade. A CUFA tem hoje uma equipe de cerca de 30 pessoas, inventou a Escola de Audiovisual, o Festival Hutúz, o Basquete de Rua. Tem uma figura midiática como MV Bill, que dá visibilidade e credibilidade, patrocínios estaduais, nacio­nais, apoio da Petrobras, apoio de políticas públicas, mídia da Globo. Tem Financeiro, tem diretor, tem Assessoria de Imprensa, 18 parcerias em todos os níveis. É um projeto que se replica em todo o Brasil.
O Grupo Nós do Morro tem patrocínio da Petrobras para os administradores. Bolsas simbólicas para os multiplicadores. Sua equipe tem perfil transdisciplinar: jornalis­tas, dramaturgos, cenógrafos, iluminadores, pedagogos, militantes. Dá autonomia para que os participantes proponham projetos in­dividuais utilizando a “marca” do Grupo e a possibilidade de vender serviços para tercei­ros, para sustentar suas atividades (aluguel das ilhas de edição e equipamentos), etc. O processo de trabalho atende a 360 pessoas. Tem uma Diretoria e Coordenadores, únicos remunerados, os professores são voluntá­rios.
TV Lata e Bagunçaço. A equipe da Associa­ção é formada por uma pedagoga e um as­sistente social. Os meninos não vão embora, se autogerem, 300 meninos são sazonais, alguns se profissionalizam, frequentam in­tercâmbios internacionais, ganham trânsito e mobilidade social. É centrado na figura de Joselito Crispim, que tem liderança e visibili­dade e apoios internacionais.
TV OVO: O projeto foi implantado como um Ponto de Cultura do Minc, o que garante sua sustentabilidade, e tem entrada em programas de políticas públicas, como o Primeiro Empre­go. Ressalta a importância de bolsas para 12 jovens, com ajuda de custo, e conta com os voluntários dos Pontos de Cultura. Indicam a necessidade de profissionalizar a área e o pro­jeto. Todos têm como horizonte não depender de voluntários, sair da precariedade.
Os Mcs do coletivo Filmagens Periféricas co­meçaram trabalhando a “pão-com-mortadela” e hoje conseguiram, através de uma Lei de In­centivo Estadual, de São Paulo, montar uma ilha de edição e comprar uma câmera digital locadas no quarto de um dos coordenadores, na periferia de Tiradentes. O suficiente para colocarem seus vídeos e clipes na locadora da comunidade, inventando um mercado e um circuito. Quem aluga um “Duro de Matar” leva de graça os filmes da periferia.
O que essas propostas têm em comum? A horizontalidade das redes, a tendência no sentido de abolir a rigidez de hierarquias e burocracias. Essa cultura das favelas e peri­ferias (música, teatro, dança, mídia, vídeo, moeda, educação), surge como um discurso político “fora de lugar” (não vem da univer­sidade, não vem do Estado, não vem da mí­dia, não vem de partido político) e coloca em cena novos mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers, favelados, desempre­gados, subempregados, produtores da cha­mada economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso político urgente e de renovação num capitalismo da informação.
Essas redes culturais locais constituem um contraste com as políticas públicas organi­zadas do centro, muito hierarquizadas, cen­tralizadas, e que não resolveram ou reduzi­ram a um nível desejável as desigualdades sociais. Hoje, nós temos uma oportunidade histórica de experimentar outros modelos de políticas públicas, ainda embrionários, redes socioculturais que funcionam justa­mente de forma horizontal, acentrada, rizo­mática, organizando a própria produção.
Este texto tem como base a experiência de Coordenação do Grupo de Audiovisual do Projeto “Onda Cidadã”, promovido pelo Itaú Cultural em novembro de 2007 no Circo Vo­ador, Rio de Janeiro/Lapa, um instantâneo, breve e intenso dessa potência da multidão, em gestação no laboratório do capitalismo imaterial brasileiro, o território urbano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTES. Ivana. Redes Colaborativas e Pre­cariado Produtivo. In: Caminhos para uma Comunicação Democrática. São Paulo: Le Monde Diplomatique e Instituto Paulo Frei­re, 2007.
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.20


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